Por Manuela Galindo*
“O cadáver visto aqui é o de M. Bayard, inventor do processo que acabou de ser mostrado a vocês. Até onde sei o incansável experimentador tinha estado, por cerca de três anos, ocupado com sua descoberta. O governo, que por um lado tem sido muito generoso com o Senhor Daguerre, disse que nada poderia ser feito em prol do Senhor Bayard; assim o pobre desgraçado afogou-se..”
O texto, escrito no verso da foto acima, não é bem o que parece. Bayard, um dos pioneiros da invenção da fotografia, o próprio que aparece na foto, foi quem o escreveu. Revoltado com a pouca recompensa que lhe foi dada pelo governo francês pela sua dedicação à pesquisa, quis protestar. Pintou o rosto e as mãos, posicionou a câmera e posou para si mesmo. Fez a foto circular, para que todos acreditassem que ele tinha se suicidado em nome da sua causa. Laura González Flores, no livro recém lançado em português ‘Fotografia e Pintura: dois meios diferentes’, diz que Bayard já transforma o noema de Barthes (‘isso foi’), antes mesmo de ele existir, em um ‘isso foi porque eu inventei’, destacando a fotografia como processo de criação”.
Na verdade, o que faz que o autorretrato de Bayard possa ser considerado a primeira mise-en-scène fotográfica não é nenhuma astúcia técnica, mas sim o fato de, apenas alguns anos após a invenção da fotografia, Bayard já ter se utilizado do status de verdade e da credibilidade conferidas ao registro fotográfico para controlar de acordo com sua vontade a recepção da imagem que produziu.
Além da definição de que o autorretrato fotográfico trata-se de uma imagem em que o fotógrafo assume simultaneamente as condições de sujeito e objeto da foto, convém ressaltar-lhe outra característica: o autorretrato trata-se do gênero fotográfico que anula a possibilidade de espontaneidade ante a objetiva. Essa condição dá ao autorretrato fotográfico características específicas dentro da fotografia como um todo: exige necessariamente uma mise-en-scène para sua constituição. E foi possivelmente por isso que o autorretrato foi o gênero fotográfico que ofereceu primeiramente a possibilidade de manipulação da realidade: o fotógrafo consciente do momento e condições do registro, e de seu impacto como produto devido às características que eram atribuídas à fotografia (fidelidade, precisão, objetividade), pôde controlar os receptores da imagem.
Quando esses dois papéis já complexos – de sujeito e objeto da foto – se condensam num só indivíduo, surgem tantas questões que poderíamos pensar em uns quantos #Diálogos pra trazê-las todas à tona. Mas vou dar um salto enorme, pular vários capítulos – com um pouquinho de pena, confesso. Nem vou me aprofundar nas maneiras tão distintas que fotógrafos artistas usaram para tirar o máximo dessa ferramenta. Já seja como Cindy Sherman, levando a encenação ao extremo, sem deixar que, mesmo depois de vê-la tantas vezes, a víssemos de verdade; ou Nan Goldin, que faz a gente até duvidar que possa existir alguma mediação, de tão “dentro” das suas fotos que nos coloca. Ou mesmo Joe Spence, que usou o autorretrato como maneira de reapropriar-se do próprio corpo, em situação extrema. Nem de Francesca Woodman, que num papo descontraído de mesa de bar, poderíamos até tratar como uma espécie de precursora da febre adolescente pela autorretratação.
Em vez disso, queria falar mais sobre o fato de que, se em outros tempos essa prática de virar a objetiva pra si mesmo e incluir-se no quadro fotográfico era restrita a artistas e fotógrafos experimentais, hoje é algo que faz parte da maneira como 99,9% dos usuários utilizam suas câmeras. As razões pra esse crescimento na produção de autorretratos com a fotografia digital podem ser muitas: custo baixo, onipresença das câmeras, velocidade e facilidade de produção.
