Na última semana, aconteceu o 5º Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre – FestFotoPoa. Acompanhei a programação pelo livestream (esse achatador de distâncias amigo de todos nós) e, particularmente, achei que o festival foi muito bem-sucedido em movimentar nossas cabeças com uma série de encontros e debates estimulantes. O 7 esteve lá, com Ana Lira e Val Lima, como vocês viram nos posts de cobertura do evento, e Priscilla Buhr, convidada para compor a mesa de “Encontros com o autor: Fotograma Livre 2010”, na última sexta-feira.
Essa coisa de encontros com o autor realmente me conquistou. Gosto de ver a pessoa falando sobre seu trabalho, suas reflexões, seu método ou sua falta dele, suas dúvidas – nessa luta contínua entre revelar e se proteger, proteger sua obra. Foram cinco encontros com o autor, entre eles, a mesa dos vencedores do Fotograma Livre 2010, da qual Priscilla fez parte, junto com Alexandre Severo, o outro vencedor na categoria individual, e Carine Wallauer e Gabriel Honzik, vencedores na categoria de trabalho coletivo (vídeo “Quando afundam”, abaixo). A reflexão que deu origem a esse Diálogo #009 surgiu justamente durante essa mesa, que você pode assistir na íntegra no link disponibilizado pelo festival.
Como já dito por Val e Ana Lira, a mesa teve como critério de organização o fato de os participantes terem sido premiados no mesmo concurso, o que acabou provocando uma clara dicotomização entre os trabalhos apresentados. De um lado, Severo e Priscilla, com apresentações processuais e depoitivas sobre os seus trabalhos; do outro, Carine e Gabriel, com apresentações expositivas e breves comentários.
É importante dizer que minha idéia de dicotomização não se baseia em nenhuma análise qualitativa, mesmo porque, amiga de Priscilla como sou, não tenho nenhuma ilusão de analisar imparcialmente o trabalho dela. Mas acho que essa divisão em opostos foi reafirmada pelo discurso de cada um dos participantes e por suas formas muito individuais de lidarem com a fotografia.
O primeiro a falar foi Gabriel Honzik e acho que o grande destaque do seu depoimento foi o fato de que, em poucos minutos, ele remexeu em algumas das principais vaidades da classe fotográfica. Gabriel que, vale frisar, se define como um “fazedor de filmes” e não um fotógrafo, falou sobre o seu estranhamento em participar de uma mesa de discussão sobre fotografia porque,
“na verdade, não penso muito sobre fotografias. Acho que devo ter lido um livro sobre fotografia na minha vida, então é difícil falar sobre o que é fotografia. Porque afinal, no fim das contas tu aperta um botão e tem uma foto. E hoje fica cada vez mais difícil tu reconhecer uma fotografia boa de uma fotografia ruim”.
Ele comentou também que 90% de suas fotos saíram por acaso, o que explica essa dificuldade em falar do processo de criação. As imagens possuíam uma linguagem lomográfica, com muito desfoque, vinhetagem, pouco controle de luz e cor, num discurso claramente espontâneo, ou experimental.
Carine, como uma boa parceira, seguiu a mesma linha de apresentação mas fez questão de enfatizar sua relação extremamente pessoal e autobiográfica com a fotografia, ressaltando sua dificuldade em se classificar como fotógrafa e falar sobre isso. Achei muito interessante o fato de Carine apresentar as fotos que ela fez para o ensaio ganhador do Fotograma Livre no mesmo “amontoado” em que colocou fotos de viagens e fotos de momentos íntimos entre os dois.
“Eu considero as minhas fotos como um grande álbum da minha vida, que eu vou construindo ao longo dos anos. Fotografia é uma atividade da minha rotina e é um pouco de mim”, afirmou de forma muito suave.
Confesso que, ao mesmo tempo em que recebi com certo impacto e até preconceito o depoimento de Gabriel sobre não pensar em fotografias, entendi melhor o trabalho dos dois na voz de Carine e comunguei muito com esse pensamento. É como se Carine falasse, sem muita pretensão: a fotografia é o que está dentro de nós, no jeito displicente e irresponsável de Gabriel, e nela, em sua colocação íntima e despretensiosa. Tive a impressão de que o trabalho dela era um pouco mais maduro, até por sua intenção em lidar com a imagem fotográfica como parte de seu cotidiano, em contrapartida à desintenção de Gabriel e ao seu interesse declarado em fazer filmes não fotos.
