
Joana Pires
Lendo o post anterior, me deparei com a sensação de que não tinha percurso mais genético (referente ao termo gênese mesmo) para começar um blog sobre fotografia do que essa coisa da matriz (no caso citado, o filme), cuja integridade e importância Aninha defende com paixão, unhas e dentes. Tenho a sensação de que a gente resolveu partir do início mesmo, do surgimento da técnica e da colisão direta entre a prática fotográfica e o conceito de “original” tão defendido pela arte pré-foto.
Aí, carteirinha de fichamentos que sou, lembrei daquele clássico texto de Benjamin sobre a obra de arte nessa era pós-invenção da fotografia. E me perdoem o academicismo, mas acho um luxo quando estou estudando algum desses livros que espero que sejam chatos pra caramba e o cara vem e fala do mundo assim, como quem entende toda a lógica das coisas.
E aí Benjamin disse, lá por 1950, uma coisa que era assim: A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original.
E pronto! Há mais de cinquenta anos viu tudo o que ia acontecer na arte ocidental desde os fotógrafos artistas iniciais até, por exemplo, os músicos locais que jogam seus cds na internet sem cobrar nenhum trocado. Todos tentando se centrar menos no culto à originalidade e se preocupando mais com a eficácia da obra em função da reprodutibilidade. É claro que, quando eu digo que ele viu tudo, eu estou generalizando completamente. Mas nem toda generalização é burra.
O caso é que acho que a arte caminhou para um nível tão intenso de contestação de padrões, de modelos que saiu tentando derrubar tudo: a ideia de original, a questão da autoria, até o próprio conceito de arte. E hoje a gente lida com objetos artísticos tão cotidianos, mas tão cotidianos, que é mesmo muito difícil (e às vezes sem propósito) definir limites.
Fiquei pensando em toda essa contestação da originalidade – que me parece ter chegado a uma espécie de auge hoje em dia, com o colapso das indústrias fono e cinematográfica, e a consolidação de práticas como RT, reblog, etc. É mesmo como se a gente não estivesse mais preocupado com as matrizes – mas não apenas na fotografia. Em praticamente todos os aspectos da nossa vida, as matrizes já ficaram em segundo plano. O que conta mesmo é a divulgação da informação (seja ela texto, imagem, áudio, etc.) mesmo que ela não parta exatamente do “ponto de partida”.
E aí só nos resta mesmo uma preocupação inquestionável: o problema da memória. Como garantir a conservação de nosso passado se nossa prática diária supervaloriza o presente, o instantâneo? Como fica a memória se temos cada vez mais coisas pra lembrar e, portanto, cada vez mais o perigo de esquecer?
Não sei. Só sei que o problema não se resume às matrizes analógicas. Vivemos na luta também pela preservação dos nossos arquivos digitais, que muitas vezes morrem com nossos celulares, nossos cartões de memória, nossos HDs, nossos computadores. E esses arquivos estão sendo constantemente produzidos e reproduzidos. A pergunta que fica é: você atualizou o seu back-up hoje?
Um grande problema de hoje em dia é a falta de editoração (?) das nossas memórias: nós tentamos juntar tudo de todo tipo, ignorando que existem coisas que devem ser vagamente lembradas só por ser diversão ou afim, e coisas que são de suma importância, e não devem nunca ser esquecidos.
Isso se aplica inclusive aos nossos backups da vida: não custa, na hora de jogar aquele monte de fotos, vídeos e textos no HD externo ver o que realmente vale a pena continuar existindo e o que não precisa mais de jeito nenhum ficar ocupando aquele espaço. É um exercício às vezes cansativo, e se você for autor(a) daquele material, meio angustiante, mas é necessário, e não é mal, é um bem.
Eu acho que existe diferença entre a era da reprodutibilidade citada por Benjamin e este a que você se refere hoje. A reprodução no texto dele, pelo que eu entendi, trazia como característica a tentativa de imitação da obra original e não uma releitura a partir dela.
O que eu sinto na arte contemporânea é um desejo de fugir dessa imitação (é o que aparenta, pelo menos), quando no texto de Benjamin me parece que ele faz uma leitura de uma sociedade que vê na possibilidade de reproduzir a realização do desejo de ter para si uma cópia da obra de arte “original” tal e qual ela era – mesmo que, na prática, uma cópia em papel couchê da Monalisa não seja a mesma coisa que a pintura em tela (até mesmo pelo suporte ser diferente e reagir de forma diversa às cores, luzes, sombras, etc), para quem pega aquele papel e emoldura para colocar na parede aquela é a musa de Da Vinci e pronto.
Apesar disso, eu não sei até que ponto a proposta de releitura/reprodução da arte contemporânea dialoga no mesmo nível com o descuido com as matrizes, uma vez que a arte contemporânea tem uma proposta tão fortemente exaltada pelos conceitos que até o estrago seria considerado de alguma forma no processo – ou ele seria visto como ponto de partida para um novo trabalho.
