Foram dois meses de divulgação intensa na internet, em várias redes sociais, além de busca de parcerias e apoio de amigos, até o último dia 3 de junho, quando o Coletivo Garapa pôde celebrar a colaboração de 95 pessoas e a arrecadação de 16.905 reais para a execução da segunda fase do projeto Morar.
Iniciado em 2008, como uma proposta de documentação das histórias das famílias que moravam em edifícios conhecidos como treme-treme, no centro de São Paulo, o projeto Morar vai ganhar uma nova perspectiva, mais próxima da atual fase do coletivo, que também passou por mudanças nesse período, ampliando as suas formas de atuação e agregando outros elementos no processo de construção narrativa.
Para falar sobre o projeto, as novas perspectivas do Garapa, o modelo de financiamento que garantiu a retomada do Morar, a equipe do 7 entrevistou Paulo Fehlauer, durante sua passagem por Recife para participar de mais uma etapa do projeto Rumos Música Coletivo, que está rodando o país. A conversa rendeu tanto e trouxe tantas questões que optamos por publicá-la como Diálogo desta semana. Esperamos que ela possa colaborar com reflexões tanto aqui no blog como em outros espaços de discussão. Boa leitura e bom debate!!!
O que motivou o Garapa a se aproximar dos assuntos que levaram ao Morar?
A idéia era fotografar o São Vito (no Centro de São Paulo), que era chamado treme-treme e já estava vazio desde 2004, quando foi desocupado. Nós íamos entrar no prédio em ruína, fotografar o interior porque tinha muita memória lá dentro, documentos, móveis e objetos pessoais. Nesse processo, nós percebemos que o Mercúrio ia passar pela mesma coisa: aquelas pessoas sairiam do prédio e isso era muito mais forte porque estava acontecendo naquele momento. Esse era o gancho, mas, acho que por vir do jornalismo e querer fazer um trabalho documental, nós sempre tivemos um interesse por temas que se colocam dentro de questões sociais e essa questão de habitação em São Paulo é muito forte. As políticas públicas são feitas muitas vezes sem perguntar o que as pessoas diretamente afetadas pensam disso, sabe? Então, começou todo o processo.
Como vocês chegaram até essas famílias? Já havia um contato anterior ?
O coletivo bateu na porta do prédio, que já estava sendo desocupado. O acesso às pessoas já era mais difícil. O porteiro, por exemplo, não queria liberar o acesso, mas nós começamos a falar que íamos visitar, que não tínhamos o objetivo de documentar e entramos em contato com algumas pessoas que estavam no prédio nesse momento. Eu acho que eram umas trinta famílias e conhecemos umas oito delas. E elas abriram a porta, a casa. Acho que eles tinham necessidade de serem ouvidos. E foi interessante porque juntou duas vontades: a deles de falar e a nossa de ouvir. Foi criada uma relação muito forte entre eles e nós.
Pelo que você disse, foi tranquila a relação de três profissionais da imagem no cotidiano das pessoas que vocês fotografaram. E como foi com os demais?
O coletivo acabou não se fechando, mas, se for pensar, existem níveis de participação. A Selma e a Maria são as pessoas principais, de certa forma. Elas estão muito presentes no trabalho porque foram elas que abriram. A Selma passava muito tempo em casa cuidando dos filhos das outras que iam trabalhar. O contato começou e ficou mais forte com ela, mas foi espalhando para os outros. Tem uma cena que editamos no trabalho em que elas estão discutindo e uma diz: “tem que falar para a câmera” e a outra diz “ah, mas esses aí não estão fazendo nada”. É como se o fato do nosso trabalho não passar na Globo, em uma rede de TV, não tivesse tanto impacto. Então, talvez por isso, elas nos deixaram permanecer lá.
Que tipo de formato vocês optaram para editar esse primeiro trabalho?
O que mais funcionou foi o ensaio fotográfico, apesar do coletivo ter feito bastante coisa em vídeo. Editamos um material, mas como demandou um trabalho muito maior, nós recortamos alguns depoimentos para usar em projeção, mas nunca existiu uma edição oficial de vídeo desse material. O ensaio fotográfico foi o que circulou. Ele entrou no Laberinto de Miradas, que circulou todos os países da América Latina e terminou agora na Espanha. Depois, virou também a exposição Habite-se em São Paulo, junto com o pessoal que documentou o São Vito em 2004. Não tem um viés definitivo, mas acho que não tem muito como ter porque a gente vai continuar e provavelmente alguma coisa do material feito três anos atrás vai fazer parte desse novo trabalho.
