No mês passado, foi divulgada na revista Scientific American uma pesquisa realizada na Universidade da California que mexeu muito comigo. Os cientistas desenvolveram um equipamento que consegue reconstruir em vídeo, com um aparelho de ressonância magnética (fMRI), imagens captadas através de atividades do cérebro. O experimento foi o seguinte: “cobaias” voluntários assistiram a filmes curtos e, enquanto isso, o fMRI registrava impulsos cerebrais deles que foram transformados em imagens através de um computador.
O fluxo de sangue que transitou pelos córtices dos cérebros dos voluntários foi transformado em voxels, uma espécie de pixels volumétricos, e, assim, em imagens. Para ser mais específica: as imagens geradas pelo computador, a partir de tal ressonância, se relacionam fortemente com cenas reais dos filmes a que o pessoal estava assistindo. É como se o software construísse um banco de imagens passadas na mente dos voluntários.
Para a ciência, está cada vez mais possível descobrir o que se passa no cérebro das pessoas. E, detalhe: descobrir com imagens. O processo, conhecido como Brain Movies, propõe uma idéia de armazenamento de memória, direto da mente. É como se a tendência, pensando bem “prafrentex”, fosse gravarmos imagens diretamente do nosso cérebro. Na prática do cotidiano, o uso mais “palpável” é para facilitar a comunicação com pacientes em coma.
Eu não sei se é possível (mesmo com o melhor equipamento high tech do mundo) captar um dia tudo o que se passa na mente de uma pessoa, mas achei a potência do negócio incrível.
Quando a ciência surgiu como Ciência (instituição com o intuito de desenvolver e catalogar o saber humano e a tecnologia, metodológica-ética-politicamente), surgiram também as enciclopédias modernas dos iluministas, que eram uma espécie de compilação de tudo o que existia de descobertas, definições e conceitos. De tudo se encontrava ali. Logo depois, com o positivismo principalmente, fomos especializando cada vez mais as disciplinas e, então, as enciclopédias não davam mais conta de tal compilação, assim, livros de biologia não interessavam mais aos geógrafos, os de medicina não interessavam mais aos químicos, os de física não mais interessavam aos filósofos. E cada um trilhou o seu caminho. Criou-se um pensamento de que certos assuntos eram específicos de cada área.
Percebo muitos resquícios desse tipo de pensamento em algumas pessoas. Um desinteresse enorme por coisas que afetam diretamente nossa sociedade, mas que parecem não pertencer a territórios específicos estáveis nossos.
Porém vejo, com muito otimismo, um movimento contemporâneo que retoma a interdisciplinaridade, principalmente nas neurociências e nos estudos das mídias digitais, novas tecnologias e afins. A sociedade, cada vez mais em rede, tem adotado um pensamento também em rede, e isso é muito bom, afinal, cada descobertinha dessas tem conseqüências diretas na vida nossa de cada dia. Enfim, fotógrafos, artistas e comunicadores em geral estão acordando para uma realidade múltipla (e os cientistas experimentais também!). E a Wikipedia ressurge, na “prateleira virtual” de acesso a todos.
Ok. E o que isso tem a ver com fotografia? Acho que muita coisa (se eu disser tudo, vão dizer que eu sou exagerada). Gosto de me incluir neste último grupo, com interesses interdisciplinares, e vejo na pesquisa dos cientistas da Califórnia um grande mote para repensarmos juntos as ciências humanas, e, mais especificamente, as teorias da imagem (e a fotografia dentro disso tudo), seja filosoficamente, fenomenologicamente, sociologicamente, semioticamente, psicologicamente, mediaticamente, afetivamente (por que não?).
Por muito tempo, uma tirania da palavra fez com que muitos pesquisadores, filósofos , teóricos e práticos do mundo inteiro limitassem o conhecimento a uma potência desenvolvida com complexidade apenas no universo do verbal. Imagens eram vistas como coisas primárias, ultrapassadas, limitadas. Era praticamente impossível imaginar um pensamento visual, muito menos uma educação para imagens. Por mais que o mundo nos metralhasse com elas (ver a série “No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais” produzida para a TV Futura), elas estavam sempre subjugadas àquelas palavras, para as quais fomos especificamente alfabetizadas (recomendo a leitura de O Quarto Iconoclasmo, de Arlindo Machado).
E, então, o que acontece? Aparecem-nos uns neurocientistas (em uma equipe que, seguramente, deve ser formada por biólogos, engenheiros, físicos, médicos, etc – se precisarem de alguém das humanas, eu me candidato! o/) que mostram imagens, imagens do pensamento, imagens que navegam no cérebro das pessoas e comunicam. Estamos cada vez mais (e desde sempre) pensando e construindo conhecimento através de imagens. Como fotógrafos, temos um papel importante nisso tudo.
Outro dia, eu conversava com Fernanda, uma menina da Física, “filósofa de botequim” e grande amiga minha de longas datas, e ela me dizia que as invenções científicas aconteciam tão rapidamente e só quando vinham as consequências é que nós das humanas passamos a estudá-las… E que isso pode ser um perigo. Temos um papel importante na construção desse desenvolvimento acelerado.
A fotografia, em minha opinião, se encontra no campo da comunicação. E, sem querer puxar a sardinha para o meu lado, mas já puxando, vejo um inchaço no campo da comunicação. Tudo interessa e tudo deve interessar aos que se colocam como comunicadores. Afinal, somos seres humanos porque somos seres que comunicam, no sentido mais complexo que isso possa ter. Por isso, está na hora de nos metermos mais onde não somos chamados, de nos inserirmos nos “antes” e nos “durantes” desse tipo de pesquisa (parece que só podemos dar opiniões nos “depois”), de pensarmos ao lado dos “cientistas” sobre as potencialidades que criaremos para nossa vida futura, de colocarmos um pensamento crítico dentro dessas invenções tecnológicas. É nosso interesse e nosso papel, como criadores e distribuidores de fotografias, ajudarmos a compreensão do mundo das imagens, questionando seu papel dentro do próprio pensamento.
Na Idade Antiga, ciência, arte, filosofia e magia eram as mesmas coisas, uma espécie de “techné”. É interessante que vejo a fotografia ocupando exatamente uma área mista, dentro de tudo isso: é técnica, é linguagem, é pensamento, é espírito. Acho que devemos deixar os territórios mais fluidos e derrubar algumas muralhas que separam os interesses no desenvolvimento do mundo em que todos nós vivemos.