Antes de começar a levantar algumas questões por aqui, eu gostaria de deixar claro que não tenho nada contra o uso automático de aparelhos fotográficos. Acho, inclusive, que alguns mecanismos simples, como iPhone + instagram, têm me ajudado muito a exercitar a fotografia de forma gostosa, sem culpa e, muitas vezes, sem nem querer, produzindo imagens que se tornam importantes para mim, tanto afetivamente como enquanto fotógrafa.
Porém, aproveitando o mote da produção de linguagem levantado por Aninha no último diálogo e trazendo um pouco das discussões que conduzem minha pesquisa de mestrado, eu gostaria de fazer aqui algumas reflexões.
No debate da produção fotográfica como uma rede de influências (muito bem pontuado por Queiroga), um item, além dos vários que permeiam o processo criativo, será foco aqui neste meu texto: o entendimento técnico. Longe de mim querer concentrar a autoria da criação no sujeito que manipula a câmera, porém é inevitável perceber que tal sujeito é condutor das múltiplas influências na concretização da foto, inclusive por ser ele mesmo quem vai, no fim das contas, dirigir esteticamente o texto visual.
Então, percebendo a importância do domínio técnico na ampliação das possibilidades de construção de uma linguagem fotográfica, quero aqui questionar o quanto nós nos dedicamos a aprender de verdade sobre os aparelhos que manuseamos, no caso destaco as tecnologias digitais (ou numéricas), para além das interfaces fáceis. Aninha disse que “os códigos técnicos são manuseados com mais facilidade” hoje em dia. E eu nos pergunto: será? É claro que o fato de os aparelhos terem se tornado mais popularizados e automatizados, facilita realmente seu uso. Mas saber usar uma câmera automática, por exemplo, é o mesmo que dominar os códigos com facilidade ou é, ao contrário, delegar escolhas de linguagem a aparelhos pré-programados?
Edmond Couchot, em seu livro A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual, diz:
No domínio da arte, o numérico renova totalmente as ferramentas e os materiais que não são mais os do mundo real, mas aqueles da simulação: o artista não trabalha mais com a matéria nem com a energia, mas com programas, direta e indiretamente. […] A lógica figurativa subjacente ao numérico é a simulação. O sujeito se aparelha de agora em diante com automatismos de uma potência inaudita. Essa situação deve questionar fortemente a arte, seus praticantes e seus teóricos. Qualquer que seja a atitude que se adote – explorar as novas possibilidades oferecidas pelo numérico, experimentá-las, levá-las ao extremo ou desmontá-las, transportar-se para um outro terreno, resistir, ou ainda se dividir entre as duas atitudes – é impossível ignorar o fenômeno. Impossível não colocar no centro do debate atual da arte, sobre seu futuro na sociedade, a questão do numérico. […] A arte numérica, cujas premissas já maduras auguram uma grande longevidade, está apenas nos seus começos.
O advento da fotografia digital transforma as práticas sociais, comunicacionais e estéticas contemporâneas e muda nossa forma de lidar com fotografia, seja em sua posição como arte ou não. Por isso, é preciso experimentá-la e desmontá-la, questionando suas potencialidades. É preciso conhecê-la, para que, com intimidade, possamos escolher como escrever nossos textos (manusear os códigos) fotográficos – mesmo que a escolha, ao fim, seja automatizar tudo.
Couchot destaca que é impossível ignorar o fenômeno, porém, observamos que, se, por um lado, a grande maioria dos fotógrafos se utiliza hoje do suporte numérico, por outro, as interfaces das câmeras e dos programas gráficos e seus automatismos nos distanciam de um entendimento mais aprofundado sobre o processamento digital. O processo criativo se torna dependente das superfícies “facilitadoras” que, ao fim, acabam padronizando resultados estéticos e limitando a produção criativa – o que não deixa de ser a construção de uma linguagem (reproduzida, mas linguagem) com várias possibilidades de leituras críticas, muitas vezes desanimadoras, como levantou Joana ao falar da fotografia de moda contemporânea.
Porém, pretendo aqui trazer alguns pontos do processo fotográfico digital que merecem reflexão e pedem disposição por parte dos fotógrafos (que fotografam digitalmente, claro) para um mergulho nos conhecimentos técnicos (no caso, tecnológicos) mais aprofundado.
Quero deixar claro também que não defendo nenhum tipo de “morte” da fotografia com o advento do digital. Acredito que as coisas funcionam em fluxo, sem precisarmos delimitar tantas fronteiras. Por isso também, e sobretudo, por mais que eu fale de fotografia, também não pretendo levantar barreiras entre ela e outras linguagens, pois se fundem muitas vezes, desde sempre e mais ainda com as tecnologias numéricas.
Quando eu falo em domínio técnico, falo em saber fazer escolhas que determinam o procedimento de produção fotográfica, seu processo criativo, artístico, estético e seu resultado como texto visual.
François Soulages, no livro Estética da Fotografia: perda e permanência, fala sobre essas escolhas em diversos níveis (na possibilidade, na produção e na recepção da fotografia) e define a fotograficidade exatamente na articulação entre o “irreversível” e o “inacabável” contidos nessas escolhas (ou nesses “nós”, se pensarmos em rede, rizomaticamente).
Alguns desses momentos, como o do clique, são marcados pela irreversibilidade. Por outro lado, cada nó se abre sempre para um leque de novas possibilidades inacabáveis. Com o digital, essas possibilidades são inumeráveis.
