Uma das coisas mais bonitas que eu li nos últimos anos foi um livro de Gisèle Freund chamado Fotografia e Sociedade. Todas as vezes que eu releio o livro encontro referências que me fazem pensar em imagens que cruzaram meu caminho. Estes dias, lembrei de um trabalho de Alcione Ferreira, busquei o livro para reler alguns trechos e encontro Freund chamando a fotografia publicada na imprensa de retrato coletivo.
O termo é muito bacana e pode ser desdobrado em várias perspectivas, mas eu acabei fisgada pela idéia de retrato coletivo enquanto expressão do meio social e político, que é um dos focos do trabalho de Freund. Ela sai do viés da história da técnica e discute a trajetória da fotografia por meio do diálogo entre expressão artística e construção social, mostrando como as mudanças nos pilares de uma sociedade influenciam na maneira como ela se comunica.
A idéia pode parecer meio óbvia à primeira vista, mas é ótimo observar trabalhos realizados em diferentes épocas e constatar a mudança na prática. Mais bonito ainda é quando dedicamos um pouco de tempo para conhecer também mais as histórias que geraram certos projetos fotográficos e pensar no que foi transformado, a ponto de produzir o que estamos vendo.
Eu tenho curtido muito olhar para os trabalhos que mais gosto e buscar referências visuais de outras épocas para ver como os fotógrafos resolviam suas histórias. O que eles podiam mostrar, o que era proibido, de que maneira a história contada conversava com a estrutura social e política de cada época. Eu fico apaixonada lendo relatos dos fotógrafos, vendo as imagens e pesquisando mais sobre cada cotidiano específico…
Enfim, como citei antes, a reportagem que reacendeu a minha paixonite pelo assunto foi feita por Alcione Ferreira, em 2005, sobre trabalho infantil. Ela foi publicada no Diário de Pernambuco e foi um um dos focos do meu estudo sobre os fotógrafos pernambucanos contemplados no Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, entre 2004 e 2008. Alcione recebeu uma menção honrosa em 2005 e, na odisséia pela busca do acervo do prêmio (que finalmente está disponível na internet), eu encontrei outros ensaios sobre temática que me abriram mais os olhos para essa interação entre fotografia e sociedade.
Entre eles estão materiais produzidos por Iolanda Huzak, João Roberto Ripper e, claro, por Lewis Hine, que é considerado o pai da abordagem documental sobre este tema na fotografia. Eu não vou falar do trabalho de Ripper neste diálogo porque tem uma discussão específica que eu quero fazer sobre a produção dele mais para frente, mas vou tentar colocar algumas idéias acerca do material de Hine, Huzak e Ferreira. Antes, contudo, é bacana apresentar um pouco cada ensaio.
A documentação mais conhecida de Lewis Hine durou mais de dez anos e rendeu livros que, à sua maneira, criticavam duramente as condições de trabalho das crianças e jovens imigrantes nos EUA. Hine era sociólogo, educador e fotografava para as aulas e pesquisas. A dedicação ao tema, porém, o levou a ser contratado como fotógrafo-detetive do Comitê Nacional do Trabalho Infantil, em 1908. A sua função era viajar e relatar os fatos mais próximos do panorama da exploração infantil.
Lewis Hine nem sempre era bem recebido nos locais que visitava e, à medida que suas fotos foram aparecendo e mobilizando a opinião pública estadunidense, ele precisou esconder a câmera e fingir ser fiscal de incêndio para entrar onde desejava investigar. As fotos mostravam as crianças em suas funções em fábricas e no comércio, mas enfocavam, principalmente, as expressões de desalento de meninos e meninas submetidos a longas jornadas de trabalho diário.
Este é o principal traço do seu trabalho, construído por retratos que mostravam qual parcela da sociedade norte-americana estava sendo explorada. Assim, viraram símbolo de uma época que precisou olhar de frente para o trabalho infantil. Hine conseguiu modificações no código trabalhista , com uma lei de proteção à criança que estabelecia restrições para o emprego em fábricas e lojas para quem não havia completado 14 anos. A documentação completa é uma referência para a fotografia documental e para os rumos da legislação sobre o tema.
É importante citar isso porque, a nível mundial, uma orientação mais forte ocorreu apenas em 1973, quando a Organização Internacional do Trabalho estabeleceu em 15 anos a idade mínima para o trabalho de jovens. No Brasil, nesta mesma época, surgiu o Código de Menores, mas ele era restrito a quem estava inserido em um ambiente de abandono ou havia se envolvido em atos infracionais. Apesar das várias discussões sobre a infância e a juventude, o país enfrentava sua terceira ditadura e a repressão aos movimentos sociais impedia uma resolução mais clara sobre o assunto, que foi aprovada em 1990 por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Foi no meio deste contexto que Iolanda Huzak começou o projeto Crianças de Fibra junto com a jornalista Jô Azevedo. Durante oito meses, elas viajaram o Brasil coletando narrativas de trabalho infantil em atividades que iam da indústria do sapato no Rio Grande do Sul aos engenhos de cana-de-açúcar do interior do nordeste. Enredos diferentes que esbarravam sempre no mesmo problema: uma cultura social e política que alimentava a exploração e rendia mutilações físicas e emocionais para os envolvidos.
