“Nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Hoje é que nós estamos a viver de fato na caverna de Platão. As próprias imagens que nos mostram a realidade, de alguma maneira substituem a realidade. Nós estamos a repetir a situação das pessoas aprisionadas na caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que essas sombras são a realidade.”
José Saramago
Há alguns anos fiz uma viagem em que fui bastante criticada porque eu não fotografava e me senti quase uma herege por não carregar o tempo inteiro a câmera na mão e querer conhecer o lugar e suas pessoas com meus próprios olhos sem um equipamento como mediador. Eu ainda era estudante e começava a observar a relação das pessoas com as imagens e a realidade.
Há bem pouco tempo, em uma de minhas aulas, estava revendo o documentário Janela da Alma e o depoimento do escritor José Saramago ficou ecoando na minha cabeça, como se eu estivesse vendo o filme pela primeira vez. E questionei aos meus alunos se eles pensavam nas imagens que viam e produziam. Quase todos se mostraram surpresos, pois não se reconheciam como produtores de imagens e apresentaram um discurso no qual as fotografias e os vídeos, quase sempre, eram vistos como espelhos do real.
Com a popularização das câmeras digitais, a produção em massa da fotografia nos apresenta números colossais. Para se ter uma idéia, até o final do ano de 2010, a rede social Facebook, contava com cerca de 60 bilhões de fotografias publicadas. Ou seja, nós vivemos num mundo audiovisual, como nos diz Saramago no filme, mas será que sabemos lidar com a onipresença das imagens nas nossas vidas?
É fato que nossa sociedade hoje se satisfaz com as sombras, que as pessoas estão vendo imagens e acreditando que elas são realidade, haja vista a impressionante quantidade de gente que assiste o mundo através do display das câmeras e celulares. Quantas pessoas deixam de curtir o show, o jogo, a peça de teatro, seu ídolo ou sua música preferida, para fotografar e filmar o que está acontecendo? Por que as pessoas preferem ver uma imagem e não o real que está ali, bem na sua frente?
Essas perguntas muito me inquietam e me fazem questionar qual será as conseqüências vivenciadas por uma sociedade audiovisual que não sabe lidar com as imagens que produz.
E para aprender a lidar com essas imagens, é necessário refletir, mas antes é preciso conhecer. É preciso que as pessoas comuns, e não apenas os profissionais das imagens, reconheçam a fotografia como um código visual que, como nos diz Susan Sontag, modifica e amplia nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos direito de observar.
Fotografias são manifestações do mundo, nos oferecem testemunhos, pontos de vista, despertam desejos, vendem sonhos, fazem parte dos ritos familiares, preservam e constroem a memória, entre tantas outras coisas. E mesmo composta por tantos códigos, o discurso da fotografia como imitação da realidade permanece vigente no senso comum.
É necessário desconstruir essa neutralidade que parece acompanhar a fotografia. E para isso é importante conhecê-la, ser educado para aprender a ler uma imagem, ver o que existe além de sua superfície. Saber que a fotografia é também uma maneira de aprender a ser no mundo, uma ferramenta de relação entre as pessoas e também uma forma de emitir uma opinião.
E tem muita gente que acredita na educação visual como caminho de transformação. Durante o último FestFotoPoA, os seminários sobre Educação e Arte Contemporânea refletiram essa necessidade de trabalhar a fotografia como uma área de conhecimento, com linguagem própria, possuidora de uma sintaxe visual.
Estavam nas mesas Alexandre Sequeira, Miguel Chikaoka, João Roberto Ripper, Dante Gastaldoni e João Kúlcsar, pessoas a quem eu tive o prazer de conhecer e constatar que, para elas, educação vai além da absorção de conteúdos, trata-se de respeito pelo ser humano, de alimentar sonhos e falar de amor.
João Kúlcsar, professor da faculdade de fotografia do Senac SP, desenvolve um projeto de extensão em fotografia com cegos. O trabalho de alfabetização visual permite que os deficientes visuais aprendam a utilizar a fotografia como forma de expressão e também envolve os alunos do curso de bacharelado. O projeto tomou grandes proporções e esse ano lançou calendários com fotografias codificadas para serem lidas por cegos, usando texturas, alto relevo e outras técnicas de identificação.
Alexandre Sequeira, com sua infinita sensibilidade, faz da fotografia vários espaços de afetos. Em seu projeto de mestrado, realizou uma pesquisa num pequeno vilarejo do interior de Minas Gerais,onde estabeleceu um vínculo com Rafael, de 13 anos e seu avô, Seu Juquinha, de 84 anos, usando a fotografia como ponte de aproximação e trocas com a comunidade, o que resultou na criação do Centro de Memória da cidade.
Miguel Chikaoka acredita na fotografia como espaço de formação humana e desenvolve uma verdadeira pedagogia da luz. Para ele, apertar o botão da máquina não é novidade para uma geração que cresceu entre computadores.
Além do trabalho realizado por Ripper e Dante com a Escola de Fotógrafos Populares e a Agência Imagens do Povo, cujo discurso não passa pela inclusão social, mas pela construção de um ser político que possa construir outras narrativas sobre si mesmo.
Como fotógrafa, mas principalmente como educadora, acredito que a educação visual é um caminho libertador, que através dele podemos construir pessoas autônomas, conscientes de si mesmas e do mundo, capazes de fazê-lo mais humano. E só posso defender nossa obrigação, enquanto profissionais da imagem, de refletir sobre a nossa produção e sobre a nossa responsabilidade de trabalhar o olhar do outro e não aceitar um discurso ingênuo e sem reflexão.
isso mesmo! com o tempo é possível entender que a experiência de produzir imagens implica inclusive no ato de não produzi-las! sem falar que contemplar é sempre mais que apenas ver: é ouvir, tocar, reagir, etc, referências sensoriais que de uma forma ou de outra influenciam nossas decisões numa futura produção. às vezes isso é muito positivo, mas quando não, o que fazemos? damos um tempo, contemplamos outras coisas a fim de descondicionarmos o olhar. é nessas idas e vindas que nos educamos. não fotografar também é preciso!
Olá, sou educadora e fotógrafa. Como educadora tenho muito anos de experiência e como fotógrafa ainda trilho meu caminho. Gostei muito do seu artigo e também venho numa batalha com a alfabetização visual. Acabei de terminar um curso técnico de fotografia e fiquei incomodada pelo fato de que os fotógrafos ainda são tratados e educados a somente produzir imagens, sem pensar sobre elas, terminando o curso com um material cheio de clichês imagéticos.
A reflexão, o pensar é o caminho para mudar, crescer e nos tornar pessoas que vão além de ser autônomas, mas sim emancipadas.
Transcendendo os conceitos, criando e modificando o meio em que vive. Fazendo a diferença.
Parabéns pelo texto!
Lindo, Valzita! Temos que lutar pela queda dessa ingenuidade em relação as imagens que tanto nos falam. Amei o texto! (e olhe que eu num curto muito essa coisa de Platão, não, viu… Mas vindo de Saramago – e de tu – pode! ;p)
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