Na última segunda-feira, eu assisti a uma palestra do antropólogo alemão Christoph Wulf, intitulada “A criação do homem pela imaginação”. Confesso que a palestra não me trouxe novas reflexões, como eu esperava, mas me fez retomar alguns questionamentos (ou, talvez, desabafos mesmo) que relacionam a imaginação, a fotografia e seu processo criativo.
Imagem – Imaginar – Imaginação. Somos, por natureza, seres ligados ao imaginário. Quando projetamos e criamos imagens dentro de nós, podemos simular situações, sonhar, lembrar. Flusser diz no livro Ensaio sobre a Fotografia que a imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens e esse poder de abstração é inerente ao ser humano.
Naturalmente, não somos dotados em nosso corpo de um órgão que possa “projetar para fora as imagens que forjamos dentro de nós”, como cita Arlindo Machado na obra Pré-cinemas e pós-cinemas. Assim, para exteriorizar essas “imagens imaginadas”, precisamos de alguma mediação técnica, do uso de artifícios, já que não basta imaginá-las para comunicá-las. É apenas através de tal mediação que CRIAMOS imagens que povoam o mundo e se somam a ele, imagens que reproduzem, representam e se tornam o que vemos, pensamos, que comunicam o que sentimos, que registram.
Criar: está aí uma palavrinha repleta de tabus! É triste pensar que, ainda hoje, quando os instrumentos que utilizamos para “botar pra fora” nossa imaginação são lápis, tinta, pincel e espátula, consideramos forte o poder criativo presente à imagem produzida, enquanto, por outro lado, quando o assunto é a produção de imagens através de fotografia (e de outras tecnologias mais mediadas), costuma-se relativizar o conceito de criação.
A câmera, por dar um salto tecnológico, cultural e industrial na prática de produzir, consumir e perceber as imagens, fez com que a fotografia – imagem produzida a partir dela – tenha seu poder criativo visto como inferior. É como se, com o surgimento da fotografia e de suas possibilidades automáticas, a técnica (o aparelho) tivesse se tornado superior ao homem e sua própria imaginação; como se a câmera, muito mais facilmente do que um pincel, como não exige muitas habilidades artesanais para ser manuseada, livrasse a fotografia de seu potencial criativo. Quantas vezes não ouvimos frases do tipo “ah! Que foto linda! Mas, também, com uma câmera dessas…”?
Porém, desde que foi planejada ou inventada, a fotografia vai além de sua técnicas e de uma ferramenta de reprodução do real (e isso existe?) e cria novas linguagens e novos modelos epistemológicos. É esse valor simbólico, o forte caráter comunicativo, que confere à fotografia o poder de modificar a vida dos homens. “Graças à fotografia nos apropriamos simbolicamente do mundo e mediamos nossa percepção do próprio e do distante”, disse Laura González Flores, na obra Fotografía y pintura: ¿dos medios diferentes?.
Fotografia não é só câmera e não é só fato. Mas TAMBÉM é um autor, que direciona a ação segundo seus critérios, e um leitor, que se soma em suas significações. A fotografia é fruto de um processo criativo, de uma rede de criação, que se inicia muito antes de sua concepção e se segue até muito depois do clique: enquanto a foto existir, ela comunica algo e se re-significa constantemente.
A criação fotográfica é dinâmica, móvel, plástica e inacabada. O tempo inteiro são dadas ao autor inúmeras possibilidades de obra diferentes. E a obra tida como final é apenas uma possibilidade daquilo que ainda pode ser reutilizado, modificado, transformado. Todo fim é apenas uma versão (geralmente arduamente) escolhida, segundo múltiplos critérios. Mas o próprio tempo transforma a obra. São tendências, propósitos, que se misturam com o acidental, o acaso.
Cecília Almeida Salles comenta em Redes da criação: construção da obra de arte, que “a obra não é fruto de uma grande idéia localizada em momentos iniciais do processo, mas está espalhada pelo percurso”. Viver, experimentar, conhecer pessoas, ver fotografias, são interações que vão desde sempre se conectando, nesta mistura de acaso com tendência, na construção de um possível resultado fotográfico.
