Eduardo Queiroga trouxe questões interessantes em seu primeiro diálogo publicado aqui no blog. Ele discutiu o processo de criação como um campo de articulação de experiências diversas e o desdobramento delas na construção de uma linguagem fotográfica que, na perspectiva dele e de Bella Valle (que foi colaboradora na discussão das idéias do texto), é um dos fatores determinantes para o desenvolvimento da produção contemporânea, em especial neste panorama em que os códigos técnicos são manuseados com mais facilidade por qualquer pessoa.
Antes de continuar este texto, deixa eu situar o que eu estou chamando de linguagem: a articulação entre um aprendizado técnico e referências que, ao dialogar com as vivências que cada um tem no cotidiano, se transformam nos códigos visuais pelos quais alguém se expressa na fotografia. Uma vez dito isso, prossigamos.

Agência Ensaio é referência na produção de conteúdo por meio da articulação de referências diversas. As experiências agregam fotógrafos e não fotógrafos na Paraíba sob a coordenação de Ricardo Peixoto.
O que me chama atenção neste debate é que as pessoas, em geral, agem com tranquilidade quando falamos que o fazer fotográfico contempla o aprendizado da técnica fotográfica e até quando mencionamos que fatores externos, como o acaso, podem interferir na construção de uma fotografia. Porém, esse sentimento desaparece quando dizemos que a fotografia é uma via de expressão pessoal e que é possível tornar consciente o processo de construção da linguagem fotográfica de cada um.
Falamos com muita naturalidade nesta fotografia que é resultado da parceria entre o aprendizado da técnica e as nossas bagagens particulares – leituras, conversas, experiências sensoriais, crenças e tudo mais –, mas nem sempre isso é tão palpável assim para as pessoas, mesmo para várias que trabalham no cotidiano como fotógrafos. Existe uma dificuldade de compreender, por exemplo, como uma crença que temos pode se transformar, de forma consciente ou não, em códigos visuais e se mostrar na produção fotográfica.
O que abriu meus olhos para essa questão foi a experiência com oficinas de fotografia. Em uma tentativa de debater o campo além do manuseio do equipamento, eu agreguei nos meus planos de aula discussões e estudos sobre linguagem. Então, observei nos participantes, alguns deles fotógrafos, expressões de inquietude e falta de entendimento. Para muitas pessoas, a fotografia ainda é sinônimo do uso padronizado da câmera, quando não encontramos quem ainda ache que ela é apenas a câmera. Então, além de rever minhas próprias crenças, eu precisei repensar a maneira de abordar isso nos cursos.

Experiência da FotoAtiva em Belém é uma das mais distintas na elaboração de vivências em fotografia, linguagem e processos criativos para um público amplo | Foto: Irene Almeida
Eu creio que precisamos caminhar muito ainda para que a idéia da fotografia enquanto linguagem e processo criativo, derivado de uma rede de colaborações, torne-se realmente palpável para um público maior. É um desafio. Se conseguirmos pensar as propostas de discussão e ações bacanas que possam valorizar essa discussão em espaços mais amplos e para um público não apenas de fotógrafos, como fazem a Agência Ensaio e a FotoAtiva, creio que podemos dar passos importantes nessa discussão.
E essa discussão é importante porque, como citou Queiroga em seu diálogo, existem um domínio de processos de pré-produção e pós-produção da fotografia por pessoas que estão fora do “circuito fotográfico”. Eu tenho algumas dúvidas se a disseminação desse conhecimento ocorre de fato em larga escala fora das capitais (e até em todas as capitais), mas acho que ele existe, que a tecnologia e a convergência permitem uma troca muito maior de informações, em especial para uma faixa etária que se mostra muito interessada nas possibilidades de manuseio dessas ferramentas e das possibilidades de criação que elas permitem. Investir na integração desses temas como forma de aprendizado é um caminho.
E quando estamos lidando dentro do universo de quem, de alguma forma, trabalha com fotografia?
