Essa foto poderia ser qualquer outra. Porque não há nenhuma especificidade na reflexão que vim desenhar aqui. Bastava que tivesse em comum essa questão: ser foto de Saudek.
Uma vez escrevi um texto que se atinou na minha cabeça quando li um post muito antigo de Ronaldo Entler, no Icônica, um post em que ele falava sobre a associação do fotógrafo a um personagem complexo, com crises existenciais profundas, instrospectivo e, quase inevitavelmente, “incompetente para os relacionamentos amorosos”. Para ilustrar esse lugar-comum, Entler citou alguns dos principais fotógrafos do cinema (Blow-Up, Antes da Chuva, A Prova, A Pele, etc.).
Eu disse:
“Não sei se existe essa incompetência, mesmo porque não sei se uma competência para o amor é possível – em qualquer profissão ou grupo social. Mas identifico a complexidade e a tormenta típica do grupo.
Fotografar é mesmo viver em perigo já que o fotógrafo se coloca constantemente em risco – piegas mas honesto – de apaixonar-se pelo que vê. Pra logo em seguida, desapaixonar-se e prosseguir vivendo desimpedido e livre para amar novamente. E isso é viver em conflito constante, alimentando a contradição entre o frio na barriga provocado por uma boa fotografia e o desapego necessário para a próxima imagem.
O que acho mesmo é que o fotógrafo é das figuras mais egocêntricas possíveis. Fotografa no mundo o que ele é, sua própria pessoa, ‘seu ego num corpo alheio’, como diz José de Souza Martins. Nesse movimento, ele se reconhece bonito e apaixonante, mas também se reconhece feio, grotesco e assustador. E segue pelo mundo entre extremo encantamento e extrema repulsa”.
Ao refletir sobre isso, me amparei em Jan Saudek, o fotógrafo tcheco, que disse em algum momento: “eu fotografo meus amados através do prisma do amor…”. E às vezes o amor é esse encontro de prazer e sufoco, torpor e ardor, felicidade e demência. A foto de Saudek é pra mim essa conjugação nem sempre saudável entre aquilo que a gente quer e aquilo que se ganha junto. A própria vida de Saudek é essa coexistência cruel da imprevisão e suas consequências – com sua ex-mulher Sara casada com o filho dele, Samuel, e fotografando imagens que são um pouco dele mesmo, o pai.
As imagens de Saudek são essas angústias que vivem o amor no limiar do sofrimento, a pureza se predispondo ao erotismo, como a revelação de uma personalidade às vezes tão sã que beira a loucura, apaixonada e apaixonante.
botou quente, Jo… Tou de queixo caído…
Obrigada.
Joana, a foto é muito boa e o texto é lindo! Muito bom conhecer trabalhos novos. Acho muito bacana quando o flickrweek e o olhando pra sempre trazem coisas que não conhecemos. Gostei bastante mesmo! Parabéns =)
Joana,
Lindo texto. Aliás, esse grupo tem produzido um material excelente, instigante. Esse artigo, como outros, tem o condão de fazer vibrar certas notas no íntimo, sentimentos que ficaram reprimidos até que outrem os verbalizassem, com as exatas palavras que nunca surgiram de mim. Obrigado. Sinto que a promiscuidade em que vivia/vivo, amando intensamente o objeto fotografado para em seguida cair de amores por outro não é pecado (não que eu necessariamente me importe com isto). É antes uma contingência do ofício a que nos propomos, de construir imageticamente as revoluções e os amores e os temores que fluem de nós constantemente. Obrigado.
esse teu texto me faz pensar no studium e, especialmente, no punctum de barthes. acho bacana conversas sobre afetividade na fotografia justamente por desconfiar que tudo tende a ser considerado de forma muito objetiva. ou é a técnica ou é a significação padronizada dos códigos. conosco pode até ser diferente, mas o público em geral costuma nutrir uma certa impaciência com aquilo que não está claro à primeira vista. ainda não existe uma cultura ampla de busca pela compreensão das intencionalidades do fotógrafo para com a fotografia, como forma de saber um pouco mais sobre o próprio fotógrafo. enfim, dar espaço para o afetivo na fotografia é uma bela forma de conhecer pessoas. teu texto é uma pequena prova disso. valeu, joana!
Oi Joana, muito bom mesmo o trabalho do Saudek. Achei importante ter um olhar sobre as imagens dele, não são nada irrelevantes. Também não tive uma percepção angustiante das imagens. São incrivelmente cheias de símbolos, arquétipos, fantasias, sonhos… Tudo tão diverso, ampliadamente, plural. Uma riqueza de anjos e demônios íntimos, pra mim foi um prazer, por vezes nervoso, olhar as imagens dele. Obrigada!
Gostaria de dizer que o “Podia ficar olhando pra sempre” é o que mais gosto de ver por aqui no 7! 😉
Gente, minha cabeça tá cheia de ideias com essas questões todas que vocês mencionaram. BELLA e ANINHA, vocês são de casa, e não é à toa essa parceria. Qualquer conquista que faço em vocês, é uma conquista maior ainda em mim. #piegas
CHICO, não entendi a menção ao studium e ao punctum (conta mais), mas teu comentário me remeteu a algo que tem sido um martelo na minha cabeça ultimamente: essa carência de uma educação fundamental também voltada para as imagens. Val falou sobre isso num texto e isso tem se firmado como uma questão muito incômoda durante esse meu ano de mestrado. Quando estudamos literatura, pensamos muito sobre as obras de determinados autores, as estruturas, as relações entre as palavras, mas a imagem permanece um universo de interpretação escanteado nas escolas. Acho que o fato de não existir uma gramática visual, nos deixa meio quiabentos e inseguros para interpretar uma imagem. Mas o fato é que a gramática não é nenhuma garantia de comunicação perfeita através de texto, muito pelo contrário. Não sei porque somos visualmente tão imaturos.