As memórias, os imaginários, os corpos estão carregados de histórias e metas a serem depositadas em cada processo criativo que se realiza. Devemos considerar a relação do fotógrafo com sua própria história ou com a matéria-prima fotográfica. Ele deve escolher constantemente dentro das possibilidades de recursos que a fotografia oferece: pensar na lente, na exposição, no ângulo em que se posicionará, no foco, na composição, na luz, no suporte, na revelação ou no tratamento digital, no tamanho da imagem, no corte, no formato, em que imagens selecionará, etc. E, como disse a Cecília Salles, no mesmo livro citado acima, “lidar com matéria-prima está diretamente relacionado a técnicas”. A fotografia é criação do equipamento, sim, também. Mas dentro da gramática de cada técnica e de seus manuais de uso, o autor busca sua própria sintaxe.
Também devemos considerar o símbolo fotográfico em relação ao seu leitor. É claro que, ao criar uma imagem, o fotógrafo deseja compartilhar uma idéia sua e, como diz Vincent Colapietro no livro Peice’s approach to the self, as idéias se espalham e se expandem, uma vez que é uma característica da sua natureza. Porém, o observador de uma fotografia também é criador de significados. Toda obra e toda fotografia estão sempre passíveis de ganharem novas roupagens interpretativas, novas conexões, somando-se às experiências de vida de cada um que as experimenta. As condições interpretativas de quem vê uma fotografia também influenciam nos sentidos que ela pode vir a ter: o ambiente, a época, a experiência de vida do intérprete. Enfim, a fotografia continua constantemente ganhando novos significados, se refazendo, se recriando, em diversas instâncias.
O lugar da criação não é a imaginação de um só indivíduo, mas há locais múltiplos de criatividade onde todos interagem. Obras e criadores estão sempre em mobilidade, imbricados nessa rede de interações e novas significações. E a fotografia é um campo rico de possibilidades criativas, em todas as relações que integram seu processo.
será que esse preconceito contra a fotografia em relação a outras expressões ocorre porque o povo confunde criação e mediação?
sei lá, parece que as pessoas só consideram o momento em que o pintor pincela, o escultor lapida e o fotógrafo aperta o botão. parece que nunca refletem sobre o que vem antes disso. é como se uma imagem criada pelo homem, concebida pelo seu imaginário, tivesse que ter uma externalização demorada. quanto mais tempo leva, mais humano é…
uma fotografia pensada tem tanto poder criativo em sua composição quanto qualquer outra expressão visual imaginada.
Acho que é tudo fruto do fato da natuza da fotografia depender de um referente concreto. Só se fotografa o que está diante da câmera…. O pintor pinta o que ele quiser, sem depender da concretude das coisas… São processos criativos diferentes e ambos cheios de poder. Mas a fotografia é cheia de particularidades polêmicas desde sua criação: é arte, é tecnologia, é uso social popularizado, é ciência, é comunicação. Complicada e peculiar, ao mesmo tempo que democrática e multimidiática…
É isso aí, belo texto, a fotografia é um lugar em que se encontram um autor, a cultura e o mundo de visualidades contingentes que está diante da câmera. Negar qualquer uma dessas instâncias é mutilar a fotografia.
Obrigada, Entler! É sempre um prazer tê-lo participando do nosso blog!
Eu concordo com o que você diz, a questão, pra mim, que é mais difícil, é conseguir passar que aquela foto tem um significado. Ou melhor dizendo, é conseguir que aquela imagem tenha um significado pra você, o fotógrafo. Tirar uma foto por tirar, utilizando as técnicas, pra quem conhece, não é difícil fazê-la ficar bonita. Mas não acho que algum fotógrafo queira só isso. O complicado é justamente essa parte criativa. Essa parte em que você pensa e sabe exatamente o que quer mostrar. Que tenha, digamos, algum sentimento seu ali. Por mais que outras pessoas vejam de forma diferente. Que, na verdade, é o que vai acontecer. Mas que pra quem fotografa ela signifique alguma coisa. Não seja apenas uma foto bonita de se ver.