Quando cursava o 2º período da faculdade de jornalismo, paguei uma cadeira de “Introdução à Fotografia”. Não faz muito tempo, mas nossos trabalhos ainda foram produzidos com câmera analógica e em película. Saíamos pra fotografar em grupos de três pessoas, com uma câmera e um ou dois filmes de 36 fotogramas, nada mais. E os resultados, pelo menos os meus, eram completamente diferentes do imaginado.
Creio que de sete filmes fotografados pelo meu grupo, queimamos completamente três e conseguimos quatro com alguma imagem – entre esses, apenas um teve um resultado interessante. Para evitar gastos extras com ampliação, o professor (Eduardo Duarte) recomendava que pedíssemos primeiro o copião (ou prova de contato) do filme para que, só depois de olhar o resultado de cada fotograma, escolhêssemos as fotos que seriam ampliadas.
Para quem só começou a fotografar com aparelho digital, eu diria que o copião é o equivalente à foto na tela da câmera, ‘só que diferente’. São todas as imagens contidas no negativo, positivadas numa única folha de papel fotográfico para oferecer uma amostragem do que ficou registrado no filme. Fiquei lembrando disso, dia desses, quando assisti ao filme “Prova de Contato” (2009), organizado pelo fotógrafo William Klein e apresentado a mim pela também fotógrafa Yêda Bezerra de Melo, minha professora na cadeira de portfolio.
O documentário mostra os depoimentos de doze fotógrafos comentando sobre o que e como fotografam mas, principalmente, sobre como escolhem suas imagens. Ouvimos as vozes de Klein, Bresson, Koudelka, Don McCullin, Doisneau e alguns outros não menos importantes para a história da fotografia. Todos se expondo a prova.
Para mim, assistir a esse filme foi como ter acesso ao exato momento de secularização de um ritual – porque a prova de contato é como um objeto sagrado do fotógrafo, um artefato puro que não é permitido a quem é de fora. William Klein comenta:
Trinta e seis exposições, seis filas de seis fotografias, tiradas uma atrás da outra. Você as lê da esquerda para a direita, como um texto. É o diário de um fotógrafo. Você vê o que ele vê pelo visor, suas hesitações, seus sucessos, suas perdas, suas escolhas. Ele escolhe um momento, um ângulo, outro momento, outro ângulo.
Ponto. Quando conhecemos o trabalho de um fotógrafo, comenta Klein, conhecemos apenas as fotografias que ele escolhe, nunca o antes e o depois daquela fotografia. Apenas o que nos foi autorizado. O trabalho do fotógrafo, toda a sua obra, é uma compilação de instantes que trazem em si os momentos precedentes e sucedidos, são fotografias que, mesmo isoladas, se pretendem como mensagens inteiras, narrativas completas.
O que você conhece do trabalho de um fotógrafo? 100 fotos? Digamos, 125 fotos? O equivalente a um segundo [Klein faz aqui uma relação com a medida de velocidade considerada média em câmeras comuns e que divide um segundo em 125 partes]. Digamos que sejam 250 fotos, ou seja, dois segundos. A vida de um fotógrafo, mesmo de um grande fotógrafo [equivale a] dois segundos.
Como fotógrafos, não conseguimos mostrar tudo o que produzimos. Nossas tentativas, nossos erros costumam ser muito mais numerosos (e geralmente menos interessantes) do que as fotos que divulgamos – mesmo hoje com o aumento dos espaços de difusão de imagens na Internet. Editar é um processo diário e algumas vezes intuitivo, feito cada vez em que escolhemos ler um texto e não outro, ouvir uma música e não outra, ver uma foto e não outra. A própria visão humana não consegue dar conta de um todo. É preciso um recorte, um enquadramento, seja ele espacial ou temático, para que possamos interagir com uma obra, apreender um conteúdo. O que me faz perguntar: como escolhemos o que devemos mostrar? Como escolher os dois segundos de fotografias que serão associados à nossa produção pessoal?
Analisando os seus copiões, Klein (vídeo abaixo) é capaz de apontar o que o faz decidir entre uma fotografia e outra: uma pessoa que olha para a câmera, dois rostos enquadrados, duas pessoas que participam da fotografia sem se perceberem dentro da imagem, um movimento capturado por uma longa exposição. É um momento de beleza ver um fotógrafo como ele apontar o que o encanta, o que o captura nas imagens que ele mesmo produziu. Quase nunca vemos a mesma fotografia.