MARCO, é bem isso que você disse e entendo completamente essa história de vibração de notas porque confesso que fico muito ansiosa pelos comentários, pelas respostas, para saber se essas impressões que tenho ecoam e encontram paridade. Talvez seja vaidade hehehehe, mas acho que é muito uma insegurança e uma necessidade de pensar junto pra ser mais feliz. O comentário de VIVI mesmo me lembrou de um caso que aconteceu no ano passado: uma professora que tive, Ana Farache, muito sensível à arte, à fotografia, levou um documentário sobre a vida de Saudek para a sala de aula. O resultado foi que alguns alunos se retiraram de sala porque acharam que a obra de saudek tem uma pornografia e uma promiscuidade ofensiva. Não vou nem sugerir a inexistência dessa carga pornográfica e promíscua nas fotos dele, mas fiquei pensativa sobre as nossas formas múltiplas de ver,viver,interpretar, fiquei impressionada com esse olhar que, antes de gostar ou reprovar, não via a riqueza de anjos e demônios, como falou Vivi.
tentarei explicar =P… studium é o nome que roland barthes deu a toda malha de significação existente na fotografia. é composto por tudo aquilo que nomeamos, indentificamos, atribuímos valor na imagem.
de certo modo isso não era novidade (bem antes dessa época a fotografia já não era mais encarada como mimese, mera reprodução da natureza), mas barthes fez questão de definir o espaço do studium como estratégia para estudar o contraponto da questão: o punctum, nome que ele deu àquilo na fotografia que nos mobiliza pelo irracional, pelo afetivo, pelo indizível. o punctum seria o detalhe que percebemos, não compreendemos claramente, mas que nos afeta mesmo assim. o punctum evidencia o sentir na fotografia.
as primeiras análises sobre isso deram origem ao livro “a câmara clara”. na época foi um choque, pois barthes era linguísta, um dos principais discípulos de saussure, e como tal tinha passado a vida buscando padrões nas relações de significação. de uma hora para outra ele rompe com tudo e decide se arriscar pelo desconhecido em busca da essência da fotografia, em busca da Fotografia (assim, com inicial maiúscula. a verdadeira, na visão dele). não era fotógrafo, mas falava de fotos como poucos.
isso era apenas o início das investigações dele. infelizmente barthes acabou morrendo atropelado, pouco tempo depois de concluir o livro. eu fico arrepiado só de imaginar o que poderia sair caso ele tivesse prosseguido…
caso te interesse, outros livros que podem te ajudar a entender melhor essas duas fases de barthes são “elementos de semiologia” e o “óbvio e o obtuso”, os dois de autoria dele.
quanto a esse lance de imaturidade visual, recomendo a leitura de “sintaxe da linguagem visual”, de donis a. dondis. lá tem algumas explicações pra esse seu (nosso, na verdade) incômodo. =)
beijo!
na verdade, a minha questão era mais relacionada ao que te fez refletir sobre studium e punctum nesse post sobre Saudek, o que no nosso debate remeteu a Barthes na tua cabeça, qual o desenrolar das ideias que te levou até lá, entendesse?
Concordo que Barthes é livro de cabeceira pra todos nós. Leitura imperdível até antes de Flusser. Até pra guiar uns caminhos nossos a outras coisas diferentes. E Donis foi uma dica muito preciosa que recebi de Geórgia quando tive aula com ela justamente de Semiótica da Imagem. Ótima lembrança! 🙂
eu tô morto de vergonha, joana! ahahaah
quis dar aula não, pow, foi viajei minha. entendi tudo errado. ahahah
mas eu lembrei de barthes porque quando eu olho pra foto não é o corpo nu da mulher ou mãos no seios dela que me chama a atenção. eu já olhei mais de uma vez pra essa imagem e sempre me pego prestando atenção nas mãos dela, e ainda não sei a razão disso. as mãos dela (não sei se a forma, o tamanho, a cor ou a posição ou qualquer outra coisa) me causam um desconforto que, ao invés de me fazer desviar o olhar, me mantém fixo nelas. eu dou uma passeada pela foto, mas nada me provoca mais que as mãos dela. de repente me vi numa situação meio parecida com as coisas que já li em a câmara clara. a foto e o teu texto me fizeram pensar na dor e no amor de quem fotografa e também de quem olha fotografias. esse “podia ficar olhando pra sempre” me fez sentir alguma coisa. insegurança, acho.
nós adoramos tuas “aulas”, Chico!! muito, muito muito!! =)
imagina, chico, não falei com nenhum tom pejorativo não. mas é porque realmente em poucas linhas você fez uma revisão muito bacana sobre a abordagem de Barthes 🙂
Mas agora sim, nesse último comentário entendi o que te fez pensar nessa história de punctum. E engraçado você falar porque acho que nunca parei pra perceber essas mãos e essa leve sensação de desconforto que elas transmitem. como alguém que está prendendo a respiração e se segura nas próprias mãos. muito interessante. fico feliz que o texto e a foto tenham te feito sentir alguma coisa. valeu!
joana e priscilla, vocês (o restante do 7 incluso) é que são nota 10. sempre aprendo alguma coisa vindo aqui. de verdade. beijo!
Ixi, que debate lindo! ❤