Há duas semanas, Maíra Gamarra publicou aqui no 7 um diálogo bem interessante sobre o clichê na fotografia, motivada por uma discussão levantada por Martin Parr em seu blog. Eu estava com outra pauta para o Diálogo, mas abri mão dela para continuar a discussão porque quis refletir mais junto aos argumentos trazidos nos dois textos.

Aisha por Jodi Bieber (2011) e Sharbat Gula por Steve McCurry (1084) – A referência entre os dois retratos é bem clara, mas é clichê?
O primeiro deles é a associação entre repetição, semelhança e clichê. A repetição por si mesma não caracteriza um clichê, mas a banalização da repetição, sim. Gamarra é muito feliz ao mostrar essa diferença por meio dos trabalhos de Francilins e Antoine D´Agata que, mesmo com obras semelhantes, não usam os elementos gratuitamente, sem uma reflexão.
Porém, quando eu penso sobre o significado do clichê, em si, eu tenho dificuldade de concordar de imediato com a afirmação de que a grande maioria dos trabalhos fotográficos é um clichê por excelência. Quando Martin Parr comenta que consegue perceber as referências de vários fotógrafos nas leituras de portfólio e se sente fisgado por aquelas propostas em ele não identifica a “árvore genealógica”, o fotógrafo está usando um recurso que qualquer profissional, que tem a responsabilidade de selecionar propostas de debate para um determinado circuito da fotografia, precisa utilizar. Porém, ter uma referência clara não significa, necessariamente, ser clichê. Acho que ocorre aqui uma generalização.
Diante disso, o que sinto que precisamos observar é: que circuito é esse que estamos inseridos e como ele se organiza a cada época? Ou seja, além de pensar no que um fotógrafo ou grupo agrega à uma discussão existente, como citou Gamarra, é preciso refletir sobre o que o nosso meio está negando. O que ele não quer mais debater, evita abordar ou deseja agregar ao patamar de clichê? Por que certos temas são direcionados, quase que automaticamente, para o campo do “isso eu não quero ver”, mesmo que os trabalhos apresentados não sejam uma repetição banalizada do assunto? Porque um ensaio é lugar-comum em uma região do mundo e, às vezes, no mesmo ano, é saudado como criativo em outra sociedade e cultura?
É importante observar como cada circuito utiliza suas referências e necessidades de discussão para compreender o que se afirma e o que se nega em cada contexto. Ter isso em mente nos ajuda a não perder o prumo diante de uma pressão cada vez mais forte para se criar algo novo, com intuito de alimentar um meio que solicita pontos de vista aprofundados em períodos de produção cada vez mais curtos, mas nem sempre está preparado para ajudar quem beira o lugar comum a observar, dentro do próprio trabalho, os elementos que podem trazer uma discussão mais revelante à tona.
Eu não consigo concordar integralmente com todos os argumentos que eu li nos textos porque parte dos trabalhos colocados na categoria de clichê podem conter sementes de boas idéias, que se desenvolveriam se recebessem um pouco mais de atenção, mas que uma vez interpretadas precocemente como lugar-comum correm o risco de abandono – a não ser que o fotógrafo seja intuitivo o suficiente para perceber as possibilidades futuras, mesmo diante de uma negativa inicial.
Um exemplo que me parece apropriado para este diálogo é a questão dos ensaios feitos sobre Maracatu Rural. A menção ao tema, em várias rodas de discussão sobre fotografia, quase sempre vem acompanhada de uma repulsa automática. É claro que isso tem um sentido. Os maracatus rurais são há muito tempo tratados como elemento exótico e representantes oficiais das propagandas de várias gerações de secretarias de cultura e turismo. A venda das cores e da beleza do Maracatu em propagandas governamentais e a constante premiação de retratos dos caboclos de lança com cravos na boca, fizeram com que uma fórmula fosse criada e, de fato, exaurida, nos últimos 15 anos.
Algumas consequências disso foram: 1) a coisificação dos próprios maracatus, como diz Priscilla Buhr, que viram suas narrativas de sobrevivência e colaboração criativa colocadas em último plano para servirem a uma produção de imagens acrítica, que sequer sabe diferenciar um maracatu do outro; b) o direcionamento da maioria dos ensaios com essa temática para o grupo do “eu não quero ver porque é clichê”, colaborando ainda mais para a falta de circulação de outras narrativas possíveis sobre o assunto e o fortalecimento da proposta que o transformou em lugar-comum.
Como disse antes, este é um exemplo de vários outros em que fotógrafos, mesmo com trabalhos bem situados, penam para dar visibilidade em prêmios nacionais, seleções de portfólio e até projeções em festivais. E não adianta argumentar com aquela frase clichê de que “se o trabalho é realmente diferenciado, ele aparece”, porque a força dos filtros seletivos que construímos e legitimamos no meio fotográfico muitas vezes é maior que a de um bom ensaio associado a esses temas, uma vez que eles são excluídos de primeira apenas por abordar o assunto. Isso força o fotógrafo a buscar caminhos alternativos ou a esperar anos até que alguém perceba o seu trabalho. Acontece, e não é raro.
Por isso, eu tenho refletido muito sobre essa movimentação que considera tudo um clichê e o que significa mesmo captar o olhar. Nós temos criado uma expectativa muito grande de ser surpreendido de imediato por uma imagem. Nem sempre a fotografia que desvia o caminho está entre as que se destacam nas muitas produzidas no cotidiano. Às vezes, ela é uma das que desprezamos porque, com essa rotina que levamos, estes encontros estão sendo regados à muita pressa, como se fôssemos um júri de concurso que precisa escolher dez ensaios entre quinze mil em menos de uma semana. Calma!
Quem tem me ensinado a rever essa postura são os meus alunos de oficinas e a minha mãe. Eu aprendo com eles à medida que suas experiências testam minha capacidade de observação. Minha mãe, por sua vez, me educa quando entrego lhe uma fotografia e ela passa um bom tempo olhando antes de fazer considerações. Isso mudou a minha forma de lidar com a imagem. Hoje, a minha interação com elas está regada com mais cuidado.
E digo: é transformador reverter a lógica da correria, da identificação imediata, do “não vou ver porque eu já sei”. É fantástico observar uma outra narrativa se formando onde, a princípio, se via um clichê. Exercitar isso traz um ganho pessoal que não se mede. A gente se torna muito mais responsável com a produção dos outros e passa a respeitar as pessoas como gostaríamos de ser respeitados quando mostramos um projeto a alguém.
Sem contar que, à medida que essa nova sintonia se instala, nós lidamos melhor com o nosso próprio ritmo de produção e a relação dele com a movimentação dos vários circuitos da fotografia – e isso é essencial para não entrarmos na roda viva que, de fato, leva aos clichês. O tempo é um elemento importante na área e não é por acaso. Também não é sem motivo que bons trabalhos cresceram depois de muita conversa e colaboração, algo que não combina muito com leituras de portfólio de 15 minutos e um carimbo de clichê de início.
Por isso, mesmo respeitando muito os argumentos de Martin Parr e achando maravilhoso ele ter terminado o texto nos aconselhando a olhar melhor o mundo para buscar enredos que não foram contados, eu também sou a favor de frearmos um pouco esse impulso de reagir e rejeitar o que conhecemos bem e, principalmente, compreender o que isso tem a ver com os debates do meio em que estamos inseridos. Afinal, até os discursos que contestam o lugar-comum podem ser clichês e todos corremos o risco de repetí-los em algum momento da nossa trajetória. E eu também me incluo nisso.