O que vocês perceberam durante a estadia com eles que o coletivo não havia cogitado quando pensou em documentar a história dos dois edifícios?
Acho que o ponto-chave de todo o trabalho que se propõe documental é você perceber que todas as suas pré-concepções não batem com a realidade. Você é motivado a pensar “eu quero fazer esse trabalho porque acho que ele vai ajudar a mudar alguma coisa”, mas no fundo você percebe que não é assim e isso vira um choque. As pessoas abriram a porta delas e contaram uma história porque tinham, de certa forma, a esperança de que aquilo ajudasse a reverter alguma situação. No fim, tanto elas se frustram quanto nós temos que rever a forma como a gente propõe algo, sabendo que isso não vai necessariamente fazer com que a prefeitura mude de opinião. Esse pensamento foi mudando porque começamos a perceber aquilo como uma história que era legal de ser contada e na qual a relação com as pessoas era muito mais importante que o fato em si. Foi uma grande lição não só para acabar com a ingenuidade de que você vai realmente mudar, mas para pensar que você pode ter uma relação com aquelas pessoas, tentar entender e dizer alguma coisa.
Mas, mesmo neste primeiro momento, você acha que o Morar não teve um impacto?
É difícil medir. As coisas continuaram acontecendo, o prédio acabou de cair, então, talvez aquele objetivo inicial tenha literalmente caído por terra. A Garapa colocou na justificativa da retomada do trabalho que São Paulo é uma cidade meio símbolo de um projeto urbano que vive demolindo e reconstruindo, em geral se destrói para colocar uma coisa nova. Eu brinquei no texto com a questão da substituição por “fachadas reluzentes” e “espaços gourmet” porque a memória do espaço que existia ali é perdida. Talvez, a nossa visão agora seja construir um arco de memória entre hoje e três anos atrás. Ou, mais do que isso, com a história das pessoas que moravam lá, para que isso fique registrado e sirva de reflexão, material de pesquisa e aquele espaço não se reduza somente ao monte de entulho que está lá, hoje. E, com isso, o impacto do trabalho vai evoluindo. Na verdade, impacto teve, nós exibimos na Galeria Olido, que era da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, e a exposição tinha um nome complicado: Habite-se. O habite-se é um certificado fornecido pelo poder público quando um lugar pode ser habitado. Então, isso gerou uma discussão dos movimentos de moradia, do lado dos moradores, e uma discussão nossa com a prefeitura para viabilizar um espaço. Foi importantíssimo colocar uma exposição dessa no espaço da mesma prefeitura que está derrubando os prédios.
Qual foi o debate que os movimentos sociais trouxeram?
Uma questão importante é que os moradores eram inquilinos, na maioria. Eles não estavam ocupando ilegalmente o prédio. Então, eles não tinham nenhuma relação com os movimentos de moradia. De uma hora para outra eles se perceberam como ícones de um processo, sendo convocados pelos movimentos de moradia a se politizar e eles não tinham essa visão. Eles não pensavam aquilo como movimento. Por um lado, foi importante a ação desse movimento para eles se fortalecerem e continuarem brigando, como ocorre até hoje. O problema é que eles eram locatários e a prefeitura indenizou os proprietários dos apartamentos. Oficialmente, eles não teriam direito a alguma coisa, mas tem uma questão social envolvida: as pessoas que habitavam ali não têm condições de buscar outro lugar, não têm comprovante de renda, a maioria trabalha informalmente. Pelo menos 2 mil pessoas tiveram que sair e procurar outro lugar, para que ocorresse um processo de “valorização do centro de São Paulo”, mas uma valorização que pode ser questionada ao transformar 700 apartamentos na extensão de um parque hoje abandonado e no estacionamento subterrâneo para o Mercado Municipal. Alguns movimentos tentaram negociar pelos moradores porque eles não tinham muita noção do que fazer. Mas eu acho que foi importante, também, porque eles perceberam essa dimensão política do que estavam vivendo e estão brigando com a prefeitura até hoje.
É por isso que vocês escreveram, no texto de apresentação, que projetos como o Morar são difíceis de ser financiados…
Primeiro que é difícil financiar projetos independentes, mas o tema é complicado. Não é uma questão óbvia como fome, seca e enchente. É um tema que envolve vários lados e pode ser questionado de vários lados. A Garapa pegou o lado dessas famílias porque, na nossa opinião, é um lado quase inquestionável: elas tiveram a vida delas alteradas por todo um processo político e elas são as vítimas daquilo. Se vai ser melhor para a cidade? Pode ser. Para o geral, pode ser, mas para elas aquela foi uma mudança que alterou completamente o curso da vida delas.
