Por Eduardo Queiroga
Gosto muito da ideia de diálogo trazida aqui por este espaço, onde posts conversam entre si. Penso também que os diálogos – além das fronteiras deste blog – se dão não apenas em referências mais explícitas, ligações diretas e citações, mas estão presentes em outras relações até mesmo inconscientes. Independentemente se fazemos uma referência, se registramos de onde chegam nossas angústias e motivações, sempre estamos dando seguimento a questões já colocadas. Partimos de dúvidas ou instigações alheias. Mesmo que nossas ideias estejam sendo colocadas para “derrubar” falas anteriores, as construímos a partir de uma base – que pode até ser uma ruína.

Fotografia de James Nachtwey que compõe o projeto XDRTB.org, que usa fotografias e vídeos disseminados via internet no combate a um tipo de tuberculose extremamente resistente a drogas.
Maria Cecília Salles, no seu livro Redes de Criação (Editora Horizonte), investiga o processo de criação e defende a ideia de que a construção da obra de arte passa sempre por um emaranhado de fatores, muitos deles completamente fora do controle do autor. Ela aborda o trabalho de pintores, escritores e escultores e lista questões que vão desde as pesquisas empreendidas para a produção de um trabalho até mesmo os acasos e erros que são incorporados ao resultado final. Ela não trata diretamente da fotografia, mas suas considerações podem ser tranquilamente aplicadas a essa linguagem.
Quem de nós fotógrafos, criadores de imagens, autores de trabalhos fotográficos poderia negar a importância de uma conversa com amigos nas fotografias de nossas exposições, flickrs ou matérias fotojornalísticas? Um bom papo informal sobre um trabalho pode nos trazer ideias cruciais para o seu desenvolvimento. Assim como uma pesquisa prévia – na internet ou na biblioteca – em busca de referências. E o tempo, por que não incluirmos este fator na lista daquilo que define a forma final de nosso trabalho? Seja o prazo de entrega ou o tempo do material que usamos. Não estou nem falando de sensibilidade ou velocidade de obturador, mas do processo, da experiência mesmo de cada dispositivo ou material fotossensível. Maurício Lissovsky e Camila Targino podem nos lançar boas questões nesta discussão.

O trabalho Meu Mundo Teu, de Alexandre Sequeira, mescla o universo de dois adolescentes paraenses através de uma correspondência linda e emocionante, formada por textos e imagens.
O acaso é outro ingrediente muito presente na criação fotográfica. Quantas das grandes fotografias da história não são fortemente impregnadas pelo acaso ou mesmo pelo erro, pelo inesperado? Um movimento de uma pessoa, um resultado não calculado, um deslize na revelação… realmente as possibilidades de intervenção do acaso são muitas. O mercado, com suas influências, com seus modismos ou tendências, também nos conduz naquilo que chamamos de escolhas – que muitas vezes mais se assemelham à falta de escolha ou a certa aleatoriedade nelas. E a tecnologia? Ora nos prende com suas limitações, ora nos abre novos e amplos horizontes com seus avanços. É certo que as tecnologias respondem a anseios e necessidades da sociedade e são diretamente influenciadas pelos usos sociais e apropriações, nem sempre condizentes com os objetivos iniciais das invenções, dos novos dispositivos. Mais importante que as tecnologias são os usos dados pela sociedade a elas. Mais importante que uma câmera com ISO altíssimo sem ruído é perceber que novos ambientes – espaços, situações, territórios – serão fotografados com um tratamento de luz novo. A diminuição do tempo de pose libertou as pessoas fotografadas de traquitanas desconfortáveis e consequentemente possibilitou uma fotografia com expressões menos sofridas. As lentes claras e câmeras discretas nos trouxe o fotojornalismo de Erich Salomon. E assim por diante.