Então, para mim, uma coisa é descuidar com o desejo de criar artisticamente ou ver no descuido do outro um motivo para iniciar um processo de criação. Outra coisa é falta de responsabilidade e como estamos reagindo com naturalidade a isso, a ponto de achar que esse elemento em vez de ser requisito básico deve ser um luxo a mais a contar no orçamento do serviço.
Gostei de conversar sobre isso. Quem mais quer falar?
Aninha, discordo com sua leitura de que a reprodutibilidade de Benjamin seja simplesmente a tentativa de imitação do original. Muito pelo contrário, essa tentativa de imitação é inerente à obra de arte – o original e sua imitação sempre existiu. O que Benjamin percebe é que a arte se torna, com a fotografia e o cinema, uma técnica serial, produzida não com o objetivo de ser original, mas de ser copiada e divulgada intensamente. Mesmo a fotografia analógica, já é uma cópia do negativo. É isso o que ele diz.
Claro que existem diferenças enormes entre a época que ele analisa e a que vivemos hoje. Mas acredito que ele trata de uma prática (reprodutibilidade) que se impõe na produção ocidental até os nossos dias. Todos os arquivos digitais, todos os arquivos que publicamos na internet, são cópias. Acho que a matriz, no mundo digital, não é importante.
Não falei bem em releitura, mas em compartilhamento, cópia e divulgação. E é isso que acredito que se impõe na nossa forma de lidar com todas as matrizes, nessa prática de dizer que “qualquer problema, é só passar no photoshop”. Acho que essa prática de copiar, reproduzir, e repassar provocou toda uma mudança de comportamento. Que tem como uma das consequências, essa desvalorização da matriz. Não estou aqui defendendo: “queimem todos os negativos”. Só acho mesmo que as coisas não acontecem por acaso, nem por descuido descontextualizado.
*e conversar é muito bom! =)
Assunto fundamental.
A arte não pode ser tratada como artigo perecivel. As mutações naturais pelo tempo, ainda assim, devem ser cuidadas para que não morra a obra original do artista.
Muito bom esse papo.
Abs,
Fernando
Meu comentário ao post anterior traz bem essa discussão. Acho que ele se aplica para comentar esse post aqui também, até porque tudo acaba se desdobrando.
Concordo com Joana que devemos pensar na memória e reforço que a idéia de reprodutibilidade presente no modo de ser moderno, industrial, mudou a forma de percebermos as matrizes. E deve mudar mesmo.
No digital, isso é levado ao extremo, não apenas no pensamento, no ser cultural, mas tecnicamente mesmo. Não existe mais original e nem matriz com o digital.
No vinil, havia reprodutibilidade. Era a industria: milhões de discos iguaizinhos sendo reproduzidos e vendidos por ai. Mas, para reproduzir um vinil, precisa-se de um original em matéria a ser copiado. No digital não.
O arquivo RAW que nossas câmeras geram é o mesminho (mesmo sendo “outro”) do que descarregamos no computador. Informação é informação, não é matéria. E digital é informação. Se eu escrevo a palavra “FOTO” aqui e você escreve a palavra “FOTO” ali, ela continua a mesma palavra: F+O+T+O. A minha não é a matriz da sua, nem o contrário. Nenhuma é cópia, todas são a mesma coisa.
Enfim, tou aqui bolando o próximo post do blog. Simbora continuar essa discussão?
Opaa, cheguei para o debate! E queria contribuir apenas levantando a questão do nosso papel e responsabilidade diante de questões como as que debatemos esta semana. Falamos aqui sobre descuido com matrizes e arquivos (analógicos e/ou digitais), contratos (obrigada Diogo!), e, além do grande orgulho de ver estes temas sendo abordados e comentados em nosso blog, sinto a necessidade de lembrarmos que nós (fotógrafos) somos os agentes que movem este mercado. Então, até que ponto somos responsáveis pelos problemas que vivemos na pele, ou deveria dizer no negativo?
Como as meninas muito bem falaram, sofremos com diversos problemas: memória, conservação, armazenamento, reprodução, direitos e deveres… Mas acredito que o principal problema é mesmo de comportamento! Nossas práticas e posturas diante de situações aberrantes que vivenciamos em nosso dia-a-dia e que tantas vezes vemos como comuns.
A era da tecnologia é sim ma-ra-vi-lho-sa, sem dúvida, mas ela trouxe também a “mudança de comportamento” de que Joana falou, e é onde vejo um perigo enorme. Não, não podemos pensar que “qualquer problema, é só passar no photoshop” (mesmo que ele seja um recurso incrível) ou aceitar que se pagamos pouco estamos sujeitos a receber serviços ordinários. Nossa responsabilidade é muito maior e não podemos esquecer que ela está em nossas mãos.