Fiquei muito intrigada com essa relação da fotografia com os conceitos e acabei me perguntando: é preciso conceituar uma imagem para que ela tenha força discursiva, para que ela seja considerada uma boa imagem? Lembrei de Farkas que dizia que a fotografia não precisa de nenhuma justificativa ou explicação, afinal, explicá-la poderia tirar o seu mistério. Para ele, “a fotografia emociona ou não emociona”. Simples.
Fico pensando nessa necessidade de um discurso firmado sobre a própria obra, nessa falsa expectativa de que um autor precisa e chega a ter domínio sobre os discursos surgidos em seu trabalho. Lembrei de Luiz Carlos Felizardo, que abriu o primeiro encontro com autor do FestFotoPoa deste ano (confira aqui). Em mesa que contou com as participações ilustres de Pedro Vasquez, Rubens Fernandes Jr. e Cristiano Mascaro, Luiz Felizardo pouco disse além de que não tinha ideia do que poderia dizer depois de ter visto seu trabalho ser analisado por essas três figuras super importantes da fotografia brasileira. Falou apenas do constrangimento de ouvir falar de si, ainda que ele pudesse concordar com algumas coisas do que foi dito. Completou: “a exposição está lá, o que eu quis dizer está lá”.
Como primeiro descobri afeto em palavras para depois reconhecê-lo também em imagens, eu digo sem constrangimento que eu adoro um conceito. Mas gostei dessa falta de conceituação de Carine e Gabriel porque remexe em alguns terrenos delicados, em alguns enquadramentos conservadores meus também. E isso tudo sem pretender nada.
Esses meus questionamentos tomaram proporções maiores quando a apresentação do casal foi seguida pelos discursos de Severo e Priscilla, que dividiram com a gente boa parte do processo de construção dos trabalhos deles, falando sobre a idéia inicial, o amadurecimento durante a produção, as dúvidas, as mudanças na execução, os resultados, a forma de difusão, as adaptações.
É interessante refletir sobre os diferentes relacionamentos com a autoria que essas três apresentações denotam. Em certo momento da palestra, Severo falou sobre a novidade que é para ele a possibilidade de ser autor:
“Me colocar como autor é uma novidade para mim, na verdade. Minha formação é de fotojornalista, mas venho me descobrindo como fotógrafo há um certo tempo. […] A partir do momento em que eu passei a perceber um pouco mais a capacidade de experimentação do meu trabalho, me livrar de pressupostos que são intrínsecos ao fotojornalismo, a partir disso fui fotografar de forma mais livre”.
Dessa forma, Severo afasta um preconceito comum: o de que o trabalho do fotojornalista não é autoral. A autoria, afinal, não está na temática. Ok, mas está onde? Não consigo dizer que a autoria está só no discurso, nem só na intenção – apesar de muito me interessarem esses dois aspectos. Lembro do caso de Eugéne Atget, no final do séc. XIX: fotografando simplesmente para produzir imagens que pudessem ser utilizadas como modelo para ilustradores, arquitetos, desenhistas, Atget criou uma atmosfera muito particular sobre a França de seu tempo e, mais tarde, foi reconhecido como um dos fotógrafos predecessores da fotografia como forma de expressão.
O discurso de uma imagem pode até ser criado no momento do clique, mas só vai surgir no encontro com o olhar do outro. Afinal, imagens são feitas para serem vistas e ecoarem.
Achei muito curiosa a comunhão, na mesa do Fotograma Livre 2010, de formas tão diferentes de lidar com a imagem. Carine e Gabriel parecem fotografar como quem brinca com a câmera, com leveza e sem intenção. Severo e Priscilla falaram sobre fotografar com dor, de forma refletida e sofrida. Mestre Júlio, que participou da mesa de encontro com o autor no domingo, ao lado de Luiz Santos, deu uma declaração que acho que faz uma síntese muito boa sobre essa multiplicidade que compõe e confunde tanto o campo fotográfico: “a fotografia é um todo, ela não pode ser fragmentada, não pode ser dividida […] Porque, senão, a gente termina por podar uma árvore tão bonita”.