Se são tantos os fatores responsáveis pelo que chamamos de obra, lidamos com infinitas variáveis, cujas alterações poderiam dar resultados completamente diferentes. Ou seja, podemos entender que aquilo que vemos e experimentamos como obra fotográfica poderia ter outra forma a depender da alteração de alguns desses fatores? Acredito que sim. Por outro lado, o fotógrafo não tem domínio nem é senhor de todos os fatores envolvidos na criação, muitos deles sendo fruto da relação com outras pessoas, como quando buscamos referências ou mesmo conversamos com outros autores, com amigos, com professores – e podemos incluir aqui toda a cadeia produtiva como tratadores de imagens, laboratoristas etc. Se as alterações no percurso podem ser muitas – levando a resultados diferentes – e o fotógrafo não domina todas essas possibilidades – algumas passando até pelo trabalho alheio –, até que ponto podemos afirmar que a criação fotográfica é fruto de um trabalho individual daquele sujeito que leva o crédito? Antes de alguma interpretação apressada achando que eu estou pregando o fim da existência do fotógrafo, ou de sua importância, devo puxar as rédeas das ideias para um rumo que considero instigante e importante. Talvez estejamos vivendo um deslocamento do local de fala do sujeito criador. Será que é isso?

Menos Valia, de Rosângela Rennó é formada por fotografias e outros dispositivos comprados em feiras de artigos usados e recolocados em circulação pela artista, adquirindo novas camadas de significação.
Em tempos de convergência – não falo aqui de aparelhinhos cheios de aplicativos, apenas –, a digitalização dos processos permite um maior compartilhamento não apenas no sentido de fazer circular, mas também de produções colaborativas. Não que colaboração tenha sido inventada pela digitalização ou pelas novas tecnologias, mas é indiscutível como vivemos numa lógica mais estimulada pela articulação em rede. Na fotografia, não apenas a captação deixou de ser um campo restrito a profissionais, mas também a edição, a publicação. Qualquer um hoje não só fotografa, como faz correções, montagens, ajustes, reenquadramentos. No tempo do laboratório, essa manipulação era coisa para poucos iniciados. Além disso, hoje todos podem publicar e fazer circular suas imagens de maneira muito mais acessível.
Resumindo: quem faz fotografia não domina todas as peças – nem regras – do jogo; a mudança de uma dessas peças pode ocasionar um resultado bem diferente do inicialmente planejado; qualquer um pode entrar no jogo e participar de todas as etapas – não apenas um seleto grupo de iniciados. E onde fica o fotógrafo e seu gênio criador no meio disso tudo? Bem, uma hipótese pode ser esse tal deslocamento que citei alguns parágrafos acima. O fotógrafo em tempos contemporâneos é aquele que articula outros saberes, outros campos, outras sintaxes e ligações externas ao fazer fotográfico entendido de uma maneira mais clássica. O fotógrafo pode até ser responsável pelo ‘clique’, mas isso é pouco ou até desnecessário em alguns casos. É mais determinante que ele seja o sujeito que domina a linguagem, responsável por construir discursos, explorar camadas de significação, envolver outras instâncias de experiências. Assim como configuramos os controles das nossas câmeras, devemos apertar os botões da linguagem em si de maneira consciente. Será?

O coletivo Cia de Foto visitou os arquivos do Centro de Cultura Judaica, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo e de lá saíram com a série Retiro, que remontam a um “tempo inédito” daquele bairro.
As imagens que ilustram este post são atravessadas por um emaranhado de ligações com o dentro e com o fora da fotografia. São elaborações cujo existir é formado por uma lógica rizomática, em que o fundamental está nas linhas que se formam – ou mesmo nas que se rompem. São ricos exercícios de um fotográfico em rede.
OBS: este texto é resultado direto de um longo diálogo com Isabella Valle, iniciado tempos atrás e que aparece também num artigo que escrevemos em coautoria.
É bom ver todas as coisas que discutimos organizadinhas e resumidas em um texto tão bom. Obrigada, Queiroga! Cheiro!
É, do Intercom pra cá cresceu como ideia. Bom de ver isso.
Adorei a lógica rizomática 😉
Bj pros dois ‘autores’!
Oi Queiroga,
é bem instigante essa investigação.
Por aqui, temos pensado bastante no “virtual como dispositivo fotográfico”, nessa busca de entender por onde caminham os processos criativos.
Esse conceito de dispositivo de que fala Agamben, entre outros autores, e que coloca as mediações, os agenciamentos, as ações do coletivo, ou até mesmo o acaso, como um dispositivo cultural.
