Se existe uma explicação para o quão eu sou grata por ter sido tocada pela fotografia, como meio de diálogo e ferramenta de expressão, ela está na sutileza com que as minhas dúvidas são respondidas pelo encontro com olhares que abrem caminhos. Olhares que, ao invés de imobilizarem movimentos, energizam as conexões e nos permitem reatar conversas com perspectivas adormecidas de nosso trabalho que podem ser fundamentais para retomar o rumo.
Há alguns meses, eu vinha experimentando sucessivas conversas, aparentemente aleatórias, com a obra de Marcio Vasconcelos. Em 2011, li algumas reportagens publicadas em revistas especializadas em fotografia sobre os ensaios Zeladores de Voduns e outras entidades – do Benin ao Maranhão e Na trilha do cangaço – a terra onde Lampião pisou e me senti entusiasmada pela maneira como ele trabalhava suas temáticas, aliando a fotografia a uma vasta pesquisa antropológica e social.
Em seguida, durante uma caminhada pelas ruas de Paraty, em setembro passado, tive a oportunidade de conhecê-lo, quando meus coleguinhas de Trotamundos Coletivo iniciaram um diálogo para trazê-lo para uma das edições do Conversando Fotografia, em Sergipe. Na ocasião, ele nos presenteou com o catálogo do trabalho Zeladores de Voduns e eu fiz questão de ficar para ler com mais cuidado sobre o trabalho. Passava as páginas e sentia arrepios, com aquela fotografia desafiando meus sentimentos sobre o tema e inquietando a minha própria capacidade de romper uma zona de conforto para conhecer mais as coisas que realmente me interessam.
No mês passado, o fotógrafo finalmente veio a Sergipe para o Conversando Fotografia e, nas poucas horas em que pudemos conversar, eu fiquei realmente impressionada com a maneira como ele desenvolve os seus projetos, articulando diversas áreas, construindo parcerias de colaboração, pensando cautelosamente como deseja tratar um assunto e se envolvendo apaixonadamente com ele. Os resultados aparecem tanto na beleza contundente de seus projetos fotográficos quanto na riqueza do material paralelo que os acompanha, elaborado em conjunto com os pesquisadores.
Um dos exemplos é o do antropólogo beninense radicado no Brasil, Hippolyte Brice Sogbossi, a quem o fotógrafo considera co-autor do projeto Zeladores de Voduns. Sogbossi vem de uma família envolvida com o tema, fala o Fon, dialeto do Benin, e foi indicado para colaborar com Marcio Vasconcelos na pesquisa. Por uma série de eventos aparentemente aleatórios (mais uma vez) a presença do pesquisador abriu as portas para Vasconcelos desenvolver bem o trabalho no Benin e várias ações paralelas envolvendo os dois ocorreram desde o momento em que se encontraram. Marcio relata isso em diversos depoimentos em palestras, revistas e na internet.
Esta, por sinal, é um dos canais mais usados por ele para reforçar estas parcerias e os desdobramentos do seu trabalho. Os dois sites que criou agregam fotografias e as bases sobre as pesquisas em que se envolveu para realizar os ensaios. O que leva seu nome traz um portfólio de cada trabalho, pequenas sinopses dos temas e textos que situam melhor o visitante acerca do universo documentado, mostrando a trajetória do assunto em relação à cultura brasileira e a perspectiva discutida pelo fotógrafo. O segundo é específico do projeto Na Trilha do Cangaço, mapeando espaço, personagens e o roteiro do ensaio, além da produção fotográfica.
Refletir sobre isso é significativo porque websites de projetos fotográficos existem aos montes pela internet, mas durante os últimos anos eu me deparei com fotógrafos que, às vezes, nem sabiam direito o que estava publicado sobre os seus trabalhos. Estavam participando de projetos, mas sem um envolvimento inteiro com eles e deixavam na mão de outras pessoas a responsabilidade de direcionarem os caminhos da própria produção. Marcio Vasconcelos, ao contrário, compartilha com os envolvidos a construção dos rumos de seus projetos. Divide os espaços como quem entende até onde a fotografia pode ir e que espaços ela pode deixar para outros modos de expressão, como a escrita e o cinema.
Esta mesma perspectiva ele leva para exposições, produção de catálogos e livros. O catálogo do Zeladores de Voduns agrega o contexto do trabalho e um estudo sobre a expressão religiosa nos dois países envolvidos na documentação. O livro Nagon Abioton – Um estudo fotográfico e histórico sobre a casa de nagô interliga uma leitura visual do mais antigo terreiro dedicado ao Tambor de Mina do Maranhão com a pesquisa dos antropólogos Paulo Melo Sousa e Mundicarmo Ferretti. Projetos que não deixam sensação de vazio e nos fazem pensar como dialogamos com os espaços que estão em torno da fotografia que produzimos.