A reportagem de Huzak saiu dos retratos mais clássicos de Hine para trazer outras formas de mostrar cotidiano do trabalho infantil. Ela contextualizava os ambientes, as dores no trabalho, as relações de família e o traço dos entrevistados enquanto eles quebravam pedras, carregavam cana, caminhavam léguas guiando burros de carga, costuravam sapatos ou colhiam verduras nas plantações. Por ser um trabalho realizado em vários estados era fundamental situar bem o leitor sobre o espaço e as pessoas presentes em cada narrativa.
Acompanhado pelo forte texto de Jô Azevedo, o ensaio feito em preto e branco virou livro pela editora Paz e Terra, em 1994. Em seguida, ganhou uma edição mais curta no número 44 da revista Marie Claire, batizado de Infância Escravizada. O ensaio de Iolanda Huzak também foi vencedor do Prêmio Vladimir Herzog, que entendeu a importância do trabalho, mesmo que parte dele não seguisse à risca todas as orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em meados da década de 1990, as instituições que acompanhavam a implantação do código, enfatizaram a proibição de identificar fotografados envolvidos em situações de exploração. Porém, o resultado das publicações sempre foi fruto da tensa negociação entre o desejo de mostrar algumas cenas e o de preservar os fotografados.
Quando observamos o que motivou a aprovação do ECA e as consequências nos últimos dezesseis anos, vemos que a proibição teve um sentido. Havia uma exploração de um cotidiano que já era de exploração em vários setores da mídia. Na própria fotografia, vez por outra se ouviam relatos de fotógrafos que, na ânsia de projetar o próprio nome, investiam em documentações dramáticas, sem compromisso com o tema ou os fotografados e enviavam para concursos e periódicos mundo afora.
Exemplos assim ecoam na fala de Gisèle Freund: a expressão artística é influenciada pelo meio social, mas a sociedade também responde às mudanças causadas pela produção criativa. A elaboração do ECA é um retorno ao que o Brasil vivia há duas décadas e a mudança no código trabalhista dos Estados Unidos foi uma necessidade dos anos 1920. Então, não é estranho que o contexto que acolheu a importância do trabalho de Iolanda Huzak não fosse o mesmo dez anos depois, quando Alcione Ferreira entrou na redação onde faria a reportagem Trabalho Infantil.
Além das mudanças promovidas pelo estatuto estarem bem mais definidas, uma nova política social implantada não foi respeitada, gerando um outro tipo de repercussão do assunto. Em 1994, uma das motivações para o trabalho infantil era o dinheiro que as famílias ganhavam com a ajuda das crianças. Para tentar diminuir o impacto disso, o governo brasileiro criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que fornecia remuneração às famílias em troca da retirada das crianças do ambiente de trabalho.
A reportagem fotográfica de Alcione Ferreira foi gerada por uma denúncia de que, mesmo com a chegada do recurso, as crianças continuavam trabalhando em olarias, casas de farinha e pedreiras no interior de Pernambuco. Quando a apuração foi feita, a equipe descobriu que algumas famílias recebiam o dinheiro sem saber que o trabalho infantil era proibido, outras sabiam mas precisavam das duas rendas e em vários casos os empregadores exigiam o trabalho da família inteira. Se não trabalhasse não comia. Como fotografar?
Alcione optou por um ensaio quase todo feito com detalhes: as marcas que o trabalho pesado causava na pele das crianças. Não mostrou os rostos ou ambientes completamente. Usou uma lente macro e se aproximou muito dos fotografados. Isso exigiu dela e do repórter uma aproximação das famílias e uma conversa sincera sobre os rumos do conteúdo que seria publicado. Ferreira saiu completamente do estilo de ambientação que em geral é atribuído a uma reportagem fotográfica – e que se encontra mais presente, por exemplo, no trabalho que Iolanda Huzak fez na década de 1990.
A mudança na estrutura social influenciou a produção artística e pediu outras formas de solução da temática em imagens. Por mais esquisito que seja dizer isso, eu creio que as exigências promovidas pelos códigos de proteção podem ser consideradas aliadas da criação de novas linguagens fotográficas entre os profissionais dedicados a esses assuntos. A dificuldade de realizar algumas pautas, o repertório visual existente e a queda da exigência de narrar da maneira tradicional, por dificuldade de publicação, força o fotógrafo se reinventar diante do que não pode mostrar.
Se a gente prestar atenção direitinho nas reportagens fotográficas que vêm sendo publicadas nos últimos anos sobre o tema no Brasil, seja na imprensa ou fora dela, há um material muito bem resolvido do ponto de vista narrativo e estético, que tem ajudado a fortalecer essas discussões. Ele é resultado da transformação que começou na época de Lewis Hine com sua fotografia “crua”, passou pelos mestres da fotografia documental que inspiraram Iolanda Huzak e chegou ao recorte elaborado por Alcione Ferreira.
Retratos coletivos que expressam como cada fotógrafo lidou com a síntese da interação crítica entre arte, sociedade e política – elementos que Gisèle Freund considera quase indissociáveis. Nada disso, porém, foi feito sem muita discussão, luta e adequações. E, quando eu me vejo encantada com essas conversas, coletando novas referências e compreendendo melhor a importância dessa trajetória da fotografia para as coisas que estamos construindo, confesso que me preocupo com a quantidade de conhecimento e boas experiências que poderiam nos servir de inspiração e que estamos deixando para trás.
Ana, obrigada pela citação a esse trabalho ao qual tenho tanto carinho . Aproveito para agradecer também em nome de André Duarte ( repórter responsável pelo texto da reportegem).