Diz-se que o luto, com o seu trabalho progressivo apaga lentamente a dor. Eu não podia nem posso acreditar nisso, porque, para mim, o Tempo elimina a emoção da perda (não o choro) é tudo. Quanto ao resto, tudo ficou imóvel. Porque aquilo que eu perdi não é uma Figura (a Mãe), mas um ser; e não um ser, mas uma qualidade (uma alma): não o indispensável, mas o insubstituível.
Roland Barthes
É difícil falar sobre a morte. Não há como fazer rodeios diante de uma realidade tão crua. Como comunicar a morte de alguém? A morte de um amigo jovem, cheio da energia mais intensa e que costumava mobilizar vida em tantas vidas? Danilo era um moço do teatro e do maracatu, celebrava a vida em todas as suas nuances, vertentes e energias, e se foi rapidamente, quase num susto. Os amigos resolveram, então, fazer uma festa em sua homenagem.
A festa aconteceu no Teatro Oficina, em São Paulo, cheia de tecidos brancos, vinhos, flores, música, dança e uma fonte jorrando a noite inteira. Duas fotografias estavam projetadas nas paredes…
E foi tudo muito bonito e forte. De repente, no meio da festa, me dou conta da potência da fotografia nesse grande ritual: as pessoas falavam com as imagens, corriam em direção às fotos, se jogavam sobre elas e as abraçavam, fazendo com que a fotografia fosse partícipe desse rito funerário, não teatralizado, mas feito no teatro para um amigo bacante.
Era como se os retratos servissem de elo fotográfico, que mantinham a ligação entre os amigos que ficaram e ele, que já havia partido e, de alguma maneira, restaurassem o carinho em meio à dor e ao luto.
Era a memória sendo trazida pelo sorriso estampado na imagem. Era a morte desconstruída e transformada em vida naqueles retratos, ou como de maneira mais formal poderia nos dizer Roland Barthes: era a fotografia trazendo sempre consigo o seu referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no próprio seio do mundo em movimento.
Boris Kossoy nos fala das imagens-relicário, que preservam cristalizadas nossas memórias e de que a fotografia se confunde com esta última. E sinto que foi isso o que vivi nesse rito, uma confusa e bonita mistura de fotografia e memória, uma imagem sendo transformada em relicário em meio a dor, um elo afetivo sendo construído em meio ao rito fúnebre.
Essas imagens-relicários que se construíram durante a festa, pareciam perpetuar o afeto já existente, mas também evidenciavam um confronto entre a imagem da vida, trazida pela foto, e a ausência do amigo morto. Confronto esse quase palpável, evidenciando que a fotografia só interessava as pessoas pelo sentimento, como uma ferida (Roland Barthes, em A Câmera Clara).
Mas como bem pontua Ronaldo Entler, o que Barthes diz só faz sentido para fotografias que mobilizam um “amor extremo”, como diz textualmente. E se isso se confunde com uma teoria é porque as fotografias tocam nossos afetos com frequência.
A para viver o luto é preciso deixar essa ferida cicatrizar.
Eu sou o ponto de referência de toda a fotografia e é nisso que ela me provoca o espanto, ao por-me a questão fundamental: porque razão vivo aqui e agora?
(Roland Barthes)
*Para nossos ancestrais e para o menino Danilo.
essa tua postagem faz o contraponto perfeito com o diálogo #44, escrito por pri. se lá ela chama nossa atenção prum lado mais cínico da fotografia, que com frequência nos envolve com um ambiente ilusório de ausência/presença e pode pode gerar incômodo a partir do momento que o percebemos, aqui você dá um delicado exemplo do porque esse ambiente é necessário. massa, val.
Esse contraponto fotográfico sempre me intriga – talvez por ter medo da morte e talvez também por trabalhar com “ela”, como já dizia Philippe Dubois em “O ato fotográfico”: “A fotografia executa a morte ao querer conservar a vida”. Como seu texto inicia Val é difícil sim falar da morte, mas como não questionar quando nesse caso(em específico) ela credita a fotografia como um meio de acariciar a memória? E creio que seja justamente isso, o “elo”, a fotografia se torna a referência como um “meio de transporte sentimental” entre o que partiu e os que ficaram e isso, leva a fotografia a uma nova realidade que possa condizer com a realidade dos que sentem saudade. Lendo seu texto resolvi comentar, também pelo assunto que me interessa mas por que envolvia um ator, um coletivo, o teatro, a morte e a fotografia e isso me fez lembrar o Teatro da Morte de Tadeuz kantor, que criou uma dramaturgia em cima da morte como uma condição da realidade fotográfica, um “elo” num período de pós-guerra. Então gostei muito de sua colocação, muito sensível e bem delicada como o próprio assunto já pede.
Parabéns pelo texto!
Encerrarei com um soneto(que abre o livro “DaguerreÓtipos”) de Marcus Accioly, um livro de sonetos muito bacana(muito mesmo!) em que fala sobre a morte de personalidades mundiais através de referências fotográficas.
Dentro do teu caixão – câmara escura –
só quero revelar a dor, soneto:
negativo onde o mal se desfigura,
retrato colorido em branco-e-preto.
Sombra da imagem viva que remeto
para – dentro da folha ou placa dura
de prata e cobre em banho de iodeto –
ser lida em tua hermética estrutura.
Quero em catorze filmes dar à luz
ao mal que leva o bem até a cruz,
gritando, de loucura e de tristeza,
da máscara-de-ferro do teu verso
que – afivelada às faces do universo –
revela e esconde o rosto da beleza.