“Lembrar é fácil para quem tem memória. Esquecer é difícil para quem tem coração.”
William Shakespeare
A minha relação inicial com a fotografia é marcada pelo esquecimento. Não sei se consigo explicar perfeitamente o que se passa comigo, mas prometo tentar.
As minhas lembranças são, na grande maioria, muito difusas, há partes completamente borradas ou apagadas mesmo, como se alguém tivesse entrado na minha cabeça e, por capricho, tivesse escolhido diversos fatos e momentos importantes e apagado todos eles com uma borracha. É algo muito, muito estranho, e que me deixa com um vazio imenso. Acontece com a memória distante, de infância, e até também com uma memória mais recente. Eu me esqueço de quase tudo.
Não consigo recordar coisas que os outros comentam com clareza e minúcia de detalhes enquanto sorriem e se esbaldam em suas memórias, tento escutá-las e captá-las para mim, tento guardá-las na esperança de que se tornem minhas e de que algum dia eu consiga, também, me lembrar.
Então, grande parte da minha memória vem através da fotografia, se hoje me lembro da casa da minha avó Detinha ou da nossa estada em Petropólis é porque temos guardadas essas fotografias. Elas constituem as lembranças que eu não tenho, que eu não consigo fixar. Quando vejo essas fotografias tento resgatar algum tipo de memória, mas aí já não sei se essas memórias estavam guardadas na minha cabeça desde o momento em que as vivenciei ou se foram plantadas lá em algum momento em que fui rever as fotos.
Por que se alguém me fala da piscina da casa da minha tia, por exemplo, as imagens que me vêm a mente são aquelas que vi em fotos. Mas, reparem, elas já não são mais iguais as fotografias tiradas, eu acrescentei detalhes e não sei em que medida é um resgate ou uma invenção. Porque tantas e tantas vezes fiquei ali revendo aquelas imagens e forçando minha memória, querendo lembrar…
Meu pai é boliviano e nos meus primeiros 6 anos de vida fizemos algumas viagens para a Bolívia, foram os únicos contatos que tive com a família de meu pai (até 4 anos atrás quando pude, enfim, retornar) e alguns parentes que já faleceram, foram momentos muito marcantes dos quais me lembro muito pouco, muito pouco mesmo, mas fazem parte do meu imaginário e tem uma importância tão grande. Temos poucas fotos que me mostram apenas um milésimo dos relatos que meus pais me contaram. Verdadeiras histórias para mim, literatura e poesia da mais pura e bela.
Minha mãe me contava sobre o ritual do chá das 5 (horas) que era uma tradição familiar onde as mais deliciosas iguarias boliviana eram servidas, eu não consigo me lembrar de nada. Meu pai me conta como eu gostava de andar no Jeep da família ( eu tenho apenas uma foto, e sinto uma alegria imensa de poder ver que era laranja) e ir comer empanadas com ele no mercado (disso não temos fotos, e eu tenho uma imagem mental muito fraca e difusa de mantas ao chão e das Cholas vendendo queijos, e é só!).
As fotografias me contam sobre o que sei que vivi e do que não tenho certeza se vivi ou se criei, se inventei ou se inventaram para mim, porque meus pais sempre tiveram o dom de incrementar suas histórias e hoje eu sei que eram cheias de ficção, magia e imaginação. De qualquer forma, a fotografia ameniza o meu sofrimento, o meu esquecimento natural. Ela me alimenta, me faz sentir parte do mundo, tenho uma dívida imensa e eterna gratidão pelas pessoas que se lembraram de registrar esses momentos. Sem nem saber elas me prestaram um imenso favor e, assim, acalmam um pouco a minha alma.
“… meus pais sempre tiveram o dom de incrementar suas histórias e hoje eu sei que eram cheias de ficção, magia e imaginação.”
Adorei essa parte, bem real mesmo, nunca dá pra ter certeza das verdades e dos exageros hahahaah. Muito bom o texto!!
mãe otimo texto beijos
Maricota, assim te chamava na época daquelas fotografias. A propósito, para atizar esse nosso coração trascendental, te conto que final de samana passado recuperei uma foto minha aos quatro no pantanal, montando meu cavalo branco – codenome ‘prata’ – feito duende ou garrapato. Compor e pintar a aquarela – meu propósito nesse dia – foi uma aventura real … banhada nos alagadiços com sucuris, garças, onças … que a inocência da primeira infância consegiram plasmar em imagens sólidas, porem difíceis e de apreendes. Sentí até o cheiro do lombo de ‘prata’ intumecido pela garoa morna, eterna companhia nas viagens da época, matas adentro e campos afora.
dale que dale,
Pai