Falar da nossa relação com as imagens é correr o risco de percorrer um caminho repetitivo que, de tão intuitivo e natural, pode parecer óbvio, mas esconde nuances nunca totalmente debatidas. Criamos imagens até quando usamos a imaginação. Criamos imagens para dar conta da nossa vontade de conhecer mais, de compreender mais, são elas que facilitam o nosso contato com o que está à nossa volta.
Nós nunca vemos as coisas, nós vemos as coisas através de uma tela, disse o escultor Alberto Giacometti, se referindo ao papel que a fotografia, ainda analógica, tinha assumido na vida de pessoas que, mais do que preocupadas com viver experiências, estavam ocupadas com o registro dessas experiências. Giacometti foi capaz de perceber algo que sintetizaria nossa relação com a imagem naquela época e, acredito que mais ainda, na nossa sociedade digital – momento de adaptação de toda a nossa cultura para formas de produção, distribuição e comunicação mediadas pelo computador, já resumiu Manovich.
Segundo Flusser, as imagens são instrumentos criados para orientar o homem no mundo, ou seja, servem para dar sentido e localização à nossa existência. Existem desde que o homem existe, desde que o homem, consumido e impregnado por tudo o que vê, se preocupou em também inserir no mundo um pouco de ‘como’ ele via. Com a invenção da fotografia, a produção de imagens se tornou mecânica e entrou, com a ajuda de uma máquina, pela primeira vez, na vida cotidiana, a vida do homem comum. Desde então, nossa produção imagética mantém uma relação muito íntima com a tecnologia.
Mas qual a realidade da imagem fotográfica hoje?
Pergunto por uma sincera dificuldade de me conformar com as definições e limites do próprio conceito de fotografia.
Se conceituar nunca foi atitude fácil, a coisa se complicou quando o formato digital passou a massivamente tentar agregar toda a nossa produção cultural que, agora digitalizada, virou código numérico, display eletrônico. A imagem fotográfica (ou algo muito semelhante) não depende mais sequer do aparelho, podendo ser completa simulação, manipulação de pixels. Então, como chamar a fotografia que tem sua estrutura completamente modificada mesmo após o “instante decisivo” (pra brincar com essas nossas repetições)? Como chamar a fotografia que se comunica através da narrativa produzida pelo movimento, a fotografia que é quase filme, como o stopmotion, ou o filme que é quase fotografia?
Me pergunto isso já há um tempo, mas sinto as dúvidas se intensificarem e serem provocadas diante de episódios como o de Michael Wolf, fotógrafo alemão que recebeu menção honrosa no World Press Photo com uma série de fotografias tiradas a partir do Google Street View [link]. Não despertam minha atenção as questões políticas apontadas por algumas opiniões de internautas que sugerem interesse do WPP em divulgação. Fico mesmo impressionada pelo grande debate ontológico que essa escolha provocou – e olha que nem me sinto tão confortável diante de debates ontológicos.
Mas a recorrência de comentários indignados diante das fotos partiu, de forma geral, do questionamento de três idéias básicas:
– tirar fotos de fotografias produzidas por um recurso tecnológico é fotografar?
– essas fotografias são de autoria de quem: do fotógrafo ou do Google?
– o que legitimaria o enquadramento dessas imagens como fotojornalismo?
Todas as questões são polêmicas e dariam um artigo cada (conto com vocês). Mas alguns pontos gerais podem ser tratados para dar início a essa conversa.
A última questão – que me parece um tanto complexa já que pouco trabalhei e pesquisei o fotojornalismo – vai direto a um incômodo bem comum na atividade do fotógrafo: essa coisa da categoria. O que caracteriza cada uma das ramificações da imagem fotográfica que inventamos e que, cada vez mais, se tornam inutilizáveis. Afinal, o que danado é fotojornalismo?
Se a gente fizer um brainstorm das palavras mais óbvias que vem à nossa mente quando pensamos o que é fotojornalismo – informação, documentação, fatos, denúncia, etc – só me aparecem termos que, em muitos argumentos, poderiam ser associados às imagens produzidas por Michael Wolf.