O que levou vocês a acreditarem que um modelo de crowdfunding poderia ser a melhor forma de financiar o Morar? Como vocês conheceram o Catarse.me?
Desde o ano passado, o coletivo começou a pesquisar os modelos de crowdfunding fora do Brasil. Nós fizemos duas entrevistas, uma com o Arnold van Bruegen, do Sochi Project, e a outra foi com a Tina Arhens, do Emphas.is, e a gente já conhecia o KickStarter. Desde o começo, a Garapa quis experimentar não só nos formatos narrativos, mas especialmente na forma de organizar. A idéia de trabalhar em coletivo vem um pouco de sair da estrutura vertical de uma redação e tentar trabalhar de uma forma mais horizontal – e colocar boa parte do nosso material em creative commons vem de uma percepção de que espalhar o nosso trabalho da melhor forma e o máximo que a gente puder é muito mais lucrativo, inclusive financeiramente, do que querer segurar e falar que ninguém nunca pode usar uma foto que eu fiz. Quando a gente descobriu o KickStarter, pensou em colocar alguma coisa, mas precisava criar uma conta nos Estados Unidos e não deu. Então, surgiu o Catarse e eles nos procuraram. Foi na mesma época em que o prédio estava sendo demolido e já tínhamos vontade de continuar o Morar, então, a gente formatou o projeto e colocou no ar.
Na Europa e nos Estados Unidos o público está mais acostumado a pagar pelo que consome na internet. No Brasil, nossa relação com o conteúdo da rede é muito mais informal. Vocês acham que o crowndfounding pode conquistar o apoio do grande público não acostumado a pagar por cds ou livros que podem ser encontrados na rede? Ou será que esse tipo de prática só conquistará um público mais específico, reservado num nicho? Vocês já fizeram alguma análise sobre o público incentivador do projeto até agora?
Nós ainda não fizemos uma análise. O que a gente sabe, e isso é natural em todos os projetos que estão no Catarse até agora, é que começa no seu círculo de amigos, mas vai se expandindo. Sair de um grupo de amigos e chegar a um outro grupo com pessoas que a gente não conhece dá indício de que isso pode expandir para uma cultura. Agora, uma coisa importante de apontar é que existe diferença entre a cultura de pagar por conteúdo e o crowdfunding. Por mais que tenha essa coisa da recompensa, o crowdfunding está mais para uma relação de cumplicidade, de você apoiar o projeto do que de comprar o produto. Pagar por conteúdo é o que o The New York Times e os grandes jornais estão fazendo. O que o crowdfunding faz é criar uma comunidade em torno de um projeto que essas pessoas julgam importante, seja por laços de amizade ou porque acham o trabalho de relevância. Acho que a principal característica do crowdfunding é a relação que se cria entre quem está produzindo e quem está apoiando. Para mim não importa quem pagou 25 reais ou quem pagou 1 mil. Existe um vínculo com as pessoas que me torna responsável por executar bem o projeto. Me perguntaram várias vezes se temos algum mecanismo de prestação de contas. Não existe nada determinado no site, mas é um mecanismo simples: é uma relação de confiança. É uma relação direta com, no nosso caso, 95 pessoas que apoiaram o projeto e querem ver um resultado. Além de talvez milhares de outras pessoas que tenham achado importante, não apoiaram financeiramente, mas divulgaram pela internet. Então, é muito mais sincero e mais empolgante poder desenvolver um projeto assim.
Mas no texto do Catarse.me vocês comentam que vão divulgar os custos do projeto como forma de manter uma transparência no processo…
Já está no Tumblr do Morar uma planilha do Google com os custos do projeto. Quando recebermos o dinheiro do Catarse, já vem com o desconto das taxas do site, então, eu vou colocar na planilha o valor recebido total. Nós temos em uma tabela, de um lado, os itens dos custos previstos, do outro, os realizados e vamos atualizando. A Garapa já faz isso internamente. É só uma forma de colocar isso publicamente.
Existem dois apoios no Morar que vieram por meio de parcerias que vocês buscaram e no qual vocês vão precisar dar um retorno no final do projeto com a realização de um workshop, palestra e a entrada das marcas dos apoiadores no produto final. Como se deu essa articulação?
