Diário de Bordo – Paraty em Foco 2011 – Cultura de Preservar

Antes de publicar um diálogo com o balanço do Paraty em Foco, eu decici antecipar um tema visto na primeira mesa do domingo que merece uma reflexão por aqui. A conversa uniu Millard Schisler; da Cinemateca Brasileira; Carlos Carvalho, produtor do Fest Foto Poa; Sergio Burgi, responsável pela reserva técnica do Instituto Moreira Salles; David Riecks, fotógrafo especialista em fotografia e mídias eletrônicas; o professor, blogueiro e articulador Clicio Barroso; e foi mediada por Geraldo Garcia, que é especialista em processos de impressão. A conversa trouxe uma série de temas antes de chegar aos pontos preocupantes, mas eu vou inverter a ordem e iniciar logo por eles.

O Facebook hoje abriga um percentual de fotografias na casa dos bilhões

Você que está lendo este texto por acaso transformou o Facebook em sua principal fonte de armazenamento ou difusão de imagens? Se sim, o ideal é ter cuidado. Durante a mesa, Clício Barroso mostrou que quando publicamos fotos nesta rede social, o sistema deles deleta da imagem a parte do arquivo que contém os metadados deixando a imagem nua ou órfã.

Os metadados são responsáveis por conter informações como o modelo da câmera utilizada e os dados básicos técnicos da imagem: velocidade, iso, abertura do obturador, tipo de lente, luz, entre outros. Quando a pessoa que faz a foto aprende a editar esse conteúdo, ela pode inserir outros elementos como descrição do que está na foto, local, data, tags e principalmente as informações sobre as licenças de uso da imagem e a referência à autoria individual ou coletiva da fotografia.

Quando esses dados são deletados da imagem, ela pode circular pela internet sem nenhuma conexão com quem produziu ou se responsabiliza por aquela fotografia, podendo sem usada sem ser referenciada. A grande questão que envolve este debate é que foi encaminhado para o congresso norte-americano um projeto de lei que defende o uso livre de imagens órfãs em qualquer tipo de trabalho, projeto ou atividade, inclusive com fins lucrativos.

Ou seja: pela reflexão deste projeto, se alguém encontra uma fotografia que você publicou no Facebook, pode fazer uso dela da forma que bem entender sem precisar pedir ou fazer alusão ao modelo de licença que você escolheu porque a imagem não contém metadados. Para provar que a imagem tem uma referência, a pessoa responsável por ela vai precisar primeiro descobrir se a foto foi usada indevidamente, onde e acionar juridicamente quem publicou.

O problema é recolher provas judiciais suficientes para o processo, uma vez que a minoria das pessoas sabe lidar direito com seus arquivos de imagem. Boa parte delas sequer sabe o que são metadados, como utilizá-los e muito menos como manter suas fotografias bem organizadas em acervos digitais. O uso do Facebook como “álbum”, em alguns casos até como “único álbum” (com arquivos saídos direto da câmera para a rede social), é fruto inclusive desta falta de organização ou da ilusão de que estando na rede é seguro.

E entre as pessoas que sabem o que são metadados e como utilizá-los, vale a pena perguntar quantas delas efetivamente usam essa ferramenta adequadamente e quantas não publicam diretamente no Facebook. Eu, que publico muito pouco fotografias no Facebook, fiquei inquieta, imagina os meus amigos que fazem da rede social a sua principal forma de veicular os trabalhos produzidos e discutí-los com a comunidade?

Foi impossível não pensar nas consequências disso para projetos como Born Nowhere, de Lais Pontes, que tem na rede social um dos seus principais meios de concretização. Ela cria retratos, publica na rede e, a partir dos comentários feitos pelas pessoas que vêem as fotos, ela decide os rumos da personagem. A exposição, inclusive, é feita contendo trechos dos comentários do Facebook como legenda das imagens.

Born Nowhere | Imagem: Lais Pontes

Mais uma vez voltamos a um tema que foi discutido pelo menos quatro vezes aqui no blog: produzimos imagens aos borbotões, divulgamos incessantemente na internet, mas temos pouquíssima formação para lidar com cultura digital. Entramos nas redes sociais, não lemos contratos, aceitamos alterações e atualizações de ferramentas sem ter noção exata das consequências que elas podem gerar na nossa vida prática.

O maior problema é que se uma dessas imagens publicadas for usada indevidamente ou causar constrangimento público a alguém, o Facebook pode não sofrer nenhuma retaliação judicial porque usamos o serviço gratuitamente. David Riecks elucidou bem esta questão ao dizer que quando utilizamos uma rede social sem pagar nada, nós não podemos ser tratados como consumidores, pois somos, na verdade, o produto que elas vendem para as empresas que financiam esses projetos.

Assim, nenhuma lei ou código do consumidor protege o usuário nessa ocasião. Ainda mais porque para entrar em qualquer outra rede social, nós clicamos naquele quadradinho que diz “aceito os termos de uso”. Pronto, nos disponibilizamos como produtos em projetos que fazem parte de um circuito de leis fora do nosso território e do qual nós não temos controle. O preço é aprender a usar essas redes e colocar em prática quase sempre o velho exercício da dúvida.

David Riecks dizia que embora o projeto de lei norte-americano ainda esteja em andamento e a crise possa atrapalhar um pouco a sua votação, existe um outro semelhante transitando no Reino Unido. Se um desses locais aprovar a votação, é provável que outros irão segui-lo com resoluções semelhantes e precisamos pensar em como agir, caso isso aconteça. E essa preocupação não deve ser apenas de fotógrafos que possuem trabalhos elaborados, mas de todo mundo que fotografa, porque a gente não tem controle do uso que se pode fazer dessas imagens.