Mas acho que esse incômodo diante do caráter fotojornalístico se mistura muito à segunda principal questão diante da imagem, a questão da autoria. Muito já se contestou o status de autor na história da arte. E, só para citar, podemos nos referir a Duchamp, Richard Prince, Sherrie Levine (tem um artigo legal aqui sobre os dois últimos) e, mais afeito ao bom português, Vik Muniz que, em entrevista a Luciano Trigo, disse umas coisas muito interessantes sobre apropriação:
A apropriação é uma postura conceitual em relação à cópia, pois questiona a propriedade intelectual do objeto ou da imagem. No meu trabalho, eu jamais questiono a importância ou o mérito da fonte. Minha função remete o público diretamente na direção do original. A minha preocupação não é com a autoria e sim com a evolução dos rituais visuais.
Vik segue dizendo que ele não se apropria, ele copia mesmo. É diferente. Ele faz, por exemplo, uma cópia em chocolate de uma imagem visualmente explorada por nossa sociedade. No caso, de Wolf, a apropriação é mais óbvia. Apesar de não tirar o “print screen” do computador, ele faz uma cópia fotográfica das imagens – e qual fotografia pode se dar ao luxo de dizer que não é cópia, não é mesmo?
A questão assustadora é que poucas vezes o fotojornalismo brincou e provocou tanta vertigem diante da questão da autoria como essa série de Wolf. Principalmente depois de tanta celeuma histórica pelo reconhecimento do direito de autor de todo fotojornalista.
Muita gente utiliza o mesmo argumento tantas vezes usado diante da arte abstrata: brincadeira de criança. Mas é isso que diferencia pessoas comuns de pessoas inovadoras: as idéias das últimas questionam fronteiras, não importa se causam repulsa ou aplauso, o que importa é que causam debate.
Muita coisa a se pensar. Me apeguei mesmo foi ao aspecto das fotografias em si. As fotos de Wolf tem ruídos, aliás, são embasadas em ruídos – cursores de mouse à mostra, falta de nitidez, cortes bruscos, distorções de cor, etc. Acho que a série de Wolf tem força, mas fico pensando se tem a mesma força como fotos individuais.
Acredito que qualquer produção de conteúdo é legítima, mas nem por isso boa. E quando penso nisso, não me detenho às fotos de “A Series of Unfortunate Events” mas ao prêmio WPP e principalmente à sua foto do ano. Ronaldo Entler, em artigo bem esclarecedor publicado recentemente no blog Icônica, questionou a premiação, questionou a elaboração da imagem, e os critérios para analisá-la como uma boa fotografia. Acabou debatendo um aspecto que é muito curioso e comum: prêmios de fotojornalismo, muitas vezes, privilegiam o fato à foto.
Pensando nesses aspectos todos e ainda com uma opinião superficial sobre o assunto, eu diria que premiar uma fotografia feita a partir de um gerador da imagem é, na verdade, o mais próximo de enaltecimento do ato de fotografar que o WPP chegou este ano. A “photo of the year”, na verdade, merecia mesmo ganhar um prêmio de fotografia.
E aí fico me perguntando, se premiamos a história ao invés da foto, se analisamos uma imagem como janela do mundo, pelo impacto que o fato provoca na sociedade e pelo caráter inusitado do que ele apresenta, será que realmente entendemos e pensamos na fotografia em si?
* Trechos desse texto foram retirados de um artigo que produzi para o mestrado em Comunicação Social, linha de Mídia e Estética da UFPE.
**Agradecemos particularmente a Queiroga por ter-se declarado interessado em ver essa história pensada aqui nessa mesa 7.
*** A foto do post foi produzida com uma D80, a partir de imagem do Google Street View. É uma apropriação da apropriação da apropriação.
Acho difícil desassociar o fato da foto no fotojornalismo. Porque o jornalismo trabalha com fatos. Mas muitas vezes os fatos não têm essa relevância toda e a fotografia surge como algo forte para enaltecê-lo. Talvez o conceito que vou citar agora seja muito fora da atual realidade: a foto dentro do jornal é a garantia ao leitor de que o jornal esteve no local. Talvez na sociedade que a gente viva hoje, em que as referências éticas estejam sendo questionadas a rodo e o que prevalece é a referência do dinheiro e do poder, este conceito seja visto como reacionário. Mas eu acho ainda que o papel principal do fotojornalismo é o de interpretar a realidade dos fatos, de uma forma mais “honesta” possível. E ai tem um aspecto ético na história, mesmo que para você registrar isso tenha usado artifícios não tão éticos com relação à autoria ou coisa parecida (aquele lance de que os fins justificam os meios). E esse lance de autoria é complicado. E aquele frame da Paulista, que flagrou o filhinho da classe média em ataque de homofobia, de quem é a foto-frame? De ninguém? Do mundo? Do dono da câmera? Aquele frame não tem importância fotográfica?