Isso foi uma lição que a gente aprendeu. A internet ainda é imprevisível. Ela não tem uma receita de bolo. Não dá para contar que eu vou colocar meu projeto, vou mandar 200 e-mails e as coisas vão acontecer. Você precisa estabelecer uma relação com as pessoas, falar do projeto, expor. E isso nós percebemos quando a divulgação espontânea tinha rendido 4 mil, faltando menos de um mês. Então, nós decidimos usar um pouco o meio tradicional, bolar uma proposta e conversar com pessoas que pudessem apoiar mais. No fundo é a mesma lógica: são pessoas apoiando um projeto que está no papel porque confiam na idéia e em quem está fazendo. Não importa se elas vieram pelo site, pelo vídeo que elas viram ou se eu tive que bater na porta e conversar. Ninguém apóia 6 mil reais apenas apertando em um botão. Foram dois apoiadores que ofereceram esse financiamento maior, como pessoa física, mas quem vai aparecer são as logomarcas das empresas.É uma questão de formação de cultura e de uma consolidação. O nosso círculo de apoio se expandiu em dois meses, isso pode ter criado um público potencial para outros projetos. Quanto mais projetos pipocarem nesse modelo, os círculos de cada um forem aumentando, englobando outros, mais se cria uma cultura.
Três anos separam a primeira fase do Morar desta nova etapa que começa agora. O que mudou no Garapa e quais os impactos disso nessa nova documentação?
Uma coisa eu já falei que é aquela questão da ingenuidade, teoricamente, da função do trabalho documental. Ao invés da denúncia, a Garapa partiu mais para o lado da recuperação da memória. Acho que esse é um grande passo. Além disso, tem as questões estéticas e de como nós vamos lidar com a documentação porque nós tínhamos uma linha muito próxima do jornalismo. As imagens anteriores são bem fortes e contrastadas. Hoje, o coletivo está em uma linha muito mais clean. O Mulheres Centrais é exatamente isso, super branco. É uma coisa de deixar as coisas se mostrarem e não apontar o que é mais interessante.
É uma questão de intervir menos?
Não é uma questão de intervir menos, mas é mais uma postura estética de deixar as coisas mais abertas e é uma mudança de um foco mais jornalístico para um foco documental que se aproxima mais da arte contemporânea.
Como essa nova fase do Morar dialoga com outras ações feitas pelo Garapa?
Esse é um projeto que a gente tinha quase abandonado, mas ele sempre ficou ali como uma semente. Então, quando de repente esses prédios caem, o assunto volta à tona e a gente pensou que era importante voltar a ele, e de forma mais amadurecida. O Morar pós Mulheres Centrais é outra visão. Mulheres Centrais não tinha uma denúncia, não tinha um foco jornalístico, foi um recorte que a gente decidiu fazer sobre o cotidiano da vida de dez mulheres. Isso acaba contaminando um pouco a visão do Morar porque muda a forma como a gente vai ver essa relação com as outras pessoas. É um amadurecimento de como a gente vê, inclusive, o papel da fotografia e do documentarismo. É talvez uma busca maior da subjetividade no trabalho documental. O nosso caminho é a nossa relação com essas pessoas e é isso que a gente quer expor. Eu não sei se a visão que a gente vai ter sobre essas pessoas e os resultados vão ter impactos. Eu não sei. Amadurecer é um pouco isso: deixar de lado as ilusões, encontrar um caminho próprio, perceber que o seu lugar no mundo é a contribuição que você poder dar e descobrir qual é essa contribuição. Por isso que eu acho que é mais difícil colocar isso em termos objetivos, porque é muito pessoal.
Pronto, terminamos!!!!
Deixa eu fazer mais uma consideração. A Garapa está muito feliz por ter viabilizado o projeto, mas também porque a gente vai conseguir divulgar esse formato de apoio. Está ocorrendo uma conversa sobre uma exposição, para um trabalho que ainda não existe e isso é fantástico. O trabalho atrai, antes mesmo de existir, por ter sido financiado dessa forma. Existe outro ganho, que é até maior que o resultado prático do trabalho. Foram 95 pessoas que fizeram esse trabalho acontecer.
Gente! Parabéns à Aninha que aguentou decupar tudo isso. Super obrigado pelo apoio e pelo espaço. Adorei a conversa!
Nós que te agradecemos pela confiança e generosidade, Paulo. A conversa foi ótima e a entrevista ficou linda!! Valeeu.
Muito bom o dialogo e conhecer novas iniciativas. de Perceber que a vocação de uma pessoa, que vem na sua profissão pode ajudar mudar vida e destinos de pessoas!
Parabéns!
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