Acho que a discussão no meio fotográfico é que precisa ser ampliada. Existe uma dicotomia em que de um lado vemos um aprofundamento enorme da discussão e de outro o oposto disso, às vezes o debate nem chega. É claro que da mesma maneira que ocorre na própria fotografia, existem vários fatores que influenciam na dinâmica dessa relação de comunicação, mas se quisermos que cada vez mais pessoas apertem conscientemente o botão da linguagem vamos precisar investir nesse diálogo em várias esferas: em debates reais, virtuais, em trabalhos compartilhados com amigos, em leituras de portfólios, pesquisas, entre outros.
E, no caso dos fotógrafos e coletivos fotográficos, é preciso fazer um esforço para compreender que a consciência da construção da linguagem fotográfica não ocorre como uma iluminação. Ela é fruto de uma observação gradual e constante do processo criativo – e esse acompanhamento contínuo é importante porque a linguagem fotográfica não é algo que se descobre e ela fica estanque o resto da vida. Ela está o tempo todo em transformação, porque nós mesmos mudamos bastante. A minha linguagem fotográfica não é hoje a mesma de quando eu comecei e não será a mesma em dez anos.
Agora mesmo, eu observo a mudança de dois parceiros meus do Trotamundos Coletivo e fico cada vez mais deslumbrada com as minúcias que levaram a uma nova visualidade no trabalho dois dois. Às vezes, desenvolvemos uma linguagem e não percebemos – e outras pessoas é que chamam atenção para o fato. Outras vezes, quando os fotógrafos não conseguem usar a expressão linguagem para falar de algo que sintetiza esse processo de identificação de um trabalho ou da obra de um fotógrafo ou coletivo, eles usam a palavra estilo, mesmo que ela possa não significar a mesma coisa.
E isso ocorre, como foi dito no diálogo de Queiroga, por meio de uma rede de relações conscientes e inconscientes que perpassam a nossa fotografia.
A questão é que, embora estejamos caminhando novamente para a percepção de que os processos criativos e seus desdobramentos na construção da linguagem fotográfica não são frutos de uma autoria isolada, ainda convivemos com um rotina cuja base ainda carrega a lógica inventor como um pesquisador brilhante e solitário. Mesmo em espaços da fotografia onde este debate ocorre com frequência, ainda vemos resquícios fortes desse pensamento.
Por exemplo, a fala de Martin Parr, citada por Maíra Gamarra no texto sobre clichês e criatividade na fotografia, me parece impregnada desse sentido, quando ele diz que deixa de se interessar por trabalhos em que consegue ler as referências do fotógrafo. Se a linguagem é fruto de um processo criativo que articula diversas referências, não deixa de ser controverso solicitar que ela apareça despida dessa rede de relações. Portanto, não é estranho esbarrar em fotógrafos ou coletivos confusos com seus processos criativos, uma vez que no próprio universo da fotografia estas questões ainda geram retornos dissonantes.
Somos resultados de uma articulação ampla, mas no momento em que colocamos o nosso trabalho debaixo do braço para enfrentar o mercado de peixe, às vezes somos confrontados com pedidos de assinaturas pessoais e intransferíveis que destoam da experiência de criação compartilhada. Então, como esse processo pode deixar de ser debatido também como uma questão de autoria (mesmo coletiva), se na outra ponta da discussão, o exercício de refinamento dessa linguagem ainda é visto como “apagamento” ou “atenuamento” das linhas que usamos para tecer nossas idéias?
A diferença, talvez, esteja justamente na compreensão da possibilidade de criação de uma linguagem coletiva. As parcerias fotográficas e as experiências dos coletivos estão mostrando que é possível elaborar trabalhos e ações relevantes, a partir da construção de uma linguagem que traz a síntese de um processo que implica ganhar algumas coisas e ceder em outras. Isso enriquece a vivência, porque não é uma simples soma de linguagens pessoais. Então, por que negar isso no processo de apreciação de um trabalho?