O processo criativo fotográfico depende dessa rede de escolhas e muitas delas são técnicas. A maioria delas sabemos de cor: escolha da objetiva (distância focal e abertura), escolha da velocidade do obturador, escolhas de iluminação, escolhas de foco, de composição, de filtros, etc, etc, etc.
Porém, sinto muito informar, o domínio técnico da fotografia não é só esse. Se no analógico precisamos entender de filmes e químicos, de papéis e ampliadores, de sistemas de zonas e latitude, no digital precisamos entender de outras coisas, que, infelizmente, parece que temos preguiça ou não achamos que é da nossa conta.
Ansel Adams, grande fotógrafo, criador do sistema de zonas e mestre da fotografia química, fala em seu livro O Negativo (ironia do destino?):
Aguardo ansiosamente por conceitos e processos novos. Acredito que a imagem eletrônica será o próximo grande avanço. Esses sistemas terão características e estruturas próprias, e o artista e o técnico terão de se esforçar para compreendê-las.
Por isso, acho que até mesmo os mais conservadores deveriam ouvir os conselhos do mestre: esse momento chegou há um tempinho, mas nunca é tarde para começar a se esforçar. A não ser que você prefira ignorar os aparelhos digitais e escolha não utilizá-los.
Quando a materialidade da matriz fotográfica deixa de ser um objeto (o negativo) e se resume a códigos inscritos em uma memória física de computador, as potências do inacabável, dessas escolhas de linguagem, se transformam.
Não há densidades, compomos com bits. Enquanto na fotografia química, passamos horas no laboratório, na numérica tudo pode ser processado apenas em alguns instantes. Ela apenas é o que se comanda que seja – o programa é a chave para a possibilidade de qualquer leitura visual da imagem digital. É possível alterar os elementos da matriz fotográfica capturada ou as formas de interpretá-los visualmente, através de software de computador, criando inúmeras, possíveis e inacabáveis fotografias.
Diferentemente da fotografia analógica, a fotografia digital não é formada por compostos metálicos sensibilizados pela luz que formam grãos dispostos organicamente na superfície do negativo em densidades diferentes que determinarão suas tonalidades. A fotografia digital é formada por picture elements, mais conhecidos como pixels. Sua localização e sua cor são calculados matematicamente. As fotografias digitais ganham as mesmas características e potencialidades que qualquer imagem digital (ou digitalizada) possui. Ou seja, a única coisa que as diferenciam de outras imagens digitais é a forma como foram produzidas, no caso, através de uma câmera digital. Será que isso nao muda nada mesmo?
Alguns sensores são capazes de produzir tons que nenhum monitor ou impressora de alta resolução, ou até mesmo o olho humano, é capaz de mostrar/perceber suas variações. Será que essa informação é irrelevante?
A flexibilidade de uma fotografia digital é infinita. Você vai continuar limitando sua linguagem a se “alfabetizar” apenas pelos botõezinhos fáceis que a interface da câmera ou do Photoshop/Lightroom oferecem pra “facilitar” sua vida? Pois eu prefiro poder virar hacker quando eu quiser.
Você já se questionou o que é escolher o ISO em uma câmera em que não se troca de filme? Se a câmera digital vem com um sensor só, como ela pode variar o ISO? O que acontece, então? Sinto muito, é preciso que haja interesse, curiosidade e estudo, esforço, como diria Adams, para entender melhor tudo isso.
Por mais que pareça, a fotografia com o digital não se torna mais simples, mas, ao contrário, se complexifica a ponto de todo mundo parecer fugir ou delegar aos engenheiros que a entendam de verdade. Gente, somos fotógrafos! E quando a fotografia se funde com a informática, precisamos entender de computador para poder explorá-la em suas potencialidades estéticas, criativas, expressivas.
Não cabe neste espaço aqui (e nem a mim, mera mortal) explicar o digital, mas instigá-los a entendê-lo. Estimular o esforço, a vontade de compreender. Se quiser mais estímulo, é bom ler Flusser (Filosofia da Caixa Preta).
Arlindo Machado, meu querido orientador, diz, em Pré-Cinemas & Pós-Cinemas:
Na era da automação, o artista, não sendo capaz ele próprio de inventar o equipamento de que necessita ou de (des)programá-lo, queda-se reduzido a um operador de aparelhos pré-fabricados, isto é, a um funcionário do sistema produtivo que não faz outra coisa senão cumprir possibilidades já previstas no programa, sem poder, todavia, no limite desse jogo programado, instaurar novas categorias. A repetição indiscriminada das mesmas possibilidades conduz inevitavelmente à estereotipia, ou seja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados.
Para que seja possível aos fotógrafos quebrar essa estereotipia, é preciso entender bem os aparelhos que manejamos. Há inúmeras opções de escolhas estéticas ao longo do processo de criação fotográfica, é preciso conhecê-las. Entre o processamento analógico e o numérico há diferenças nos materiais, nas tecnologias, nos procedimentos técnicos e operacionais e, consequentemente, no processo de construção criativa e nos usos sociais. É preciso conhecer a fotografia digital que você manipula todo dia para além das interfaces, para que a linguagem estética fotográfica continue se desenvolvendo, se ampliando.
PS – Este texto foi baseado em um artigo meu apresentado ontem, 21 de novembro de 2011, no VIII Coloquio Internacional Franco-Brasileiro de Estetica – Estetica da Fotografia, que esta sendo realizado esta semana em Salvador.
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