Semana passada, Priscilla Buhr publicou uma reflexão sobre a rotina do fotojornalismo debatendo duas questões: o tempo de cada repórter fotográfico e o limite físico e emocional diante de experiências sociais que testam fronteiras éticas. O texto agregou inquietações às que eu vinha remoendo desde que fiz uma oficina do Garapa, em 2009, e comecei a acompanhar outras percepções de fotojornalismo.
Os desdobramentos da oficina me trouxeram referências como o Media Storm e o Emphas.is. Por outros contatos conheci o Jornal da Fotografia, o Imagens do Povo e o Favela em Foco, que desafiam discursos preconcebidos de olhar para alguns setores da sociedade. Fiquei pensando sobre estes projetos até ler Ligeiramente Fora de Foco, de Robert Capa, e ver uma discussão inquietante no Foto em Pauta – Tiradentes, na mesa intitulada Por Um Fotojornalismo Que Se Anuncia.
Então, eu quis conversar e ler mais sobre fotojornalismo. Ganhei uma lista de referências e passei a ouvir melhor informações ditas em espaços não-formais de aprendizado. Tudo isso foi importante para elencar estas ponderações, mas elas são um exercício de compreensão do contexto desta “nova reportagem fotográfica”, se é que isso existe. Eu prefiro a denominação do Foto em Pauta: um “fotojornalismo que se anuncia”. Assim, qualquer contribuição a este texto é bem vinda. O importante é agregar e ampliar o diálogo.
Dito isso, vou começar pelo que refleti logo após o Foto em Pauta. A mesa foi composta por representantes das agências Reuters, France Presse e O Globo. Eles falaram como estão se estruturando para lidar com os formatos de narrativa multimídia que aliam fotografia, vídeo e áudio. Entre os temas debatidos estavam a preparação do repórter fotográfico para filmar, fotografar, captar áudio e editar o material (caso não haja equipe extra de edição), o custo dessa formação e a reelaboração da rotina de trabalho diante de um novo produto jornalístico que exige uma quantidade maior de tempo para ser construído.
A primeira inquietação que me veio foi: por que este fotojornalismo que se anuncia foi debatido apenas do ponto de vista das grandes agências de imagens, se as redações estão cada vez mais enxutas e parte importante do conteúdo jornalístico que circula hoje vem de freelancers ou fotógrafos (coletivos) independentes? É curioso refletir sobre isso no contexto brasileiro, que parece sempre buscar a imprensa central para validar novas propostas de trabalho, mesmo que elas tenham começado em contextos que não estavam ligados aos grandes veículos e agências mediadoras dessa produção fotográfica.
Qual o papel destes fotógrafos freelancers, independentes e dos coletivos neste contexto? Como eles estão se estruturando diante dessa perspectiva de construção narrativa? Existe diálogo com grandes agências e veículos e com projetos alternativos de imprensa? Quando se valida uma proposta de atuação no campo da fotografia, a partir do olhar das grandes agências e veículos, o que estamos querendo dizer? Que o modelo adotado por elas deve ser o referencial a ser seguido? Ou existe abertura para propostas diferenciadas de atuação?
A experiência do próprio Garapa traz algumas respostas para estas questões, mas ela é uma única vivência diante de várias propostas de atuação que ainda desconhecemos. E este é um dos motivos que me faz pensar (se eu estiver errada, por favor, me digam) que precisamos pesquisar mais e dar visibilidade a outros projetos que trabalhem com reportagem multimídia, ao invés de fecharmos uma proposta-modelo a ser seguida.
E um dos motivos da minha preocupação é o argumento de que este novo produto multimídia está mais próximo do cinema que do vídeo. Isso vai exigir do fotógrafo habilidades que ele nem sempre acha que deveria ter. Por exemplo: saber elaborar um roteiro de produção, narrativa e edição, para que a fotografia traga uma informação que some ao conteúdo da filmagem; escolher bem o áudio que vale a pena ser captado (em caso de não poder gravar tudo); e editar o material para ter poder de circulação e discussão.
Os trabalhos exibidos como referência para o público, na ocasião do debate, agregavam fotografia, vídeo e áudio, sim, mas a costura da narrativa estava aquém do esperado. E temos visto muito isso. Aparece uma reportagem sobre o universo do skate, por exemplo, que agrega falas das personagens ou uma canção referente aquele meio (ou os dois). Mas nem sempre uma música ouvida no contexto do skate é a que melhor condiz com o enredo da reportagem. Ou nem sempre as falas agregam, de fato, informação à imagem.
