7Aniversário – A fotografia do que eu não vivi

aniversário de 1 ano. foto de arquivo

É preciso certo esforço para dizer aqui a contradição que sinto quando vejo as fotografias da minha infância. Acho que cabem num álbum só todas as fotos da minha meninice – aquele momento antes dos cinco anos em que os pais não cansam de ver e rever seus bebês. As imagens que tenho, entre dez a vinte apenas, são todas repletas de ruídos e falhas – as pessoas estão desfocadas; o enquadramento deixa de fora aspectos que seriam bem essenciais ao retrato; e há quase sempre uma sombra de um dedo pairando sobre a minha cabeça. Não sei se tem muito a ver (só a terapia há de explicar) mas cheias de ruídos e falhas ficaram também as lembranças desses primeiros contatos com a fotografia, momentos que não consigo reviver. E talvez seja por culpa desses acidentes que a minha relação com a imagem fotográfica seja tão ruidosa.

primeiro dia em casa e, no entanto, quase tiram a criança do quadro – foto de arquivo

Falando assim parece até frieza. Mas é que tenho pouquíssimas lembranças de ser fotografada nessa época e, por contradição, minhas memórias mais fortes são geralmente de momentos que não guardei com câmera nenhuma – lembro com muita clareza da primeira surpresa de uva que comi, do cheiro da lancheira do maternal (juro), da porta da sala dos meninos grandes no primeiro colégio da minha vida, lembro do carrinho de pedalar destroçado de tantos acidentes de percurso, da bacia de roupa usada como piscina no banho no quintal, dos detalhes das coisas, mas, pelas imagens, não me recordo de nada. Não lembro as circunstâncias em que foram tiradas, nada. As fotos são hoje testemunhas de momentos que pra mim nunca existiram.

foto irreconhecível de arquivo

Por certo tempo a fotografia foi admitida como prova testemunhal mais importante de que algo aconteceu – valia mais do que o depoimento das pessoas (sempre tão desacreditadas). Não vou polemizar muito sobre fotografia e realidade mas quando olho uma foto da minha infância me pego pensando: como sou eu se eu mesma não me reconheço? Como sou eu se não me lembro? Mas me acostumo sem angústia por saber que é inútil negar aquilo que a fotografia do seu álbum de família diz.

Porque, por mais que não me reconheça e por mais paradoxal que isso seja, essas fotografias são essenciais para me permitir pensar a minha identidade. Num texto para o livro 8XFotografia, Eugênio Bucci disse uma coisa que me marca muito e que explica muita coisa: a fotografia consegue de fato nos revelar nossa própria memória. “A fotografia [da canoa no córrego do Marmelada] não me leva a viajar no tempo; ela me leva, isto sim, a me relacionar com aquele instante que não se foi, pois aqui está, a ponto de eu poder modificá-lo e ser modificado por ele” (p.74).

Não posso reviver essa imagem de um momento do qual não me recordo, mas posso me relacionar comigo mesma de forma diferente, sabendo que aquela criança sou eu mesma e que já vivi aquilo. Posso inclusive mudar aquele momento, refazendo uma memória na minha cabeça, a ponto de eu mesma acreditar na memória inventada – as fotografias nos ajudam nisso. Hoje, mesmo sem lembrar, sei que já tive um bolo do sítio do pica-pau amarelo no meu primeiro aniversário. E isso talvez explique porque sempre fui tão apaixonada pelas histórias de lobato, emília, narizinho. talvez não.

polaroid – foto de arquivo

Como diz Bucci, o nosso tempo histórico é o gerúndio – e esse é talvez o único tempo que conseguimos efetivamente experimentar, nosso tempo mais presente. E enquanto vou escrevendo, pensando, lembrando, amando, sou essa pessoa que hoje estuda, pesquisa, trabalha com fotografia, mas também sou aquela que ama Reinações de Narizinho e cujas fotografias de infância estão quase todas perdidas e mal-batidas.

E é como se as fotografias nos acendessem uma faiscazinha no peito de algo que podemos nem saber o que é mas que nos conforta. Às vezes, vou a uma fotografia como quem procura uma coisa que não sabe o que é, tentando me reconhecer, reconhecer um sentimento ou uma pessoa. Por nervosismo mesmo ou por qualquer desespero, tem dias em que me volto a uma fotografia e pergunto: por que eu sinto isso? Por que eu amo essa pessoa mesmo?

Uma fotografia responde.

Sobre joanafpires

recife, 27, 60, 170, 35, 40
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4 respostas para 7Aniversário – A fotografia do que eu não vivi

  1. Alba Almeida disse:

    Os seus comentários, expressam um todo.
    Beijos…

  2. Mili disse:

    Já meu pai fotografava a mim e a meu irmão à exaustão. Também tenho pouquíssimas lembranças da primeira infância, mas as fotos me ajudaram a criar, durante o percurso da vida, uma relação com momentos e pessoas que me são muitos caros. Não importa se eu me lembro. Boa parte das vezes confundo o que eu vivi e o que me contaram. O que eu me lembro e o que eu criei de lembrança através das fotos. Revirar os álbuns é uma sensação deliciosa de “auto-arqueologia” 🙂

  3. joanafpires disse:

    Eu sempre olho com olhos famintos os álbuns de quem foi fotografado à exaustão, mili 🙂 e a parte mais engraçada é que eu tenho muitas lembranças, muitas mesmo, mas nenhuma vem das fotos. e aí fico me perguntando se será que eu gravei essas memórias pra equilibrar a falta de fotos, ou será que as memórias são todas inventadas pra suprir essa falta de álbum hehehhee nunca vou saber. É uma auto-arqueologia sem provas 🙂
    bêjo em tu,

    bêjo em alba também

  4. Maíra disse:

    eu sinto falta de mais fotos da minha infância, mas até que tenho uma boa coleção. e me fascina olhar para aquela garotinha, de olhar tão sério, que parece ter perdido o sabor da infância muito cedo. eu pergunto pra ela de onde surge aquele olhar. e minhas lembranças chegam muito misturadas, cheias de borrões – ou ruídos – como você diz. tem partes que não sei dizer se foram sonhos ou realidade. tem sonhos que me lembro com mais nitidez que fatos vividos… me lembro de muito pouco, então me deixo perder nas imagens… pra ver se de repente minha versão menina me sussurra alguma coisa.

    um prazer ler seu texto…

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