Por João Roberto Ripper*

Escondidinho, de Saulo Nicolai, vencedora do concurso Meu Rio Fotográfico, no qual Ripper participou da comissão de seleção
Vivemos numa sociedade globalizada, inter-dependente, cercada 24 horas com uma carga nunca vista de informação, imagens e dados. “Plataformas” informacionais estão nas onipresentes TVs, nos celulares e na internet. Estamos cercados por imagens on line em uma sociedade complexa, desigual e heterogênea, com uma grande indústria globalizada, de potencialidades incomparáveis, mas que ameaça a sobrevivência do planeta.
Os meios de comunicação representam esta sociedade. Vivemos num mundo cujas tecnologias de informação passaram a ter enorme impacto na formação das opiniões e nas relações sociais entre seres humanos, na construção dos imaginários sociais e individuais. E amplas maiorias ainda são colocadas na condição de meros consumidores dessa produção, desenvolvida por alguns poucos e multiplicada pela força da economia sob controle de outros poucos detentores dos meios de comunicação e econômicos.
Direito à informação, liberdade de expressão, direitos que permitem e até garantem outros direitos, são bens sociais de alta relevância para os seres humanos, mas distribuem-se de modo muito desigual nas sociedades. No Brasil, nossa sociedade entende e aceita, com muita facilidade, as consequências do exercício da liberdade e do direito de expressão e comunicação das empresas de comunicação, em sua imensa capacidade de impressionar e influenciar. Mas, quando se trata do exercício da liberdade e do direito de comunicação por parte de setores populares, pobres, tudo dificulta. Ainda mais quando verificamos a realidade do acesso público a informações. Grupos políticos e econômicos desencadeiam verdadeiras corridas do ouro pela apropriação privada de informações sociais em detrimento do interesse público e dos direitos das coletividades.
Quando a classe média vê moradores de áreas pobres e favelas como “potencialmente criminosos”, muito de sua opinião está formada com olhos e vozes assentados nos jornais, rádios e TVs. Por outro lado, também nas áreas pobres, por meio de tais veículos de comunicação, sobretudo a TV, são formados olhares e valores de auto-consideração. Daí a grande responsabilidade da produção industrial de comunicação, cuja atração para o noticiário “espetáculo” tende a repetir chavões, a banalizar situações, a expor um olhar único redutor das comunidades e seus problemas a uma pauta pré-programada de idéias de fácil digestão.
As desigualdades de acesso a terrenos e créditos de construção, a ausência de políticas sociais democráticas e igualitárias de urbanização não são pautas “populares”, não atraem nem recebem atenção. A violência nas ruas sim. Vende jornal, chama atenção para o noticiário de TV, enquanto estigmatiza e divide as comunidades em cacos bons e ruins. A morte de uma menina na Rocinha, o massacre no Complexo do Alemão em represália a morte de policial, as imagens de policiais rindo enquanto carregam corpos de traficantes de baixo escalão, não apenas banalizam a morte no segmento pobre da sociedade, mas empobrecem nossa cultura social; desrespeitam não apenas os direitos humanos das vítimas expostas, mas desqualificam toda a sociedade.
Quando o Observatório de Favelas, por meio do projeto Imagens do Povo, forma fotógrafos populares e eles documentam realidades nas favelas, a partir de intercâmbios concretos com os moradores estão humanizando a vida social daquelas comunidades e as suas próprias. Eles constroem novos valores sociais como o seu novo olhar sobre aquela realidade, elevam a auto-estima das comunidades e dão formato e concretude ao direito humano de procurar verdades, de documentar realidades a partir da experiência e do olhar dos seus protagonistas, vencendo as fronteiras entre produtores e consumidores de info-comunicação. Tal experiência amplia a cultura social não só dos que passaram pela escola popular de fotógrafos e sua comunidade, mas alarga a cultura de toda a sociedade, expondo a riqueza do exercício dos direitos humanos.