Se os repórteres fotográficos e editores não aprenderem a olhar para o conteúdo visual que produzem, o uso de vídeo, depoimentos e música podem virar acompanhamentos e isso é o oposto de uma narrativa coesa. Neste sentido, um bom enredo vai além de ter uma sequência de fotos incríveis. É preciso observar também os discursos e entrelinhas do material produzido. A questão é: quantos fotógrafos realmente compreendem o que fotografam e prestam atenção nessas minúcias em suas imagens?
Um outro aspecto que também não consigo desconsiderar é o desdobramento deste discurso em nosso cotidiano. Embora se argumente que o fotojornalista não tem controle sobre a interpretação de suas imagens, não podemos negar que uma reportagem tem um discurso e que ele, inconsciente ou não, é concebido durante a formatação do projeto. Um exemplo é o trabalho Cracolândia, que foi exibido como modelo multimídia durante a conversa no festival.
O projeto mostra um panorama do consumo de crack, no centro de São Paulo, e traz como orientador narrativo o depomento de um segurança da área. A personagem aponta vários problemas, que são vistos nas imagens (captadas de um quarto alugado em um hotel próximo da principal via de acesso da região), mas tem uma visão pessimista sobre o futuro da região e dos seus moradores. É impossível não refletir sobre o discurso desse vídeo, ainda mais quando ele agrega o seguinte texto no final:
Há mais de dez anos os moradores de São Paulo são obrigados a conviver com os usuários de crack no coração da cidade, próximo à Estação da Luz. Cercada por prédios culturais, a região conhecida como Cracolândia é frequentada por viciados e traficantes que consomem a droga 24 horas por dia. A prefeitura de São Paulo está realizando o projeto Nova Luz, que pretende revitalizar a região e acabar com a Cracolândia. A polícia patrulha a região proibindo o consumo da droga, empurrando os usuários de um quarteirão para outro criando um circuito de pontos de consumo de crack.
Eu vi o trabalho algumas vezes e perguntas sempre se repetem: os moradores da cidade de São Paulo são uma coisa e as pessoas que consomem drogas na Cracolândia são outra coisa? É esta outra coisa que impede os moradores da cidade de São Paulo de frequentarem os prédios culturais que existem na região? Então, esta outra coisa deve ser retirada do local pelo projeto Nova Luz, uma vez que o patrulhamento da polícia não está resolvendo? É isso?
Se sim, este é um discurso antigo no jornalismo. Se fizermos um panorama da história da reportagem, ele vai cair em nosso colo aos borbotões. A questão é: será que com tantas possibilidades de pesquisa, abordagens e liberdade de criação, este discurso ainda cabe neste “novo fotojornalismo”? Ou será que uma de suas faces é colocar em um formato mais arrojado pontos de vista conhecidos? Se assim é, existe de verdade um novo fotojornalismo, mais amplo e propositivo?
Eu consigo ver luzes tanto na imprensa comercial quanto em iniciativas independentes e os projetos citados no começo deste texto trazem rotas. Porém, precisamos considerar que o produto final de um discurso fotográfico multimídia não é resultado apenas da técnica aplicada na elaboração do trabalho. A junção de áudio, vídeo e foto não vai determinar o discurso da reportagem, mas quem está produzindo, selecionando e editando o conteúdo.
O que eu sinto falta é de uma outra possibilidade de leitura sobre a Cracolândia. É ver reportagens e mais reportagens fotográficas (ou não) e ouvir um discurso quase unilateral. Um fotojornalismo que se anuncia distinto precisa estar disposto a mostrar outras possibilidades. E aqui entro na questão trazida por Priscilla Buhr. Ela dizia que às vezes entrava em crise porque não podia voltar para a redação sem “a foto”, mesmo que isso testasse os seus limites éticos.
Exceto quando há fatos que produzem imagens únicas, o que é “a foto”? Por que “a foto” de um enterro precisa ser dos parentes em desespero sobre o caixão? Ela é mesmo a imagem emblemática deste enredo de dor ou uma convenção criada para “facilitar” procedimentos editoriais? Havendo alguma outra cena que sintetizasse melhor a narrativa, ela seria escolhida no lugar desta que já tem meio que um lugar marcado em coberturas de violência? Como fica esse debate no contexto da produção multimídia, onde “a foto” não existe e o diferencial é feito pela abordagem?
Sinto que, às vezes, vamos pelo caminho mais óbvio, mesmo que outras trilhas interessantes estejam ao redor. Contudo, se agora falamos de um fotojornalismo mais aberto em seus processos criativos, como podemos ver jornais com as mesmas opções quase todos os dias? Como podemos ter projetos multimídias com ângulos e discursos tão parecidos em veículos diferentes – e até em estados diferentes? Não é possível que fotógrafos com trajetórias tão distintas olhem sempre para o mesmo lugar.