Pensar nisso, me fez refletir mais uma vez sobre as relações de poder como via de diálogo na fotografia. Se em alguns momentos (como em algumas leituras de portfólio, debates, curadorias, exposições ou qualquer outro processo seletivo) é a força da individualidade do trabalho quem ganha a guerra de braço do discurso, em outros momentos é a capacidade do fotógrafo (ou do coletivo fotográfico) de dialogar com suas referências, com outros trabalhos e com o período que são vistos como virtudes. Cultivar a atenção a esses movimentos é importante para não ficar perdido em um campo de atuação tão cheio de entrelinhas.
E, nesse sentido, penso que um caminho de reflexão para essa problemática é reforçar a idéia de ponto de vista. Embora seja óbvia na teoria, o ponto de vista na prática é mais do que uma simples opinião a respeito de um tema. Ele exige que o fotógrafo, antes de tudo, compreenda que temas o sensibilizam, que discussões quer levar em frente e como elas aparecem em seu processo criativo. Além disso, um ponto de vista precisa vir acompanhado de um marco de partida – o que ajudaria a enfraquecer mais esse movimento de camuflagem de certos referenciais e ampliaria a tendência de discussões que se constroem a partir deles, como meio de perceber se o trabalho tem agregado algo mais ou não. Trabalhar mais fortemente com essa perspectiva pode ser um ganho enorme para todos nós.
Isso é o que muitos chamam de “alfabetização visual”. Eu, particularmente, não gosto do termo porque faz muita referência a um alfabeto verbal, que, em minha opinião, é outro tipo de leitura bastante diferente. Imagens são um tipo de texto (ou código, como aninha prefere chamar), um tipo de linguagem distinto. O que acontece é que, vivemos num mundo cheio de imagens e produzimos imagens. Todos nós: fotógrafos ou não. Porém, não conseguimos ler as nossas próprias imagens (identificar referências, escolhas técnicas, expressões), muito menos a dos outros. E quando somos colocados diante de uma oficina que nos propõe exercitar essa leitura ou essa identificação, ficamos sem saber como isso deve ser feito. É complicado. Fotografia, particularmente, habita esferas múltiplas e tem funções diferentes a partir dos seus usos e contextos. Não dá pra propor uma alfabeto, porque não há uma forma única de ler. É como interpretar um poema do mesmo jeito que se interpreta o mesmo texto se ele tiver localizado em um manual de instruções. Não dá pra ter o mesmo olhar. É preciso ter senso crítico, estético, psicanalítico, histórico. É preciso viver num mundo menos ignorante pra conseguir entender tudo isso. É preciso aprender a ler imagens, só que na escola só nos ensinam o abc (e nem pra ensinar a ler verbo direito isso serve)… Falta nos darem bagagem para termos senso crítico.
Que bom que esses diálogos continuam.
Um ponto que eu colocaria, para alimentar a fogueira, seria … a gente deve pensar a experiência coletiva – independente se organizada ou não – como síntese ou como abertura? Penso mais numa perspectiva de abertura a novas ligações do que algo mais centrípeto de convergência… embora não deixe de ser em alguma medida.
além da lógica ainda majoritariamente individualista que rege a produção e o mercado fotográfico e da defasagem na educação em prol da construção de um senso mais crítico e multidisciplinar, eu acrescentaria uma outra questão: a arte como manifestação elitista.
importantes mostras fotográficas, na grande maioria dos casos, são expostas em redutos artísticos ou locais de pequena circulação de pessoas, cujo público costuma ser sempre o mesmo: fotógrafos e outros pequenos grupos de pessoas apreciadoras de artes visuais. tem que parar com isso. de alguma forma, o tempo de exposição do que é produzido com qualidade, a fotografia que faz pensar, deveria ser alternado entre a permanência nesses locais já citados e espaços de grande circulação de pessoas, como praças, shoppings, etc. coisas assim já rolam por aí, mas estão longe de ser uma prática comum. num primeiro momento dentro de um processo de transformação, a fotografia tem que ir aonde o povão tá, não o contrário.
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