Mas o fotojornalismo não engloba toda a fotografia do mundo, não é? Ele deixa de fora um monte de aspectos de criação e manipulação (super importantes) que sempre existiram. O advento da fotografia digital apenas popularizou mais este tipo de manipulação e criação, mas ela já existia na fotografia de muita gente como Moholy-Nagy, Wolfgang Pietrzok, Man Ray e outros mais. Resumindo: o fotojornalismo tem um compromisso com os fatos e a ética. E, por conta disso, tende a ter uma linha menos criativa em termos de ferramentas de manipulação e de liberdade de estética – apesar de que hoje em dia há muito espaço dentro de jornais e revistas para fotografias que saiam desta linha jornalística. Mesmo assim, não deixa de ser emocionante, bela esteticamente, além de você sempre encontrar algo ali na foto que não se controla. Sempre escapa algo que mesmo que você tenha feito tudo para ser como você queria. E essa falta de controle na maioria das vezes faz o fotojornalismo tão belo, tão cheio de detalhes e, ao mesmo tempo, com um pé no caos.
Ultimamente, com todo esse frenético avanço tecnológico, tenho pensado bastante na questão “o que é fotografar?”. Não entro nem na questão de quem é fotógrafo e quem não é… Falo do ato, puro e simples (?) de se fotografar. Hoje, fotografar se tornou uma tarefa comum. O pensamento fotográfico continua complexo, mas produzir fotografia deixou de ser um bicho de sete cabeças, é só dar uma olhada na quantidade de fotos boas (muito boas) que tem sido produzidas por “não fotógrafos” com iPhones, Smatphones etc, etc… Basta um clique, uns pequenos ajustes e pronto.. lá está a fotografia. Gosto de tecnologia, principalmente da tecnologia que instiga a criatividade. Particularmente, fico bem feliz vendo as pessoas se interessando por fotografia e principalmente querendo fotografar e fotografar bem. Salve a tecnologia. Ai entre a questão.. o que é fotografar? Bresson e sua frase mais pop diz que “Fotografar, é colocar na mesma linha de mira, a cabeça, o olho e o coraçao”. Hoje, acho que a gente tem que colocar na mesma linha de mira a tecnologia também. E que bom!
Mas vamos a questão levantada por Joana, que me fez escrever esse comentário:
Tirar fotos de fotografias produzidas por um recurso tecnológico é fotografar?
Não sei. Muito sinceramente, não sei responder essa questão. Ela me inquieta.. me faz pensar em milhões de coisas. Wolf fotografou? Reproduziu? Ele pensou. Ele construiu um conceito, executou a idéia e ganhou o WPP, o maior prêmio de fotojornalimo. Isso me intriga. Principalmente por ser uma fotojornalista, por ir pra rua, por batalhar (intelectualmente e fisicamente) pela melhor foto. Não sou tradicionalista em relação ao fotojornalismo. Acho que os fotógrafos tem que se reinventar mesmo se não essa tal da “tecnologia” acaba engolindo todo mundo. Mas fico pensando se o que Wolf fez não foi na verdade uma grande crítica. Só se fala dos meios, mas pouco se fala dos fins.
Vamos continuar essa conversa?
Falou e disse! As garotas do sete mandando ver. Muitas e boas questões.
A fotografia, lá no comecinho, se dividiu em duas vertentes: uma que defendia a objetividade e outra a subjetividade. Por uma série de motivos, entre eles a visão de modernidade e industrialização, ganhou aquele time que defendia o lado máquina da nova linguagem. Hoje comemoramos o dia mundial da fotografia no 19 de agosto, data em que Daguerre teve seu invento oferecido ao mundo pelo governo francês. Daguerre foi anunciado pela Academia das Ciências francesa. O lado equipamento nos acompanha até hoje. Quem dos fotógrafos que lêem essas linhas nunca ouviu algum comentário sobre uma boa foto se referindo ao modelo da câmera ou à lente que foi usada?
