A foto acima pertence à artista sérvia Marina Abramovic e foi apresentada inicialmente como vídeoperformance em 1978 com o título “Art must be beautiful, artist must be beautiful” (Arte deve ser bela, artista deve ser belo). A obra agora faz parte de uma vídeo-instalação ainda em produção intitulada “Galeria de retratos em vídeo”. Marina se coloca em frente à câmera repetindo a frase do título na medida em que penteia o cabelo.
Esse movimento é executado sem intervalos à exaustão e leva a artista ao momento que vemos na foto, minuto de quase desespero em que ela se machuca com força num ato de auto-flagelação. A foto, na verdade, não é a obra em si, mas é ferramenta utilizada por Marina para registro de sua forma de expressão – aquela coisa de fotografia dos artistas ou arte dos fotógrafos que alguns pesquisadores (como André Rouillé) tem debatido atenciosamente e outros tem rechaçado (Juan Esteves, quando veio à Semana de Fotografia do Recife, falou que achava esse debate bem desimportante). Na verdade, nem sei dizer se julgo o debate importante ou ultrapassado – o que me prende diante dessa imagem não é esse dilema.
Trazer Marina Abramovic para o 7 foi a maneira que encontrei de falar de imagens que eu, na verdade, não podia ficar olhando para sempre ou pelo menos, preferia não ficar. Porque tenho que confessar uma certa dificuldade que sinto em ficar olhando para sempre uma foto. As fotos que me tomam mais não costumam ser as que tenho vontade de ver eternamente, mas as que me tremem, me provocam impacto físico mesmo só de ter que ficar pensando no que vi.
Não podia ficar olhando para sempre essa foto de Marina Abramovic porque me parece que certos aspectos do sofrimento, da dor, do corpo só podem ser contidos num instante, num momento de agonia que não pode ser prolongado.
Percebo que essa imagem segue um viés produtivo que tem sido muito recorrente na arte dos últimos anos e que tem alcançado muito espaço na produção fotográfica contemporânea. Faz parte do grupo de artistas que se coloca dentro de sua obra, seja ao revelar aspectos de sua vida íntima e de sua personalidade, ou ao apresentar o seu corpo como produto visual – geralmente de forma sofrida, pesada – como Nan Goldin, Sophie Calle, Fernanda Magalhães, Rodrigo Braga. Esse tipo de arte enfrenta muito preconceito porque, além de ser visto como simples narcisismo, muitas vezes não tem seu debate levado a sério e luta para não ser tratado da mesma forma que qualquer outra exibição da vida privada – cada vez mais explorada em redes sociais.
Olho para a foto de Marina Abramovic e vejo uma mulher em movimento, não consigo vê-la parada, congelada por uma fotografia, e não consigo me dispor parada na frente dela. Me deixo levar por esse movimento, em parte pelo jeito com que sua sombra vem se aproximando de seu corpo e, em parte, pela forma com que suas mãos deixam um rastro, um risco na tela, como quem atesta que aquele corpo nu passou rasgando a superfície da imagem.
Há imagens que são assim, como rasgos, mesmo que não as olhemos para sempre, elas permanecem. Latejando.
Não acho que olhar para sempre signifique ficar olhando incessantemente para a imagem, até a ação tornar-se uma anestesia, mas tê-la como referência de desvios provocados em nossas vidas. Como diz aquele belo textinho de Claudia Linhares “E vai dizer que nunca sentiu uma fotografia desviar seu caminho?”, que pode ser lido aqui: http://revistanuestramirada.org/suenodelarazon/claudialinhares
Acho que as fotos que olhamos para sempre são essas, as que nos deixam de outra maneira, nos fazem repensar o trajeto.
Cheiros, Jô! Gostei do textinho e da abordagem que você deu ao tema.
Nem acho que “olhar para sempre” tem a ver com anestesia. Minha ideia tem mais a ver com o fato de que algumas imagens se dão mais à contemplação que outras. Sem mensurar se isso é bom ou ruim. Eu, particularmente, me sinto mais tocada por essas que me causam incômodo mesmo, mas isso não é um atestado de qualidade. Todas as imagens podem provocar o desvio nesse nosso caminho, algumas fazem isso nos mostrando um novo percurso; outras, nos tirando o chão. É só uma diferença de modo.
Joana, ainda que vista como um rasgo e sofrível, a fotografia move-se o tempo todo e de forma multilateral. De início, vi extrema exultação. Só depois de lido o texto tive outra visão, a real, a dor! Acredito na força de uma fotografia de tamanha expressão como a de Marina Abramovic. Isto é sublime e a mim não rasga, me toma e consome! Gostei da fotografia e gostei muito do seu texto!
Abraço!
Clebeson, muito obrigada. cada pessoa tem um relacionamento diferente com cada imagem, gostei muito de saber o seu. 🙂
Jo, como essa foto me inquieta… me fez lembrar muito do trabalho da Ana Mendieta, do Hans Bellmer e da Francesca Woodman. Fico pensando se esse certo desdem a um trabalho em que o artista expõe tão fortemente a si mesmo não incomoda porque revela o superficial das midias sociais, a fragilidade dos laços humanos por esses tempos neoliberais, o amor líquido de que fala o Zigmund Bauman ou ainda que as imagens da caverna de Platão são apenas imagens e não vida real.
Seu texto e a foto da Marina me levaram a questionar se não estamos com medo de nós mesmos, se não desaprendemos a lidar com nossos afetos, nossos sonhos, desejos, inseguranças… Me parece que mostrar nossas fragilidades hoje é uma ousadia, uma grande provocação.
Essa fotos em dúvida desvia o meu caminho. Será que ela hoje também não serve de espelho para o outro ver em si mesmo aquilo que não quer?
val, você sempre com tanta sensibilidade e delicadeza… acho que é isso mesmo do amor líquido de bauman (quem não tem acesso ao livro pode dar uma lida nessa resenha, pra saber ao que você se refere: http://www.unitau.com.br/scripts/prppg/humanas/download/Humanas%202005%202/Pdf/9%BA%20art..pdf), da fragilidade dos laços e da superficialidade da nossa forma de lidar com o mundo. A superficialidade é mais confortável e segura. muito obrigada pelas referências que você trouxe!
Da dor que permeia o movimento
o corpo grita sem sem suor
e gira e clama seu lamento
em traços duros de crayon,
e cores frias como o coração
de quem nunca amou,
ou já mergulhou
numa profunda busca
de si
mesmo
que nada tenha encontrado.
Eron Villar
abr 2011