Elas podem ser reutilizadas em iniciativas super bacanas, mas também servirem a interesses que nem sempre compartilhamos. É claro que uma vez publicadas na rede,  realmente não temos controle de onde nossas imagens vão parar, mas por meio de metadados e tags podíamos rastrear um pouco esses usos. Sem isso e sendo o Facebook hoje a rede social que abriga uma porcentagem significativa dos arquivos de imagens do mundo, não temos mais como ficar dormindo no ponto.

Sem metadados, minha cobertura do Rec Beat está hospedada na rede social - leitura e acompanhamento dos debates é essencial | Foto Ana Lira

O que é possível fazer, então? A primeira coisa é não usar as redes sociais como ponto de armazenamento de imagens. Ou seja, não substituir o seu “álbum de família” pelo Facebook, Orkut ou outra rede semelhante. Além de pouco seguras, quando elas recebem os arquivos do nosso computador eles são compactados de uma forma que até a impressão de uma foto 10×15 fica comprometida, dependendo da qualidade da imagem inicial.

Quando eu dei oficina para pontos de cultura, em Nazaré da Mata, interior de Pernambuco, um deles havia guardado cerca de 10 mil fotos em álbuns do Orkut e estava jogando suas mídias óticas (cds e dvds) no lixo. Paramos tudo e fomos recuperar o que ainda era possível para que a memória do ponto não ficasse ainda mais comprometida. Em uma outra oficina recente, em Peixinhos, um dos participantes descarregava a câmera direto no Orkut, depois dos shows de sua banda e deletava os arquivos do cartão de memória. Um desespero.

Aprender a gerenciar esses arquivos é a ordem do dia. Em um país cujos fotógrafos não percebem como uma responsabilidade pessoal o cuidado com seus acervos – porque parte do mercado fotógráfico, em especial o que lida com fotojornalismo e fotografia de evento, o trata apenas como o “criador de imagens que deve entregar o filme ou o cartão de memória no final do trabalho e não se preocupar mais com nada” – as consequências podem ser bem críticas.

A sugestão dada pela mesa foi: se você tem câmera que fotografa em raw, faça as fotos nesse formato sempre. Em seguida, assim que transferir os dados para o computador, procure fazer uma cópia dessas imagens em formato DNG, pois, o raw de cada fabricante é diferente e não se pode esperar que eles mantenham o mesmo formato o resto da vida. Se a sua câmera não tiver raw, fotografe com a melhor qualidade de JPEG que possuir na câmera. Se conseguir colocar seus dados iniciais na máquina, para que ela grave nas fotos que você faz, melhor ainda.

Durante o processo de transferência das fotos para o computador, renomeie os arquivos contendo informações básicas da fotografia e da situação (por exemplo 20110927 – Projeto Aracaju). Preencha os metadados devidamente e, se possível, armazene em três tipos de mídias diferentes: por exemplo, em dois hds e em DVD (ou blue ray ou semelhante). A importância do discos óticos no processo (dvds, blue ray) é porque hd e pen drive são mídias que podem ser desmagnetizadas, enquanto a mídia ótica não corre esse risco.

O problema é que as mídias mudam e desse percurso não temos como correr. Cuidar de nossos acervos digitais é construir na própria vida um sistema constante de gerenciamento desses arquivos.  Eles precisarão ser mudados para novas mídias constantemente, exceto se nos dispusermos a manter em casa máquinas e programas que leiam mídias que estão deixando de ser fabricadas – que, algumas vezes, vale muito a pena, mas também exige cuidado e o contato firme com pessoas que saibam como encontrar peças e consertá-las. Não poderemos resolver tudo sempre.

Uma outra solução dada pela mesa – e esta é a mais cara de todas – é juntar um bom dinheiro para iniciar um processo de conversão de acervos digitais em analógicos. Ou seja, imprimir os nossos raws em película por meio de leitores digitais RGB. Isso é o que tem sido feito em grandes instituições de preservação de acervos, em especial aqueles que guardam grande quantidade de dados em mídias que podem ser desmagnetizadas.

A justificativa é que, embora o trabalho para preservação de negativos também seja grande, os materiais analógicos possuem “morte lenta” (vão deteriorando com o tempo), enquanto os arquivos digitais sofrem de “morte súbita” (se algo ocorrer tudo é perdido). E como a indústria digital não tem investido em técnicas de recuperação de dados a mesma atenção e financiamento que ela tem dado à criação de novas tecnologias para nos embriagar de desejos, estamos diante de um tema que não pode mais ser deixado debaixo do tapete. Ou a gente usa esse susto para criar uma cultura de lidar com o que produzimos ou não adianta lamentar depois.

Quanto ao Facebook, a sugestão dada em caso de precisar usar a rede como forma de difusão de imagens, ou seja, apenas para mostrar e discutir com os resultados de um trabalho ou para mostrar aos amigos as suas fotos de férias, a idéia é colocar a imagem em baixa resolução em outros sites que mantenham os metadados e colocar o link na rede social.

A observação feita acima sobre o Facebook continua a mesma aqui: não utilizar esses sites como espaço de acervo, apenas como ponte para mostrar o que você quer compartilhar com as pessoas. Se algum desses sites, como o Flickr e o PhotoShelter, um dia desaparecerem, eles não levam embora o melhor da sua memória afetiva e produtiva. Diante da atual conjuntura, cuidar disso é o mais importante.

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2 respostas para Diário de Bordo – Paraty em Foco 2011 – Cultura de Preservar

  1. Grandes e importantes reflexões. Grato pelo relato, Ana.
    Abraços

  2. Olá Ana Lira, tudo bem?
    Obrigado por expor suas reflexões. O interessante é usarmos o próprio facebook para difundir, ou “compartilhar”, essas discussões. Eu farei isto.

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