Fotografia não é técnica, nem é material, nem é processo. Ou… é tudo isso e mais um bocado de coisa. Chamamos de foto desde aquele papel com uma imagem, até uma atividade abstrata de reflexão, passando por metáforas que falam da realidade etc e tal. Daí que não podemos reduzir o nosso entendimento de fotografia a determinados aspectos ou procedimentos.
A palavra da vez passa por hibridismo. Câmeras fotográficas que filmam e captam som, telefones que fotografam. Canais de televisão publicam texto escrito, jornais publicam vídeos. Até quando vai fazer sentido falar em fotografia, em vídeo, em audiovisual, como coisas estanques, separadas? Com as imagens de síntese, aquelas feitas diretamente pelo computador, sem um referente, ou mesmo com fotografias muito manipuladas em que o tanto de referente já não é tão decisivo, até onde poderemos falar em fotografia? E quando não poderemos mais falar em fotografia? Será que vamos ter esse limite, um até onde pode, um a partir de onde não pode? Será que faz sentido isso?
E o referente na fotografia não é importante? Eu penso que é parte integrante. No fotojornalismo o fato é importante. Mais do que o fato, a informação. Mas não só no fotojornalismo. Na fotografia artística (ou autoral para quem preferir) não estamos lidando apenas com a superfície, não queremos apenas composição, arrumação dos elementos internos, precisamos de profundidade, de significação, de uma experiência que nos toque.
Também não quero entrar numa discussão de índice. Mas penso que negar totalmente a condição de índice é bobagem.
Bem, continuo por aqui na torcida da mesa 7!
Que contribuição mais linda, Queiroga! O 7 é, na verdade, um espaço de colaboração, em que cada um passa a ser o sétimo elemento. Obrigada, viu, amigo?!
Marcelo, essa questão do fato, acho que faz sentido comentar de novo. Até porque não se esgota. Quando critico a premiação da fatografia, não tenho a intenção de dissociar o fotojornalismo da informação – longe de mim entrar numa guerra tão desmedida. No fotojornalismo, o fato e a foto andam de mãos dadas mesmo. Mas me pergunto se essa aliança é suficiente para garantir uma premiação – como no caso da foto do ano pelo WPP, uma imagem fotograficamente simples que, acredito, foi corroborada por um acontecimento realmente espantoso. Não sei.
Acho que no fim das contas, tá tudo aí também nos comentários de Pri e Queiroga: essa coisa do que é fotografar e de se é realmente importante definir essa fronteira é uma questão crucial para a gente saber para que lado vai apontar, quais as barricadas que quer transpor.
No mais, acho que a diversidade de assuntos abordados nos comments reflete bem a confusão de ideias que chacoalhou a minha cabeça quando pensei o post acima. Essa série de Michael Wolf é danada, gostando ou não, dá pra estudar a história da fotografia inteira olhando pra ela.
Vejo as imagens, leio o texto e tudo isso me faz lembrar dos casos em que um jornal qualquer publica, por exemplo, a imagem de uma foto 3×4 da identidade de alguém, ou a imagem de uma pintura, de uma escultura, ou ainda a imagem de um frame pertencente a um vídeo veiculado no Youtube para compor uma reportagem. São também exemplos de imagens que podem ser geradas a partir de outras imagens provenientes de algum recurso tecnológico. E nos créditos, em geral, está lá: “reprodução/fulano de tal” ou “reprodução/TV tal”.
O trabalho de Wolf, portanto, é reflexo de um fenômeno que já está por aí há algum tempo. Um trabalho que, olhando por esse prisma, não nos traz nada de novo. Mas, seja intencionalmente ou por acaso, essa menção honrosa acabou se tornando um alerta, uma forma de dizer que a reprodutividade imagética ainda precisa ser debatida, compreendida – uma carência, aliás, ainda inerente à fotografia como um todo, não é mesmo?
Nesse sentido, acho que a tecnologia encarna o papel de vilã. Uma cria nossa, cuja dinâmica não nos permite refletir sobre o que desenvolvemos. Permite apenas que experimentemos. Ainda hoje temos dificuldade em conceituar o que é fotografia e, ao mesmo tempo, somos induzidos, praticamente obrigados a lidar com seus cada vez mais subdivididos formatos. Um equipamento moderno se transforma em obsoleto dentro de um ano, talvez menos. Toneladas de princípios e técnicas; minutos, às vezes horas de produção fotográfica rivalizando com a praticidade do iPhone somado a uma conta no Instagram.