Assim como foi dito nesse texto, essas etapas em um processo fotográfico se portam realmente decisivas. E o virtual é uma espécie de superfície sensível(ou de máquina fotográfica!) que tem a capacidade de desterritorializar qualquer sentido apreendido como atual, impondo uma sucessão de imagens que não se fixam e se recolocam, sempre em um depois, descoladas de qualquer intenção planejada.
Você leu de Claudinha(Icônica) : “[…] o virtual se define como o que surge e desaparece “num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável” e opera por um princípio de indeterminação ou de incerteza — já que a brevidade ou efemeridade do virtual, num tempo não pensável, introduz o aleatório e o caos no cerne do movimento virtual. Na zona de indeterminação, entre o que não está lá nem cá, o virtual se atualiza, sempre outro[…]”? Tem um “sopro”no texto dela que também amplia a noção em torno da criação de imagens.
O fotógrafo é a menor parte de uma fotografia. Essa linguagem que tem, entre as suas rebeldias, a capacidade de desconfigurar as intenções que lhe fizeram existir.
Obrigadíssimo pela citação de“Retiro”. Gostamos tanto dessa série que é legal vê-la por aí…
Pois é, Pio. Ótimo articular a ideia de virtual nessa discussão. Como não poderia deixar de ser, estamos tateando nessa investigação e, se pensamos e acreditamos na lógica do rizoma, as construções se fazem nas ligações, nessa linha que pode habitar (ou ser habitação de) um tempo efêmero, cujo rompimento já se configura como uma nova possibilidade. Ou seja, se não estiver muito enganado, existe toda uma riqueza de virtuais também na construção de nossa discussão. Algo que me instiga muito.
Obrigada, queridos Pio e Lívia. É uma honra tê-los visitando nosso blog, viu? Cheiro e saudades de vocês!
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é provável que o próximo passo seja esse mesmo: o fotógrafo como alguém que articula linguagens; que não domina tudo, mas tem percepção apurada e está atento ao acaso e ao “erro” como possíveis elementos de composição; que recorre à tecnologia e ao conhecimento de outros especialistas de acordo com o propósito do trabalho. acho, inclusive, que essas questões ajudam a diferenciar de forma mais clara o fotógrafo das demais pessoas que fotografam. não que apenas o fotógrafo pense, longe disso. porém me parece válido concluir que o fotógrafo tende a se aproximar cada vez mais da figura de mentor imagético.
***
chamou minha atenção o termo “lógica rizomática”? o que é isso? poderiam me indicar referências? valeu!
Oi, Chico,
Rizoma é um conceito trazido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em sua obra “Mil platôs” (Editora 34). O rizoma tem alguns princípios. O primeiro deles é o de conexão – qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro. É diferente, por exemplo, da ideia de árvore ou raiz, muito comum quando se fala em ligações e esquemas, quando há um centro, uma ordem, algo está ligado a outro, porém numa ordem definida. Aqui, no rizoma, também considera a ligação com pontos de outra natureza, ou seja, ligações externas. Embora o rizoma se faça pela ligação – e não por algo anterior – essas linhas podem ser rompidas, mas isso também faz parte do rizoma, ele também é composto pelas rupturas e novas ligações (linhas de fuga) que acontecem a partir daí. Enfim, é um conceito muito interessante para observarmos vários fenômenos atuais e merece um aprofundamento devido, pois não se resume a essas características que trago aqui. O próprio livro foi escrito de uma maneira rizomática, segundo os autores e pode ser lido em qualquer ordem, não necessariamente na que está editado.
Deleuze = <3. Tão lindo a gente trazendo esses conceitos pra cá pra tão pertinho do nosso dia-a-dia… Obrigada, gente, pelo diálogo lindo e cheio de trocas!
o pouco que você explicou já foi bem válido! legal imaginar, a partir dessa perspectiva, que não existem apenas “reações em cadeia”, mas ecos que se espalham em inúmeras direções. e há sempre um sentido, não importa pra onde olhemos. é assustador e ao mesmo tempo instigante pensar que, por exemplo, as nossas fotografias influenciam no desenrolar de fenômenos mais até do que podemos perceber. muito bom mesmo. obrigado, Queiroga!
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