A ideia é mesmo essa: a fotografia é feita de muitos tons.
fiquei pensando muito, muito, muito no peso dos conceitos e definições na fotografia depois da mesa que participei.. na verdade continuo pensando e teu texto trás as mesmas questões que estão aqui borbulhando no meu juízo..
fotografia é isso.. e “ISSO” não é nada pequeno.. instigante, Jô.. instigante!
brigada, jo, por esse texto! =)
Não concordo, nem discordo. Muito pelo contrário. Mas me fez pensar sobre essa conversa. 😉
Também acompanhei a mesa dos quatro e reafirmo minha impressão: os dois primeiros (principalmente Gabriel) foram tolos… Faltou-lhes maturidade para desenvolver um pensamento lógico, para uma platéia de, acredito, desconhecidos! Fico imaginando no que eles diriam sobre si mesmo e seus trabalhos se não tivesse um ano inteiro para pensar…
Olá.
acho que mais importante do que discutir aquilo que dissemos, é estar aberto para sentir o que mostramos. o poder da imagem não está naquilo que falamos sobre ela, mas sim na narrativa que ela mesmo produz. não fui ao festival para criar ou promover uma imagem pessoal de fotógrafa, que não sou. fui como uma pessoa que gera imagens, não discursos. fui convidada a ir ali para expor meu processo de criação. desculpem se pra mim a fotografia não é uma dor. desculpem se pra mim fotografar é uma alegria, uma forma de eternizar o amor que eu sinto pela minha familia e pelos meus amigos. desculpem se eu não fico pensando antes de fotografar, se eu apenas aperto um botão. desculpem se eu prefiro, ao ver uma foto, imaginar o que se passou naquele momento, criar o meu mundo para aquele mundo. enfim, desculpem se não dissemos o que queriam ouvir. fomos apenas o que somos, e se isso nos torna tolos, paciência.
quanto ao fato de sermos um coletivo ou um casal, postado em outro momento aqui no blog, não vejo a relevância de tal discussão. podíamos ser mãe e filho, deus e o diabo, antes e depois. se no ano passado resolvemos criar um vídeo em conjunto e nos denominarmos coletivo, nada nos impede de ter trabalhos individuais. quando se fotografa a vida que se vive, é natural que a produção siga a inconstância do viver. se em 2010 queríamos ser um, hoje queremos ser outros.
se naquele dia geramos dúvidas, gostaríamos de ter tido a possibilidade de respondê-las. é muito fácil criticar aquilo a que não se conhece. e de fato, não conhecemos. quero dizer, olá, meu nome é Carine, muito prazer.
Parabéns, Carine! Acho que, por muitas vezes, acabamos por esquecer que, mais que arte, mais que registro, mais que documento, mais que afetividade, mais que comunicação ou que qualquer outra coisa, a fotografia é livre. Acho lindo que exerçam suas liberdades, utilizando o recurso, a técnica, a linguagem, o equipamento, a imagem fotográfica como bem entenderem. E mais parabéns ainda, porque acho as imagens produzidas por vocês muito bonitas e, sim, tocantes! Infelizmente, principalmente em eventos como esse, é normal que as pessoas se coloquem à espera de textos, teorias e verbos que possam embasar seus próprios processos, seus pensamentos e métodos: clarear as idéias. Mas você não tem que dar o que se espera, se assim não for honesto. Por outro lado, como produtora de conteúdo, deve estar preparada para receber os comentários (também honestos e críticos) dos que experimentaram a presença de vocês ali na mesa. Obrigada pela transparência e parabéns novamente!
Não diria tolos, mas sim, faltou-lhes maturidade. Além do mais, se você não quer ser reconhecido como artista, não sairia por aí se escrevendo em um concurso que julga justamente isso. Obviamente, ninguém tem obrigação de definir fatores com dimensões incontáveis ou até mesmo invisíveis, mas é preciso uma linha de raciocínio e até uma certa humildade para que se toque em assuntos assim, tão profundos. Se você se pôs em uma posição de destaque, não espere que as pessoas se calem e não lhe cobrem propósitos ou até mesmo os meios.
Parabéns pelo texto, Joana!
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