É modinha? É o futuro? Quem sabe? É saudável que o mundo tenha mais fotografias do que gente realmente capaz de pensar a partir delas? É correto que continuemos criando novas plataformas para o consumo de imagens sem nem entendermos direito o que essas imagens nos transmitem? É ético jogar as pessoas em um mundo repleto de imagens digitais sem ensiná-las a separar o genuíno da manipulação de pixels? A partir de quando o mundo vai contemplar não apenas o referente, mas toda malha simbólica que cada fotografia carrega? Não sei as respostas, mas desconfio que elas se manifestam, por exemplo, na nossa aparente incapacidade de compreender a essência do trabalho de Wolf. Pode ser um crítica para o presente, uma ideia para o futuro ou um punhado de fotos mal feitas mesmo.
Frente à carência histórica de esclarecimentos sobre a fotografia em si, vejo a tecnologia como vilã, mas fazer o quê? É um processo irreversível. E nem dá para pensar em sociedades cada vez mais conectadas sem a prática em massa da cultura de reprodução. No fotojornalismo, nem se fala. A demanda por notícia só aumenta e não se pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo. E cada vez mais os “não fotógrafos” são participantes do processo. Crise à vista? Não sei, mas imagino que, nesse cenário de reprodução em massa, se qualidade de informação e ética (ou seja, conhecimento) não forem tratadas com a devida seriedade por todos, fotógrafos ou não, a sociedade em rede está em apuros.
já vi muito a tecnologia como vilã, chico. já abandonei essa perspectiva ao me dar conta de que a tecnologia está aí para gente jogar com ela, e transpor os seus limites – talvez você fosse gostar do livro que me ensinou isso, chama-se “Filosofia da Caixa Preta”, de Vilem Flusser. Você conhece? É muito muito muito bom! Imperdível mesmo. 🙂
Acho legítimo o trabalho de Wolf. Acredito que a principal questão para discutir esse trabalho é MEDIAÇÃO. Se a captura do fotógrafo foi mediada por um sistema do Google, o que fazemos nós senão captar imagens mediadas por câmeras fotográficas? Até onde a gente acha que tem esse acesso “direto” à realidade? Até onde o fotojornalismo é essa “janelinha toda” para um fato? A partir de onde as fotos de Wolf deixam de ser a mesma “janelinha”? Um bom trabalho está na idéia e nos conceitos que carregam por trás. É claro que o processo e a técnica importam. Mas não definem.
Eu não estou conseguindo lembrar agora detalhes mais exatos (procurei muito por palavras-chave no google, mas não encontrei), mas me lembro (é bem possível que eu esteja com algum problema contemporâneo de memória/esquecimento ou criando lembranças de coisas que não existem, mas vale o levantamento da questão) de um caso interessante, bem parecido com esse. Era algum prêmio importante de fotografia documental/jornalística também. A pessoa que fotografou utilizou alguns bonecos (tipo playmobil) para recriar cenas de fatos importantes: uma pessoa enterrada após o terremoto do Haiti, por exemplo. O ensaio fotográfico era feito com bonecos, simulando fatos que aconteceram. Mas chocavam e comunicavam. Informavam e comoviam. Falavam da realidade. Por que não fotojornalismo? Fica a pulguinha atrás da orelha… Mas acho que devemos tirar esse peso todo das costas dos gêneros… Às vezes, classificar demais só limita nossas ações como fotógrafos…
“Um bom trabalho está na idéia e nos conceitos que carregam por trás”. Nem sempre uma boa foto é feita de conceitos, mas no caso de Wolf acho que é bem isso mesmo, bellíssima. Wolf não mereceu menção honrosa pela qualidade de suas fotos, ou por fazer algo que nunca foi feito, mas por atrelar isso a uma argumentação, a uma conceituação que não foi pensada antes (é tipo um “prêmio revelação”). Também acho legítimo.
Pelo amor de deus, que belo debate é esse?! Primeiramente, parabéns pelo blog, garotas! A fotografia só tem a ganhar (e muito!) com novos e interessantes espaços para debates de alto nível como esse! É isso ai!
