Quando Nada Está Acontecendo é um dos meus blogs favoritos. Noemi Jaffe escreve sobre a vida de maneira tão sutil, delicada e ao mesmo tempo tão contundente que nunca fico imune às suas palavras.
E foi assim quando li o texto Ciúmes:
“Numa exposição de fotografias lindas, senti de repente muita tristeza: aquelas imagens eram tão vivas, vibrantes, verdadeiras, mas todos aqueles que sorriam, cantavam, olhavam, agora estavam mortos. Onde estavam aquelas pessoas? Onde aqueles lugares, aquelas sombras, onde a voz? Soube por um instante que também eu, a olhar aquelas fotografias, era como uma imagem não fixada do nada que também eu algum dia seria, algum dia serei. E assim também com quem estava ao meu lado, o espaço da exposição, tudo. Achei injustas e ladras as fotos, por nos iludirem, trazendo para o agora o que já não é e por roubarem ao tempo um momento que ele levaria e às pessoas um instante que era só delas. Lá estava eu contemplando uma beleza que talvez nem mesmo os atores da foto chegaram a conhecer, num tempo e num lugar que eles jamais imaginariam. Não quis me tornar uma imagem para o futuro; tive ciúmes de mim.”
Posso dizer que essas palavras colocaram em xeque uma série de verdades que carreguei comigo durantes anos. Senti as minhas certezas desmoronarem, como um castelinho de areia. De repente me peguei pensando que as fotografias na verdade nos iludem, nos fazem acreditar no para sempre. E, na verdade, as fotografias, de certa forma, gritam a todo instante que o registrado não existe mais. Por mais que tenhamos a sensação de que aquele instante esta guardado para sempre, ele passou. A memoria não deixa de ser uma ilusão, uma mentira que contamos pra nós mesmo para nos sentirmos consolados por não termos mais esses momentos.
O fotógrafo Fábio Messias, durante uma conversa sobre todas essas pertubações (boas) que Noemi despertou em mim, soltou uma reflexão bem pertinente: “se não tivesse uma estrela, um sol, para iluminar tudo, as coisas (pelo menos as físicas) não existiriam. As coisas só existem por reflexão. A fotografia também. Então, talvez Noemi tenha razão de que as coisas na fotografia não são mais, mas só pensando na fotografia ainda não vista, porque sempre que vista, uma fotografia traz tudo aquilo de volta, sejam pessoas ou lugares. Então tudo que está ali é, e sempre será“. Fiquei um tempão remoendo essa ideia de Fábio e, paralelamente, pensando em Bresson quando diz que “(…) as coisas das quais nos ocupamos, na fotografia, estão em constante desaparecimento, e, uma vez desaparecidas, não dispomos de qualquer recurso capaz de fazê-las retornar. Não podemos revelar e copiar uma lembrança”. Agora está dando para entender quando disse que não consigo ficar imune aos textos de Noemi, não é?
Resolvi escrever esse diálogo, não para falar sobre fotografia e memória em si. Ou colocar em questão o poder que a fotografia tem de reacender nossas emoções e de eternizar sensações. Escrevo na verdade sobre a necessidade que temos em aceitar essa “mentira”. Seria muito duro viver sem ela.
É difícil admitir que já não temos tantas coisas importantes em nossas vidas. É difícil seguir sem a doce e necessária ilusão de que o fotografado é eterno. Mas “os personagens retratados envelhecem e morrem, os cenários se modificam, se transfiguram e também desaparecem“, Boris Kossoy afirma que a fotografia é a nossa garantia de uma lembrança eterna. Cada um de nós repetimos isso para si mesmo todos os dias e, assim, nos fortalecemos em presenças cheias de ausências. Somos feitos de lacunas e preenchemos esses vazios com memórias, memórias vivas de tempos e sentimentos que ficaram lá atrás. Sim, é um tanto quanto melancólico pensar sob essa ótica, Noemi de certa forma, encheu minhas memórias de melancolia. Mas não deixa de ser bonito perceber como a fotografia torna a nossa vida mais leve.
Eugênio Bucci, no texto Meu pai, meus irmãos e o tempo, do livro 8X Fotografia, escreve sobre uma fotografia do seu álbum de família e, negando, acaba afirmando o quanto as ausências presentes nas fotografias são fortes em nossas vidas:
“Dizem que, se a fotografia ainda tem algum valor, esse valor é documental, o de ser o registro de um fragmento do tempo. Já não partilho dessa crença, pelo menos não desse modo. Creio que ela captura não o tempo, mas uma curva no espaço ou uma curva no rio. Dizem que a fotografia nos leva a viajar no tempo. Também não é o que sinto, quer dizer, não quando está em questão essa foto particular. Não sinto que o tempo retorne quando a vejo ou quando me lembro dela, pois não sinto que aquele tempo já tenha ido embora. Sinto, isto sim, que aquela cena ainda está lá, naquele vazio temporal em que a gente espera o peixe morder, e que o tempo não se foi, apenas o espaço se curvou e fez que a água passasse.”
Talvez o ponto não seja a eternidade que a fotografia dá aos momentos e sim a verdade que ela carrega. Ao nos depararmos com uma foto de um antigo namorado, por exemplo, por mais que o amor não exista no hoje, o amor existiu. E aquela imagem nos trás uma verdade, de algo que não é mais, mas que foi. Não sei se concordo com Noemi no momento em que ela diz que isso é injusto. Penso que roubar esse tempo, transferí-lo para o agora é inerente ao ser humano. As lembranças de uma fotografia não trazem de volta o que passou, mas nos enchem de certezas. Tudo volta, tudo de uma alguma forma se rematerializa, mas sob uma nova ótica, carregada dos sentimentos do hoje. Talvez nesse ponto concorde com Noemi, o que vemos na fotografia não é mais o que fomos e sim o que somos.