Há alguns meses, eu escrevi um diálogo manifestando a minha crença em uma produção noticiosa mais diversificada por meio da fotografia – em especial no fotojornalismo editado pelas empresas de comunicação do país que ainda nos entrega, diariamente, pautas bastante semelhantes, mesmo estando em contextos completamente diferentes. Então, na semana passada, João Valadares publicou em seu twitter a frase “Um viva aos “jornalistas” sem diploma que fotografaram toda ação e postaram tudo no jornal mais forte do Brasil: as redes sociais”, iniciando entre nós uma discussão sobre a necessidade de trabalhar este assunto de forma mais focada neste espaço.
Quando eu li a frase de João Valadares foi impossível não lembrar das intensas discussões sobre fotografia e democratização da comunicação que sempre acompanharam a minha rotina, desde que eu era adolescente e comecei a freqüentar as passeatas estudantis. Eu lembro que, naquela época, as pessoas elaboravam cartazes com mensagens de protesto e argumentações com o intuito de serem fotografadas pelos profissionais que trabalhavam na imprensa.
Como existia a crença de que a fotografia não podia ser editada, enquanto o vídeo sofria modificações na ilha de edição, as pessoas faziam um esforço para serem fotografadas durante as passeatas com o intuito de agregarem idéias às reportagens, mesmo que fossem implícitas no discurso da imagem. Era uma época, também, em que os veículos pareciam realmente concorrer. Quando um repórter fotográfico queria muito abordar um assunto e não encontrava meios de publicar imagens onde trabalhava, ele vazava a pauta para o concorrente com o intuito de forçar o tema a aparecer e assim debater o que desejava.
Até mesmo veículos que não trabalhavam com hard news eram influenciados por grandes movimentações públicas. Recordo que durante as manifestações pelo Fora Collor, em 1992, a revista Capricho – que até então discutia política e fazia campanhas bacanas junto com todos os temas associados ao universo feminino – trocou a capa de uma modelo pela foto de uma menina com o rosto pintado durante uma passeata realizada no sudeste. A repercussão foi imediata e a adolescente, que nem imaginava tornar-se destaque de revista, virou involuntariamente símbolo da luta por mudanças no Brasil – em uma situação semelhante à da garota estadunidense fotografada por Ted Soqui cuja face virou ícone na capa da Time.
Estamos falando de um tempo, também, em que não havia internet para os usuários comuns, como eu e vocês, e que as publicações independentes circulavam por meios impressos ou em algumas rádios e programas de televisão elaborados de maneira alternativa. Estas publicações, porém, nem sempre eram bem recebidas pelo grande público que, até bem pouco tempo, ainda acreditava que toda a verdade era publicada apenas pela imprensa (podemos considerar que existem diversos locais em que essa crença ainda é válida, mas caminhamos bastante neste debate).
Um exemplo recente desta fase de transição ocorreu em 2005, quando uma série de protestos estudantis contra o aumento das passagens de ônibus tomaram Recife e outras cidades do país. Eu ainda estudava jornalismo e estava com alguns colegas cobrindo as passeatas de maneira independente. Em um dos últimos e mais conflituosos protestos daquele ano, quatro de nós fomos pegos, quando estávamos voltando para casa, porque eu fui defender um colega que estava sendo arrastado.
Depois de jogar as câmeras pela janela da viatura, nas mãos dos colegas que tentavam evitar que as fotos fossem confiscadas pelos oficiais, sofremos algumas horas na delegacia até podermos ir para casa. O dia seguinte amanheceu com a foto de um dos meus amigos estampada nos jornais da cidade – em dois deles a legenda informava que o manifestante estava munido de pedras que seriam atiradas nos ônibus. O que ele carregava nas mãos, na verdade, era a minha câmera analógica compacta da Canon, que agarrou na hora em que levou a gravatada do policial.
Naquele momento, entendemos um dos lados negativos da possibilidade de interpretação dos discursos implícitos nas imagens e os dias que se seguiram foram de tentativa de desmentir a versão dos policiais e as legendas publicadas na imprensa. Não havia twitter ou facebook para publicar relatos e fotografias mais próximas do que ocorreu. Tentávamos via e-mail, apelando para a boa vontade dos amigos e dos ciclos próximos, mas algumas pessoas, com medo de verem seus nomes associados aos protestos, recebiam as mensagens e não repassavam.
O crédito na versão da imprensa ainda pesava. Vendo outras opiniões serem postas em dúvida pela população e ouvindo a reclamação de alguns repórteres fotográficos – que tiveram suas imagens publicadas em contextos completamente diferente dos que foram gerados – um jornalista pegou o relato que eu escrevi e enviou para um portal da Espanha e outro aqui na América Latina. Os textos foram ao ar na mesma época em que mais problemas vieram à tona e, assim, outros pontos de vista foram levados em consideração.