Tá bom. Agora, vamos aos fatos. Interessante nisso tudo é que, diferentemente do que alguns pesquisadores tentaram nos passar goela abaixo, o fotojornalismo continua mais vivo do que nunca. Falar em suporte, em capacidade de interação e mesmo em enquadramento em conceituações e/ou teorias é, novamente, repensá-lo, reconstruí-lo, dissecá-lo. Não precisamos desse “novo fotojornalismo”, tão “sabiamente” proposto por antiquados veículos de comunicação. O que precisamos é compreender que lógicas orientam as cadeias de produção, edição e circulação de conteúdo na contemporaneidade.
Falar nas imagens do Wolf é buscar exatamente essa contemporaneidade. Definir a produção fotojornalistica atual como “objetiva”, “verdadeira” ou “real” é mexer em casa de abelha. Primeiro, porque novas praticas, atreladas a novas formas de consumo e de articulação de conteúdo se fazem presentes. Segundo, porque novos conceitos circundam o eixo fotojornalistico atual, tais como: afinidade, capacidade de circulação e dispersão de conteúdo, convergência e transmediação… Exemplos? Vamos lá:
1. The Malboro Marine (www.mediastorm.com)
Produzido pela Media Storm, empresa sediada em Nova Iorque e fundada em 1994 na Universidade do Missouri, The Malboro Marine foi “ao ar” em 2007 e contou com a participação e as fotografias de Luis Sinco, fotojornalista do periódico Los Angeles Times. De acordo com Brian Storm, fundador e presidente do grupo Media Storm, a publicação online deste material possibilitou uma maior aproximação com o contexto no qual as imagens foram produzidas (STORM, 2010).
The Malboro Marine apresenta aos leitores/usuários a história do soldado James Blake Miller, fotografado no campo de batalha no Iraque, e seu retorno aos Estados Unidos. Longe de ser a síntese do “macho bad-ass American Marines in Iraq” (STORM, 2010), James volta com sintomas de depressão e sua vida modifica-se por inteiro.
Constata-se que este projeto multimidiático “transforma” as imagens produzidas por Sinco em uma narrativa a qual se constitui de elementos do campo audiovisual. À narrativa são agregados recursos de edição e montagem (como cortes, fusões, entre outros), o que resulta em uma linguagem muito semelhante a do próprio cinema.
Ademais, The Malboro Marine conta ainda com uma proposta de interatividade e participação do usuário. Durante a exibição do material, links indicam a possibilidade de produzir comentários (comments) sobre o material ou mesmo distribuí-lo em redes sociais, como Facebook, Twitter, Delicious, entre outras.
2. Flattr (www.flattr.com)
Um outro ponto que, acredito, irá nortear os debates sobre o fotojornalismo contemporaneo diz respeito a seu financiamento. Hoje, algumas propostas já buscam uma desarticulação entre os eixos de produção e financiamento de conteúdo, o que, para algumas empresas, representa um verdadeiro “deus nos acuda”. A grande circulação de conteúdo multimídia por meio da ação consciente de diferentes redes de consumidores/participantes tende a criar uma maior visibilidade e notoriedade, que o conteúdo desloca em direções imprescindíveis para o encontro de pessoas que estejam potencialmente interessadas em mais compromissos com quem a produziu. Pensemos especificamente em um dispositivos de mídia portáteis, telefonia móvel multimídia (smart phones) ou nos tablets multimídia. Não são simplesmente as tecnologias ou os recursos e aplicativos que ali se amontoam os quais farão com que a informação circule, que as interfaces tenham “vida”, mas a própria dinâmica social (JENKINS, 2010).
É isso.
Viva a fotografia!
Abraços a todos!
Ps.: Achei isso dia desses em um livro… anuncio da Fuji na News Photographer (1996). Vale pra ilustrar esse debate:
“When you´re the eyes of the word, your film had better share your vision. Photojournalism demands that you capture life with absolute, unfailing accuracy. Without distorcions. And without losing the drama. The question is, how do you do it? The answer, for thousands of photojournalists, is Fuji film. In countless situations, Fujicolor Super G. Plus is the perfect film. (…) No one can say what each day will bring. But there is one thing you can count on. With Fuji film in your camera, you’ll be bringing back the truth. Fujifilm. A new way of seeing thing”.
Muito boas essas referências, joão. Valeu!