Poucos são os aspectos que fazem de uma fotografia a fotografia. Diane Arbus exemplifica isso bem na fotografia “Boy with toy hand grenade”, tirada no Central Park, em 1962. Poucos segundos separam o menino que conhecemos na sua fotografia – estranho, desengonçado e cotidianamente perturbador – do menino comum que vemos posando para a câmera da fotógrafa em sua prova de contato.
É a escolha dessa imagem e não outra que faz de Diane Arbus a fotógrafa que conhecemos. “Um acidente faz a imagem”, diz Klein, mas a imagem está lá esperando que a encontremos.
Nem sempre essa busca da foto exata é uma busca fácil. O fotógrafo francês Raymond Depardon fala sobre a difícil tarefa de obter uma “boa fotografia”. Suas fotos são intranquilas como suas ideias: “eu aperto o botão para me justificar [justificar sua presença]” ou “o fotógrafo está pronto para fazer qualquer coisa para obter sua fotografia. mas sofre ele tanto quanto os seus temas?” ou ainda “estas fotografias me fazem pensar”. No filme, vemos o copião de uma de suas séries fotográficas produzidas em hospitais psiquiátricos. Sua opção pela imagem é complexa e expõe tanto de si mesmo, como um indivíduo, um fotógrafo carregado da culpa de fotografar, quanto do assunto. “Olhe para o fotógrafo, veja a desmistificação do herói que acima de tudo tira o que é dos outros”, define.
Vejo as provas de contato desses fotógrafos que muito me emocionaram e me contento por saber que a fotografia não é a configuração de um milagre, de um instante que se corporifica como uma inspiração divina. Nem sempre conseguimos criar exatamente a imagem que pensamos. A criação é também um ato de percepção. No filme, Bresson diz: olhar e ver não é identificar, é adentrar. E lembra de uma conclusão à qual chegou numa conversa sobre fotografia e pintura com Pierre Bonnard: a sensibilidade não pode ser explicada.
Algumas vezes, uma boa fotografia é uma sensação.
É curiosa essa relação do fotógrafo com o copião. Hoje, meu copião é no Lightroom, mas ainda acho esse momento completamente meu. É como se mostrar todo o material, mostrasse também o que eu não quero que vejam de mim, o que não me atrai, o que realmente não quis ver, o meu vacilo.
Esse momento de edição também faz parte do fotógrafo, como resultado mesmo. É meio que uma reconstrução do próprio olhar, escolhendo ali, que faceta sua você vai escolher mostrar.
O Copião é o fotógrafo nú em praça pública.
Texto lindo, Maria, digo, Joana!
Que bom tu lembrar essa história do copião que é o próprio Lightroom, é bem isso mesmo… E acho que esse momento de escolha da faceta (consciente ou não) é fundamental mesmo, porque, com toda essa abundância de espaços de exposição/difusão de imagens, às vezes a sensação é de que pouquíssima coisa tem sido realmente pensada. Você entra no flickr de algumas pessoas e pensa: ‘o fotógrafo está nu’. 😉
Eu sou louca, completamente apaixonada por esse outro lado que ninguém mostra. Moraria nos arquivos de vários fotógrafos. Depois eu comento o texto todo com mais calma. Queria apenas explicitar minha paixão e felicidade por ver esse debate aqui =)
Aninha, assiste os 3 volumes do filme. É de chorar :~
Sou apaixonada por essa coleção organizada por Klein (tenho os 3 originais de coleção “ninguém toca”!). Desnuda completamente o processo. E é no processo que está a obra. Lindo texto, Jo!
faço das palavras do Helder, as minhas!
arrasou no texto. jô, tu sempre me prende e fico viajando nos teus questionamentos. muito bom!
jow, brigadíssima. arraso é te ver por aqui 🙂 bêjo
Eu assistiria, se encontrasse o filme 😦
Pelo menos o post já ajuda. Muito bom!
Guilherme, é super difícil mesmo, mas um amigo disse que encontrou os torrents de todos os volumes na internet. O nome original do filme é o Contacts (Vol.1,2 e 3). Vê se você tem mais sucesso agora. =)
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