Porém, mais que a possibilidade tecnológica de fazê-lo, o que guia a massiva produção de autorretratos digitais é uma grande demanda por imagens de nós mesmos. É o nosso avatar que nos representa no contexto social contemporâneo, extremamente ligado às relações estabelecidas no ambiente virtual. É nesse contexto web 2.0 que o sujeito contemporâneo constrói sua personalidade. É através da aprovação alheia (de ser “curtido”, “comentado”, “favoritado”) que interagimos e nos relacionamos.
O trabalho Andros Hertz, da artista brasileira Helga Stein é constituído por uma série de autorretratos digitalmente modificados, alguns de maneira mais sutil, outros mais incisivos. Em cada nova foto, conserva-se algo do que seria a “verdadeira” e “real” identidade da artista, porém que está digitalmente manipulada, criando superficialmente identidades diferentes, sendo percebido como um novo sujeito. Em entrevista, Stein afirma que “O narcisismo e também o exibicionismo são traços desse processo de construção de representações de nós mesmos em ambientes digitais. Ironizo o consumo passivo de imagens e ideais de beleza através de pessoas que não existem. Ideais de beleza que, em sua maioria, são irreais e inatingíveis, mas que, mesmo assim, são fortes o suficiente para dominar nosso desejo.(…) Existe um esforço para ‘aparecer bem na foto’. E os autorretratos são os mais emblemáticos: gente se desdobrando para conseguir bons ângulos e poses criativas. ‘Você provavelmente será o seu melhor fotógrafo’, costumo dizer.”
A mise-en-scène que envolve a produção dos autorretratos digitais foi abordada também pero artista francês Mathieu Grac, no trabalho Boys and girlz du net (2010), que recria o ambiente do quarto onde seriam produzidas estas imagens, numa tentativa de recontextualizar esta prática cotidiana dos adolescentes. Os retratados aparecem no momento em que estão produzindo seus autorretratos, segundo os padrões mais recorrentes de fotos de perfis de redes sociais. Ele questiona de que forma pessoas cujas individualidades são diferentes decidem colocar-se diante da câmera sempre da mesma maneira, em atitudes forçadas e absorvidas pelo que seria uma nova espécie de rito da adolescência: fotografar-se.
O aparelho da indústria fotográfica (usando um termo de Flusser) vai aprendendo pela conduta de nós, usuários, como se programar para “atender” melhor nossas “necessidades”. Daí vêm todas as ferramentas presentes nas câmeras compactas relacionadas a fotografar-se: desde o modo de cena “autorretrato” até as telas na parte posterior da câmera, que permitem que a visualização do quadro seja simultânea ao registro.
No vídeo, intitulado “Samsung presents: a guide to taking pictures… of yourself”, aparecem personagens de contos infantis, histórias de terror ou mitos, como Frankenstein, Medusa, Drácula, zumbis. Cada um desses personagens tem a intenção de tirar um autorretrato, que se percebe claramente terá como fim o uso em redes sociais virtuais (visualmente, uma referência ao Myspace e ao Facebook). Com “dicas” como: “High Angle: look cute”; “Low Angle: look street”; “Suggest nudity”; “Show good bits, hide bad bits”, cada um desses personagens, apesar de sua aparência repugnante ou desagradável, consegue tirar um autorretrato onde nenhum de seus “defeitos” aparece. O sucesso no resultado está diretamente ligado ao fato de não ser necessário nem mesmo arriscar várias vezes – condição possibilitada pela fotografia digital – mas por poder ver a imagem – futura fotografia – antes mesmo que o botão seja disparado.
Não há mais porque errar, já que se pode no primeiro clique eliminar a já não suportável frustração de tirar um autorretrato que não agrade ao sujeito/objeto. A pré-visualização constitui um marco, a demanda por produtividade não precisa mais lidar com o desperdício de tempo com imagens “imperfeitas”.
* Fotógrafa e mestranda em comunicação na UFF, onde pesquisa autorretrato.
massa manuuu!!
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