Estou gostando muito de como as coisas estão sendo discutidas aqui, e como cada comentário dá um miniartigo em resposta ao texto origina/de base. Fabuloso!
Agora que não tenho muito a acrescentar, e mais a pensar, porém sinto um pequeno vazio aqui na discussão, exponho o que achei depois do que li:
A fotografia primária, produzida por quem estava lá, frente ao fato captado, tendo por único intermediário a câmera, é uma coisa; a foto produzida tendo outra imagem ou obra em geral como base é outra.
A primeira é uma leitura da cena/do fato por parte do produtor daquela imagem (e aqui se englobam tanto imagens “brutas” como as fartamente editadas no Photoshop); a segunda é uma releitura: subjetividade sobre subjetividade.
Mas ainda fica uma brecha nessa história…
e as fotografias feitas para serem neutras? Aquelas fotografias de quadros, por exemplo. Eu não conheço a Mona Lisa, mas já a vi zilhões e vezes, pois ela é reproduzida N vezes por dia. E sei que as únicas diferenças básicas entre uma reprodução e outra referem-se ao tamanho, à qualidade da reprodução (resolução, papel etc) e a presença ou não de seu entorno (ou seja, a moldura). Elas são releituras da cena vista ao olhos (e imaginação?) de Da Vinci?
Se sim, como ficam as intenções de quem produziu aquela imagem, que eram, por assim dizer, inocentes em sua ambição quanto a expor sua visão daquele quadro? Se não, voltamos ao exemplo do mictório de Duchamp, que, segundo me recordo, não o fez, apenas desejou que este fosse denominado “arte”, e assim o expôs: ele apenas tirou o objeto de seu contexto e mostrou sua intenção de categorizar aquilo como leitura sua do mundo que o cercava.
Me parece que foi isto que o Michael Wolf quis fazê-lo ao fotografar a partir do Google View – ele tinha algo pronto e quis expor como visão sua do mundo (nesse caso, literalmente). E assim ele colocou-se num espaço curioso, mas como disseram, comum, da fotografia, que é o do fotógrafo que retrata uma leitura de outro, a seu modo (aqui considero os cortes que ele fez).
Ou não? Afinal supõe-se que as câmeras do Google são neutras, ou seja, não estão expondo visão de quem está captando as imagens, e assim embarcaríamos numa filosofia discutindo como classificar uma leitura pessoal sobre uma leitura impessoal – seria releitura ou apenas trabalhar pessoalmente uma imagem bruta, como editar um arquivo RAW?
Diferente de Jo, eu realmente me interesso muito pelo debate político que envolve todas estas questões, afinal tudo é política! Entretanto, tampouco me sinto à vontade para falar sobre isso, mas definitivamente fico me perguntando o que se passa por trás das mentes pensantes do WPP (jurados, organizadores, diretores…).
O que fez essa galera dar duas premiações tão interessantes (Photo of the year e o de Wolf)? Tudo bem que o prêmio de Wolf foi uma menção honrosa na categoria contemporary issues, mas poderia ter passado batido e não passou, poderia ter sido uma premiação normal, mas também não foi… O que será que eles querem dizer? Que leituras podemos dar a essa postura, por um lado tão inovadora no caso de Wolf e por outra tão tradicionalista (?) ao privilegiar o fato à foto?
Estamos falando do maior prêmio de fotojornalismo do mundo, tudo o que eles dizem é visto e absorvido. Precisamos ser políticos ao tentar compreender suas razões, afinal elas reverberam e muito (não estamos aqui reverberando sobre isso?). Vivemos lutando por mais espaço, por direito a expressão e criatividade e o WPP vem nos dizer que aquela é a melhor foto do ano no mesmo momento que premia um trabalho tão polêmico. Como ficamos quando o WPP diz que uma foto é a foto do ano quando sabemos que ela realmente não é lá uma grande imagem? Será que isso também reverbera em nosso pequeno universo? Será que isso diz algo aos editores de fotografias dos jornais espalhados pelo mundo?
Com tanta pergunta é melhor chamar o WikiLeaks! =P
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No fim das contas, restam várias cabeças encucadas com isso tudo. E cheias de ideias novas, porque o debate foi maravilhoso e inesgotável. Obrigada a todo mundo que comentou e que tem participado dos outros debates do blog. 🙂
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