Pensar que isso ocorreu em 2005, tão próximo de nós, parece surreal, mas a mudança que tivemos nos últimos sete anos foi muito intensa. Por isso, não é estranho ver João Valadares chamar as redes sociais de “o jornal mais forte do Brasil”. Guardadas as devidas proporções e nuances que são da própria discussão do que significa fazer jornalismo*, a possibilidade de acessar, dialogar e repercutir informações nas redes, como tem ocorrido nestes últimos anos, nos fazem pensar seriamente sobre a força da produção informativa descentralizada e no seu papel de repensar as versões que nem sempre consideram a perspectiva de quem está sendo afetado pelas notícias.
Então, conversei com Hugo de Lima, que acabou se especializando sobre o assunto e questionei como ele percebia esta transformação e porquê as fotografias e relatos publicados agora contam com credibilidade mais acentuada. Ele me respondeu dizendo que:
“o que está diferente hoje é que a mídia independente está muito maior, rápida e pulverizada – dentro do twitter, do youtube, do instagr.am, do facebook – feita por dezenas de pessoas e canais. Talvez nem se chame mais mídia independente. Podemos falar de uma comunicação coletiva transmídia – de modo que ela se molda e se utiliza de muitos meios, sendo extremamente eficiente e social”. (…) Antes das redes sociais existem os problemas sociais – há todas as relações de poder entre parcelas da sociedade. Se não existissem essas redes sociais virtuais como meios de comunicação, com certeza haveria outras formas para os anseios dessas relações.
As redes sociais, como espaço público, sempre estiveram presentes. Mas pela primeira vez possuímos essa construção sendo feita em plataformas que exploram mais potencialidades – inclusive com possibilidades visuais nunca antes experimentadas. Pela primeira vez, bilhões de fotos são enviadas periodicamente para a internet e compartilhadas com muita velocidade. Essas potencialidades batem de frente com a audiência das mídias centrais não somente porque se mudou o núcleo do furo para essa nova realidade pulverizada, mas, principalmente, porque acompanhado do surgimento dessas redes há uma mudança na construção do comportamento sendo pautado justamente por elas.
(…) As pessoas sabem como essa informação está sendo construída – elas agora também participam desta construção nas redes sociais em que estão inseridas. As pessoas estão olhando mais criticamente para o que é exposto pela TV ou pelo jornal. Antes, ou ao mesmo tempo, elas tiveram acesso à igual informação através de uma outra fonte, de um outra versão. Há a possibilidade de julgar o que parece mais crível.”
E foi por meio deste processo que tivemos acesso a coberturas fotográficas que mostravam aspectos pouco divulgados das experiências de Pinheirinho, da ocupação da USP, dos protestos em Belo Monte e das recentes movimentações contra o aumento das passagens de ônibus em Vitória, Belo Horizonte e Recife. Em todas elas, várias informações divulgadas por assessorias governamentais e por parte da imprensa precisaram ser revistas porque, em poucos minutos, pontos de vistas diferenciados cruzavam as redes em fotografias que questionavam as interpretações apresentadas.
E uma vez eleitas algumas fontes como confiáveis, as pessoas passaram a seguir os instagr.ams, flickrs, facebooks e twitters com o intuito de acompanhar essas coberturas que traziam o que podia estar sendo filtrado em veículos de caráter mais empresarial. A força desses relatos visuais foi tão significativa que até uma matéria publicada no jornal inglês The Guardian alertava para a tentativa de bloqueio de celulares, durante as ações em Pinheirinho, com o intuito de evitar que perspectivas menos amenas da desocupação chegassem ao público via redes sociais.
Em Recife ocorreu outro caso interessante. Depois de uma série de protestos na capital, o governador afirmou que a polícia havia agido dentro das normas esperadas. O depoimento chegou às redes sociais em meio à divulgação de uma sequência de fotografias feitas por participantes do protesto, que mostra a aprendiz de parteira Juliana sendo arrastada pelo coronel responsável pela operação. A imagens varreram o facebook e o twitter em minutos e causaram uma enorme repercussão na cidade, ampliando o número de pessoas que se dispuseram a participar das passeatas seguintes e contribuir com novas narrativas.
Uma dessas pessoas foi Renata Pires que, além de estar iniciando na fotografia, não tem vínculos com a área de comunicação. Não nos conhecemos pessoalmente e, em conversa pelo Facebook, ela respondeu algumas perguntas que eu fiz. Selecionei alguns trechos para publicar neste nosso debate:
“Acompanhei o movimento pela internet, principalmente a guinada que deu ao serem publicadas as fotos das brutalidades da polícia. Assisti em cerca de 20 minutos mais de 800 pessoas compartilharem uma mesma imagem (a da menina Juliana levando uma gravata do policial), e isso é realmente impressionante.” (…) Busquei, no decorrer do protesto, registrar o que me emocionava, o que era tocante e o que se destacava para mim. Foi uma cobertura bastante pessoal, e eu achava (e depois descobri que não é bem assim) que o material produzido serviria primeiramente a mim, depois a quem se emocionou comigo e depois a quem poderia se emocionar junto. (…)
Procurei divulgar no principal canal de extensão do movimento: o facebook. As pessoas voltam para casa e continuam o que estavam a fazer. Os gritos, compartilhamento de informações, fotos, discussões, indignação. Ainda penso que o facebook poderia ser muito melhor aproveitado, poderia incitar discussões mais concretas. Mas já é um contorno incrível do que se publica nos jornais (…) Rapidamente os amigos comentavam as fotos, elogiavam e compartilhavam aquele material, se apropriando dele, sendo representado por ele. Escrevo isso agora para você e fico arrepiada. É incrível o poder da informação, como a imagem não é nossa, como ela pertence a quem a vê. Uma vez publicado, o material viaja, perde as rédeas. E eu fiz para isso mesmo, para servir.”
