Há alguns dias, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda participou de uma audiência no Congresso Nacional e entrou para os trendingtopics brasileiros do twitter tanto por suas declarações polêmicas quanto por demonstrar um desconhecimento de doer sobre a relação da cultura com as tecnologias digitais.
Durante o seu depoimento, a ministra reafirmou a indisposição dessa gestão do MinC em repensar políticas culturais que contemplem a linguagem digital e a rede mundial de computadores e fez os olhinhos dos ativistas digitais brilharem nostálgicos lembrando de Juca Ferreira. Aliás, Ana foi bem na contramão disso, jogando à Internet toda a responsabilidade sobre a pirataria e, pasmem, o risco de morte da nossa cultura. :
“Hoje em dia a pirataria é feita assim. É copiado através da internet, e isso se multiplica, está sendo distribuído e vendido pela internet. Daí a preocupação do MinC com essas questões, que estão facilitando a pirataria”, disse Ana nesse trecho do discurso destacado pelo Estadão. E mais: “o MinC tem que ter uma preocupação com a preservação e com a condição de se produzir culturalmente sem que isso seja copiado como se não tivesse trabalho investido. Isso vai matar a produção cultural brasileira se não tomarmos cuidado”. E pronto, estava aberta a temporada de tuites engraçadinhos ironizando a declaração infeliz da ministra.
Mas por que a declaração de que a internet é potencialmente uma assassina da cultura brasileira é infeliz e o que isso tem a ver com a fotografia?
A resposta da primeira pergunta é mais óbvia: Ana parece que não fez o dever de casa e não buscou sequer se informar sobre o funcionamento da comunicação em rede. Virou motivo de chacota justamente porque a Internet, pelos mesmos princípios que ela condena, permite a expressão do pensamento de todo e qualquer usuário que, através de alguns canais como as redes sociais, passa a ter poder de comunicação real, a tomar pra si a iniciativa de contestar as informações e de reinformar.
O que Ana não entende é que se durante boa parte do século passado, recebíamos informações através de mídias de massa como o rádio e a televisão; com a Internet, vivemos os impactos de uma nova dinâmica, que permite não apenas o recebimento de informação, mas também a produção e, principalmente, a divulgação de conteúdo.
É cada vez maior o número de plataformas de divulgação que dependem diretamente da ação de um indivíduo em rede, como o youtube, o twitter e o facebook. É como se cada usuário de internet fosse um canal, um novo mediador disposto a continuamente alimentar as bolhas de dados da rede mundial.
Numa palestra na mesa “Música, a fronteira do mundo – criatividade, tecnologia e políticas públicas”, o criador do Creative Commons, Lawrence Lessig destacou que a Internet incentiva uma “diferente ecologia da criatividade” (<3), que permite não apenas consumo eficiente, mas uma produção amadora também eficiente. “Assim, milhares de usuários de microcomputadores puderam se conectar entre si por um custo módico e, entre eles, numerosas vocações artísticas puderam se manifestar”, como disse Couchot num pensamento que completa lindamente o que defende Lessig.
A grande polêmica é que essa nova ecologia da criatividade ameaça a hegemonia de indústrias poderosas, como a fonográfica, que Ana tanto defende. Porque desde que a Internet e o computador começaram a se tornar parte do cotidiano da gente, mais ou menos na década de 1990, o que chamamos de cibercultura é caracterizada por uma série de aspectos que vão de encontro direto à dinâmica social e econômica que as grandes gravadoras defendem. Esses aspectos são a conexão em rede, a descentralidade de uma fonte de emissão (ou seja, todo mundo tem o direito de comunicar), a rede como um espaço neutro (que não assume pra si o interesse de nenhum grupo específico) e universal (ao qual todos temos direito de acesso), a reconfiguração cultural e a recombinação de conteúdos (ou o tão estigmatizado remix), etc. A maioria dessas características incentivam comportamentos que entram em choque direto com a defesa do direito autoral nos moldes que tem sido engendrado no país.
Um indivíduo usuário de Internet, por estar conectado, tem a possibilidade de assumir pra si o papel de divulgador do conteúdo de outras pessoas assim como do que ele mesmo produz a partir das referências que ele tem, recombinando os códigos e reconstruindo nossa cultura. Essa liberdade não provoca alterações apenas no nosso relacionamento com a música, mas com todas as outras formas de conteúdos culturais, inclusive a fotografia.
E já no percurso da segunda questão, lembro aqui do Mastergram, do fotógrafo canadense Andrew Edmond, que criou furduço na Internet porque reeditava fotos clássicas de Bresson a Paul Strand, passando por Loretta Lux a Diane Arbus, tudo com filtros de instagram. No twitter, ele mesmo comentou: “Tenho sido xingado por causa do Tumblr, acerca do que consideram desrespeito, violação de copyright, apropriação etc. Isso é interessante e um pouco inesperado. Obras de música e vídeo são recriadas, alteradas e recombinadas por outras pessoas o tempo todo, como podemos ver no YouTube em particular, sem que isso cause quaisquer reclamações. Por que seria diferente com a fotografia?”.
É verdade, Andrew, o fato é que não é diferente com a fotografia nem com nenhuma outra forma de expressão cultural. A fotografia tem se adaptado e até tirado um bom proveito das novas dinâmicas da rede. Nunca se fotografou tanto e nunca se teve acesso a tanta fotografia como hoje, porque nunca a fotografia teve tanto espaço na produção cultural da sociedade no ocidente e isso, como toda e qualquer coisa na vida, tem seus pontos positivos e negativos.
Porque é o copyright, e não a cultura, quem está em crise. É ele que não conseguiu se adaptar completamente aos novos comportamentos e novos usos que a digitalização busca incentivar. O grande problema é que Ana confunde cultura com indústria cultural.
A internet estimula a livre circulação de conteúdo, mais que isso, a Internet nos modos que a vivenciamos hoje só existe por conta desse princípio, seu funcionamento alimenta esse princípio e é retroalimentado por ele. Lessig diz: direitos autorais devem fazer duas coisas e não uma: fornecer incentivos e proteger liberdades. Diante desse fluxo, o conceito de autor e principalmente as leis do direito autoral precisam ser recolocados.
Nesse contexto, as prioridades do governo deveriam ser outras: não a defesa dos interesses da indústria, mas a defesa de políticas culturais que encarem a internet como um espaço de ampliação das vozes da sociedade, além de um espaço de democratização.
É como Juca disse ao farofafá: “A internet amplia, e muito, a possibilidade de acesso à informação e à cultura. Ela multiplica os interlocutores. O monopólio da comunicação de grandes meios hoje tem um contraponto, que é essa complexidade enorme de vozes. É como a rua, a infovia é como a rua”. Parece que, digitalmente, finalmente conseguimos tomar as ruas e eles vão ter que nos ouvir.
assim que puder, Joana, dá uma sacada neste vídeo aqui http://migre.me/8wp6x o nome do palestrante é Chris Anderson e ele fala sobre o que chama de aceleração da inovação em massa, destacando o vídeo como suporte catalizador desse fenômeno. tem tudo a ver com o teu texto!
ah, se a galera do ecad tivesse visto esse vídeo… =)
E só para alimentar um pouco mais essa reflexão, um artigo publicado jornal O Globo sobre a gestão de Ana de Hollanda no MinC.
https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/4/5/falta-projeto