Robert Capa conseguiu reportagens exclusivas por estar onde os demais não chegavam durante a guerra. A foto na Tunísia, em abril de 1943, ocorreu porque no começo da cobertura ele acompanhou o 301º Grupo de Bombardeiros da Força Aérea Americana, enquanto os demais repórteres fotográficos estavam na África.
Então, leio Robert Capa e vejo preocupação dele e dos editores em buscar narrativas exclusivas. A história da fotografia é muito útil para ver o que cada época valoriza e sacrifica de conhecimento produzido e iniciativas. Hoje, temos propostas tecnológicas excelentes, mas abrimos mão de enriquecer nosso repertório noticioso – mesmo com reportagens incríveis produzidas mundo afora. Ler Capa me faz desejar ver histórias diferentes publicadas, ter mais vezes o prazer de um furo de reportagem e encontrar menos aquele paredão de fotógrafos em frente de um mesmo alvo, como se aquela fosse a única maneira de contar a melhor história.
Ana,
Gostei demais da abordagem, da coragem de encarar o status quo dominante e não apenas discordar mas apresentar propostas. Não sou fotojornalista mas acredito que o tema em questão pode ser debatido em um sentido mais amplo, buscando sempre sair do convencional, do esperado, em qualquer trabalho fotográfico. Ou multimidiático.
Beijos,
Marcão
Aninha,
Muito boa as questões aqui levantadas… Isso rende um boa discursão
e me leva a refletir realmente sobre esse novo modelo!!!
xeruuuu
Aninha,
O texto é ótimo, mas uma questão dele se sobressai… A tal da narrativa. Percebo ser essa a sua maior preocupação, e de fato ela merece atenção especial. Por trás da unilateralização dos discursos temos uma grande questão que não conseguimos responder a contento: o que é uma narrativa? Se conseguirmos ter clareza da importância da pergunta e começarmos a esbouçar uma resposta, as coisas caminharam minimamente. É lógico que a imprensa em sua formatação mais clássica vai ter uma resposta bastante ‘coerente’ sobre sua narrativa, afinal ela se perpetua desde tempos imemoriais…Mas será mesmo esse tipo de concepção de narrativa – muito tacanha, para não dizer pior – o que vai favorecer o diálogo mais forte entre os espaços intermídias e a seu resultado discursivo? No fundo sua questão é bastante simples (só os grandes questionamentos são simples) o que é contar/narrar uma história? Isso merece um post especial…Afinal temos uma avalanche de imagens cuja ocupação com a narrativa inexiste, muito menos um preocupação, mesmo que de relance, com o que significa para o sujeito contemporâneo narrar uma história…
Milinha
Também assisti a essa mesa no Foto em Pauta… E saí de lá também com muita coisa pra pensar… Uma delas foi exatamente essa correria da redação (a falta de tempo para sair do convencional – ter paciência e tempo para digerir algo e conseguir captar algo a mais)… E fico pensando em que vai acontecer nesse novo panorama do produto multimídia… As redações, muito provavelmente, não vão investir mais (sem contar grandes agências internacionais e mesmo nacionais, talvez ligadas a emissoras de televisão, entre outras, onde a entrada de capital é maior)… No restante, vai ficar o mesmo pessoal para produzir algo que gasta mais tempo… O risco de se cair no banal, convencional vai aumentar drasticamente… E a chances de não se fazer nem um vídeo nem uma cobertura fotográfica tradicional boas vai só aumentar… Imagina um fotógrafo sem tempo, sabendo que precisa de fotos pra um vídeo e que precisa finalizar aquele material e pensar no áudio… Que horas ele vai poder olhar pra cena a sua frente e fazer o seu papel de fotógrafo?
Uma opção interessante é mesmo a da Magnum… Não que seja mais fácil, pois a construção da narrativa que eles fazem é incrível e creio que isso dê trabalho (mas um olhar experiente consegue fazer isso mais rápido talvez), mas eles simplificaram o processo em termos técnicos… O que já é uma boa… E deixa mais tempo para a construção da narrativa e a coesão da reportagem… Seguem dois projetos que curto bastante:
http://inmotion.magnumphotos.com/video/capitolio
http://www.theglobalfund.org/html/accesstolife/en/
Tudo bem que o segundo não vale! Já que são papas da fotografia… Nem nos comparamos… Mas vale o horizonte de inspiração! =)
Conheci o coletivo de vocês em POA, quando tive a chance de ver o trabalho da Priscila! Gostei bastante!
Abraços mineiros,