Diário de Bordo – Paraty em Foco 2011 – Uma Forma de Pensar

Hoje, quinta-feira, faz sol em Paraty, finalmente. Andamos pela cidade curtindo um pouco mais os momentos de desentocamento que só o sol pode proporcionar; conhecendo gente, fotografando e fazendo perguntas improváveis. Perto das 13h, parei para almoçar e descansar um pouco a cabeça quente; dentro do Bartolomeu, um restaurante bem turístico de Paraty, estava uma parte do grande escalão do festival. Fiquei um pouco desatenta porque estava distante e de costas, mas vi quando Leopoldo Plentz, João Urban e Luiz Carlos Felizardo se levantaram ligeiros para abraçar um senhor um pouco mais baixo que passava calmo pela rua; Walter Firmo, me informaram. Ao lado dessas quatro figuras emblemáticas conversando entusiasmadas, uma moça de blusa verde fotografava com uma coolpix uma das tantas janelas amarelas da cidade, desatenta, para ela a janela ali era o seu universo mais importante.

É basicamente isso que vemos aqui no PEF, um encontro de gente que adora fotografia, seja um grande autor de imagens ou outro alguém, que veja a fotografia por trás da câmera, na palma da mão ou na tela do computador, exposta na parede ou no tapume. O importante é se manter passeando dentro dessa bolha fotográfica que vira a cidade de ponta-cabeça nesses dias de setembro. O festival é enorme e incrivelmente múltiplo, como se tentasse dar conta de todos os aspectos e abordagens que a fotografia pode alavancar.

Foto: Claudia Jaguaribe

Percebi isso ontem quando tentei acompanhar a série de “encontros & entrevistas” que acontecem na Casa da Cultura. Das quatro, só dei conta de três, mas conformada, porque ver tudo é tarefa humanamente impossível. A primeira entrevista da tarde contou com as presenças de Cláudia Jaguaribe e Caio Reisewitz, dois artistas brasileiros que são referenciais para percebermos que as fotografias de paisagens naturais têm uma trajetória muito diversificada a percorrer. Cláudia foi capaz de resumir um dos questionamentos mais caros à fotografia de paisagem e que muitas vezes passa despercebido em uma análise superficial. Para ela, a fotografia é um caminho para construirmos uma espécie de memória da natureza, que nos faz perceber o quanto estamos nos afastando do que culturalmente somos. “A fotografia é uma forma de pensar”, afirma.

Curiosamente é isso o que estamos fazendo aqui no festival inteiro: pensando por fotos, com fotos, sobre fotos. O trabalho de Olivia Arthur, na segunda entrevista da tarde, também é um exemplo de uma fotografia que nos possibilita refletir melhor sobre nossas coletividades e idiossincrasias, mas partindo de uma abordagem documental direcionada ao sujeito. Inglesa, Olivia produz imagens muito sensíveis que incentivam uma espécie de mergulho em sociedades culturalmente diferentes, numa tentativa de estabelecer um diálogo entre sua própria formação histórica e cultural baseada no Reino Unido e indivíduos que se desenvolvem em diferentes sociedades orientais, entre eles as mulheres do Oriente Médio.

Foto: Olivia Arthur, Arábia Saudita

Para fazer suas imagens, Olivia parte de um ponto de vista de pesquisadora, que se sente atraída, conquistada pelo objeto de pesquisa, e que, inevitavelmente, começa a construir uma relação mais pessoal com ele. Os retratos femininos que ela produziu são capazes de nos revelar uma abordagem quase íntima das mulheres do oriente, revelando um universo pouquíssimas vezes percebido. Apesar de jovem, Olivia é fotógrafa recentemente associada à Magnum, mas merece destaque mesmo pela forma sensível e quase sem vaidades com que se conecta com os seus retratados, como se ela tivesse desenvolvido um método de ser afetuosamente científica ao desenvolver um projeto.

Esse equilíbrio entre o documento e o “apaixonamento” tem sido um dos aspectos que mais reconheço presentes em todas as discussões fotográficas que acompanhei por aqui. A impressão que se inscreve em mim é de que o dilema teoricamente superado entre documentar e expressar ainda é bastante conflitante dentro da cabeça desses fotógrafos individualmente – não porque eles não saibam o que querem fazer, para onde querem apontar, mas porque para alcançar qualquer um desses vieses é necessário um nível de entrega ao qual muitos se propõem, mas poucos realmente alcançam.

E quando penso nessa coisa de alcançar o improvável, me deparo diretamente com a fotografia de Miguel Rio Branco, o último entrevistado do dia. Para entrar no universo de imagens que a obra de Miguel Rio Branco constrói é preciso entrega. Suas imagens não se contentam com a exposição superficial do que é visível, elas incentivam um mergulho na vertigem provocada pelo movimento dos corpos, pelo preenchimento dos espaços. Observam cada pessoa, cada local, apresentando-os como um personagem capaz de se dissipar e virar uma espécie de entidade icônica.

Foto: Miguel Rio Branco

Paulo Herkenhoff, o curador responsável por entrevistar Miguel no encontro de ontem, comentou uma questão que acho que aborda curiosamente o trabalho de MRB, ele disse: Miguel persegue o infotografável. E me chamou a atenção esse pensamento de Herkenhoff, não só pelo infotografável em si, mas pelo aspecto da perseguição. Miguel Rio Branco é realmente um perseguidor da imagem, que procura encontrá-la mesmo que ela não se revele, que tenta descascar suas superfícies e mostrar coisas indizíveis. Não é o fotojornalismo que o despertar, mas a possibilidade de construir imagens ao documentar. Como Miguel mesmo disse, as imagens são documentos que podem (e às vezes devem) ser transformados. “Você não precisa encenar uma imagem para fazer uma construção. A construção pode ser feita de momentos voláteis que se ligam”. E completa: “eu acho que meu trabalho todo pode ser chamado de uma construção poética”.

São imagens que se fazem marcas do visual, desvelando as cicatrizes que todo o cotidiano produz. A banalidade, muitas vezes mal-interpretada como um aspecto negativo do que é comum, é reinterpretada de uma forma complexa no trabalho dele. Suas fotografias de gente transcendem as principais características do retrato (comumente embasado na figura de um indivíduo) para refletir questões humanas essenciais como a solidão e a dor. O próprio espaço é um personagem carregado de suas próprias cicatrizes.

Em determinado momento, Herkenhoff fala sobre o sujeito nas fotografias de MRB, reconhecido na presença de um corpo vil, não por ser um corpo condenado à vileza, mas por ser um corpo que, do seu extremo de miséria, nos fala sobre aspectos de humanidade. Miguel faz isso não apenas com fotos, mas com imagens de todos os tipos. Ele nos mostra a imagem como uma existência necessária que nos leva ao reconhecimento do outro e uma aceitação de nós mesmos. Seu trabalho é uma respiração difícil.

Sobre joanafpires

recife, 27, 60, 170, 35, 40
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2 respostas para Diário de Bordo – Paraty em Foco 2011 – Uma Forma de Pensar

  1. Mateus Sá disse:

    Meninas, realmente parabéns!!! A cada dia vocês estão escrevendo melhor! Um texto bom de ler e com uma percepção do que está em volta bem interessante! Fico feliz por vocês e agradeço pela oportunidade de curtir o festival através dos seus olhos. Abração!!! Mateus Sá.

  2. Yêda disse:

    Joana,
    que bom que você também está aí!!
    afinal, precisamos respirar para continuar vivendo, mesmo que às vezes pareça um pouco
    difícil.
    beijos Yêda

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