Isabella Valle publicou um diálogo, na semana passada, falando de como percebemos as imagens por meio dos suportes que escolhemos para escoar uma produção. Esta semana, Mila Targino me enviou sucessivos e-mails com questionamentos sobre essa temática da ocupação dos espaços paralelos à fotografia. As questões eram para o Trotamundos, mas pensei no processo criativo de Marcio Vasconcelos, como um dos exemplos que me interessam, porque creio que a nossa relação com a obra fotográfica se altera à medida que conhecemos os outros lugares onde o fotógrafo sedimenta as suas ações.
Acho difícil voltar a olhar para o trabalho de Marcio Vasconcelos sem considerar as interlocuções que ele constrói dentro e fora da fotografia. Diante de um contexto que alia informação à produção de significados, vejo com muito bons olhos esta perspectiva de criação compartilhada e ocupação de espaços que ele propõe. Em especial pelos assuntos que trabalha no universo da cultura e da religiosidade popular, como o culto aos voduns, que por vezes são cercados de estereótipos promovidos por séculos de uma desinformação pensada e articulada para continuar mantendo certas estruturas de poder social.

Capa do Livro Nagon Abioton com imagem de Santa Bárbara | Foto: Marcio Vasconcelos | Textos: Mundicarmo Ferretti e Paulo Melo Sousa
Assim, conhecer cada vez mais fotógrafos como ele, que se envolvem, pesquisam, transformam e passam por mudanças junto com seus ensaios é um dos maiores privilégios que alguém pode ter. Sei que não foi à toa que me emocionei nas conversas e mordi os lábios para não chorar quando ele mostrou o portfólio do Nagon Abioton, antes de falar sobre o seu envolvimento com os terreiros nagôs do Maranhão. Vi-me diante de uma relação que desmancha entraves – e senti que precisava continuar a pesquisa que desisti, depois de dois anos acalentando um tema que não seguia em frente, por compreender que tempo foi necessário para um aprendizado pessoal e não fotográfico.
Por isso, eu indico neste #Plataforma um mergulho nos diálogos que Marcio Vasconcelos propõe e agradeço todos os dias por esses encontros que a fotografia nos traz. E, para confirmar minha certeza de que conhecer o seu trabalho e ouvir os seus relatos não foi um evento aleatório na minha rotina, quando acabo de escrever a base do texto, vejo um dos guias de Marcio, o antropólogo Hippolyte Brice Sogbossi, passar com seus passos largos e suas mantas coloridas bem diante da minha janela.
É interessante notar como o autor e sua obra se misturam de tal forma que se tornam indivisíveis. Ótima sugestão.
Verena, acho que uma das coisas mais bacanas do trabalho do Marcio é essa identidade entre ele e a obra que ele constrói. Porém, uma coisa que também me impressiona é a relação de alteridade que existe entre ele e as pessoas e espaços fotografados. Ele traz uma leitura pessoal sobre o que fotografa, mas a gente percebe que essa leitura não sufoca ou reprime quem está sendo fotografado. É uma relação muito bonita de respeito e diálogo.
Essa é a palavra: diálogo. Acho que a foto se torna a linguagem do fotógrafo e quando vemos uma fotografia como neste nos estamos “vendo” e “ouvindo” o que o autor tem a dizer…. simplesmente show.
Prezada Ana Lira, ao final deste texto imediatamente um nó tomou conta da minha garganta e as lágrimas turvaram minha visão. Pela falta de palavras, simplesmente obrigado! Saio feliz por poder considerar uma nova amizade,
Um abraço carinhoso!
Márcio Vasconcelos
Oi Marcio!
Eu acho que boas referências precisam ser compartilhadas e este espaço é para isso. O seu trabalho é muito sério, coeso e bonito. Merece esta atenção! Eu também saio feliz desta troca porque ela me trouxe muitas boas reflexões. Seja sempre bem vindo, a Recife ou a Aracaju! Aqui no 7 ou no Trotamundos! Outro abraço para você!
Aninha, que trabalho tão delicado. Não conhecia o trabalho desse fotógrafo. Entrei nos sites, e, no momento em que reflito sobre a feitura do meu, não podia ter sido mais preciso. As imagens são belíssimas (como cê sabe, nem gosto muito de imagem colorida), mas a cartela cromática dos “lugares” do Mácio é linda… Ficarei durante o feriado curtindo os sites! Presentão! Boa Páscoa para todos.
quando é feito não apenas com dedicação, mas também com identificação, o lance só pode sair bem feito, né? esse material aí é cheio de simbolismo, o tipo de trabalho que fatalmente desperta em nós o desejo de saber um pouco mais sobre o que é mostrado. sempre acho bacana atividades que trazem à luz coisas, lugares e pessoas relevantes de alguma maneira; que atraem atenção pra um determinado assunto que por este ou aquele motivo precisa mesmo ser abordado. fotografias que cumprem essa função social devem ser valorizadas por todos.
Alteridade. Isso que muda, isso que é preciso. Certeiro e necessário. O futuro.
Essa fotografia Marciana tá cheia de signos curiosos, documentos pulsantes. Faz resignificar toda a trajetória, ou ao menos alterar posições e trilhos dos caminhos. Como é bom poder ver isso. Obrigado Ana, mais uma vez.
Caro Marcos Pimentel, obrigado pelas palavras! Forte abraço!