A visão de Renata do relato pessoal que se transforma em algo coletivo – que pertence também a quem vê e se sente representado por aquela imagem – é uma das possibilidades mais interessantes dessa circulação de narrativas, que o atual contexto social, tecnológico e político nos tem apresentado. Antes de escrever este diálogo, eu me sentia meio impotente por não estar em Recife acompanhando tudo de perto de novo, mas ao entrar em contato com essas narrativas percebi que o papel estava sendo cumprido por outras pessoas e eu me sentia representada pelo que achava mais crível, como disse Hugo. O que está faltando, talvez, seja tornar as redes sociais um espaço de discussão mais concreta, como deseja Renata. Se o debate deste texto contribuir com o objetivo é mais um caminho…
OBS1: Durante um bom tempo, quando um veículo de comunicação sentia que a integridade física de seus colaboradores e fotógrafos estavam ameaçadas, eles publicavam as imagens sem crédito. Não sabemos se esta foi a intenção do site que hospedou as fotos ou se é falta de informação sobre a necessidade de creditar as fotografias produzidas. Se o autor das fotos desejar ser creditado, uma vez que é direito seu, por favor entre em contato.
* Eis que eu entro no Facebook e o jornalista Haymone Neto havia publicado este trecho de Patrick Champagne em sua linha do tempo: “A história do jornalismo é em grande parte a história de uma autonomia impossível – ou, para colocar de maneira menos pessimista, a interminável história de uma autonomia que deve ser sempre reconquistada porque está sempre ameaçada”. Acho que é mais um passo para a reflexão…
Informação importante: a fotógrafa Maíra Erlich nos fez a gentileza de informar que as fotos foram feitas por Andréa do Rego Barros. Como a observação acima foi feita no momento em que publicamos o post e as fotos no site Recife Resiste estavam sem o crédito, vamos manter o texto como foi originalmente redigido, mas colocamos o crédito nas imagens.
Oi Ana, muito boa e atual sua reflexão.
Acho incrível a força das redes sociais, de como ficou impossível a chamada “grande mídia” ignorar um assunto que, por exemplo, chegou ao TT do dia. Especialmente, quando se é um bebê na utilização das redes sociais e na busca de outras formas de compartilhamento de informação, como é o meu caso, é impressionante perceber/participar dessa comunicação viral. Nestes casos citados por você, como a ocupação do campus da USP pela PM, a reintegração de Pinheirinho, e os protestos em Recife, o compartilhamento de informações através de ferramentas da internet, distribuiu novos olhares sobre os acontecimentos. As fotos, os textos, os vídeos, são produzidos por várias pessoas, com diversas opiniões e pontos de vista, alcançando, cada uma, um número X da população. Sobre esta forma de compartilhamento da informação, é sem dúvida poderosa, mais inteligente e ampla. Sobre o ativismo nas redes, ainda me pergunto sobre sua finalidade, ou melhor, sobre seu comprometimento com aquilo que se encaminha, compartilha, curte… Me questiono sobre até onde, e para onde, vão as proposições, denúncias, ideias, das pessoas que se unem, virtualmente, por determinadas causas. Ser e manifestar-se politicamente na rede é válido, traz, por vezes, ótimos resultados e poucos riscos. Mas, até onde vai a disposição em avançar nas discussões? Até a próxima novidade? O esquecimento é um aliado e tanto, mas é com a mesma potência um grande fomentador de injustiças. Fico pensando sobre a real importância que se dá as informações, aos fatos, as pessoas e aos princípios para além do mundo virtual. Alguns acham que um envolvimento virtual é o suficiente, que sua parte foi feita, e talvez tenham razão. A concretização de algo que existe virtualmente, a meu ver, é uma ampliação do sentido das coisas (e o inverso também considero verdadeiro), é estar vivendo com coerência (algumas pessoas transformaram esta palavra “coerência” em sinônimo de caretice ou imutabilidade, não é neste sentido que falo). Penso se todo este ativismo, via rede sociais, não se transformou numa justificativa para não fazermos aquilo que é necessário para nossas vidas longe das poltronas e dos computadores.
Bom, ando refletindo sobre isso. Desculpa se corri um pouco do assunto do seu texto.
Beijos,
Vivi.
A população é sempre conduzida a pensar de forma enganosa..
já que a mídia distorce a verdade e transforma conceitos ….ao ponto que a ignorância popular não perceba a fraude.
essas fotos não creditadas são de deinha (Andréa Rego Barros), não? 🙂