Buscando outros olhares, outros fazeres em termos de info-comunicação, indo atrás de outras verdades, compartilhando informação e experiência com outros seres humanos, tratam da essência do direito humano à comunicação. E enfrentam divergências de opiniões e avaliações por parte de outros seres humanos, pois como escreveu Norberto Bobbio: “dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um (direito) termina e o outro (direito) começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas”.
Assim, também, tem estado em jogo uma disputa de opiniões quando comunidades pobres começam a produzir a própria comunicação, procurando informar-se do que é fundamental para a melhoria de suas vidas e passam a informar os demais, com jornais próprios, rádios comunitárias, fotografia comunitária, sites específicos. Conformam alternativas que vão além do discurso da liberdade de expressão. Buscam construir poder próprio de comunicação, vencendo muitas vezes as divisões, juntando partes de cidades e dos meios de comunicação social. Fazem comunicação que concretiza a igualdade de direitos, fotografando e relatando como iguais entre iguais e, assim, juntam os cacos de um vaso social que é mais bonito quando inteiro.
Devemos pensar como proteger, como disse Bobbio, a comunicação dos segmentos “pobres”, “fracos”, “feios” e “não-oficiais” da sociedade. Disputando meios e espaços com a excessiva exposição do lado “rico”, “forte”, “bonito” e “oficial”. Precisamos considerar que, muitas vezes, se trata de enfrentar forças sociais opostas. Pois, direitos fundamentais à liberdade e à integridade física significaram o banimento da liberdade de escravização de seres humanos e enfrentaram a resistência não só dos donos de escravos mas dos que lucravam com a produção baseada na mão-de-obra escrava. Estamos no século XXI desafiados a construir parâmetros socialmente aceitáveis para que a info-comunicação social, a produção de cultura e conhecimentos coletivos se faça atendendo interesses coletivos, que respeite bens imateriais coletivos e abandone formas arcaicas de produção baseadas na desapropriação info-comunicacional e cultural de outros.
É nesse universo que se encaixa a fotografia humanista e a fotografia compartilhada. Documentar é, sobretudo, reconhecer e conhecer valores, aprender com quem se fotografa. É uma fotografia que cuida e talvez seja o cuidado a palavra chave no nosso mundo. Fotografar fazendo um elo entre o fotografado, o fotógrafo e quem vê a fotografia. Fazer com que quem olhe a imagem queira bem aos fotografados e se some na divulgação e defesa de sua luta. Fotografia compartilhada é quando é expandida além da autoria do fotógrafo e passa a ter parceiros e principalmente a comunhão com o olhar cúmplice do fotografado.
*J. R. Ripper dispensa apresentações porque é um mestre da fotografia nacional. Sua fotografia vive pelos Direitos Humanos e, nessa busca, humaniza a todos nós. Para o 7, Ripper é um professor que nos ensina não apenas a fotografar, mas a ver o mundo. É uma honra tê-lo no nosso blog! Conheça mais o trabalho dele no site Imagens Humanas.
Esse texto de Ripper é maravilhoso e me lembrou esse vídeo no youtube sobre a liberdade de expressão e seus embates com a mídia: http://www.youtube.com/watch?v=q6rYOTeptPs
Acho que o ponto mais importante é reconhecer que essas alternativas não se tratam apenas de uma busca pela liberdade de expressão mas de uma construção embasada de um poder de comunicação que é muito político também. Ter esse discernimento sobre a fotografia humanista é fundamental porque acho que é essa a fotografia que vai realmente trazer resultados positivos pra sociedade. Acho que, para o fotógrafo que quer ter um papel ativo socialmente, a documentação não é mais suficiente, é preciso construir uma alternativa de comunicação que ultrapasse o óbvio.
Pingback: #Diálogo 047 – A fotografia do cuidado |
E agora ?
Me escondo
Me jogo
Me mostro
Me perco
Nos ares das encostas do morro
Nos andares de cima dos olhares de baixo
Nos silêncios e barulhos abaixo e ao lado
Nos porões e vidraças dessa visão de castas
And now
Fotografo
Publico
Cobro
Pago caro
E já
Visceral emplastro
Aceito
O olhar
E olho .
Pingback: A fotografia do cuidado | 7 Fotografia