A imaginação jamais pode dizer: é apenas isso. Há sempre mais do que isso.
Gaston Bachelard, em A poética do espaço
Para começar, é necessário dizer que este texto é, acima de tudo, uma reflexão sobre a fotografia de palco e também sobre meu trabalho como fotógrafa de espetáculos. E por hora, as possibilidades de questionamento me interessam muito mais que do que as respostas em si.
Durante muito tempo convivi com a sensação de que o “mundo da fotografia” considerava as fotos de palco como algo menor, como se ela estivesse no penúltimo degrau de uma hierarquia fotográfica. Como se fotografar um espetáculo fosse apenas registrar cenas pré-visualizadas pelo diretor, e assim defendia Thomas Farkas, ou como se o fotógrafo estivesse sob o domínio de uma ação dramática já planejada por alguém, como bem pontua Rubens Fernandes Jr.
De acordo com esse ponto de vista, parece que a função do fotógrafo de palco seria apenas apertar o botão da câmera e registrar uma imagem pensada anteriormente por uma outra pessoa, sem possibilidade de um trabalho criativo, corroborando com a ideia da fotografia como um espelho do real. Ideia que, apesar de já ter sido desconstruída, parece se acentuar nesse gênero de fotografia, trazendo, como nos diz Philippe Dubois, no livro O Ato Fotográfico, um sentimento de realidade incontornável do qual não conseguimos nos livrar apesar da consciência de todos os códigos que estão em jogo nela e que se combinaram para sua elaboração.
E que códigos estão em jogo na fotografia de palco? Eu vislumbro alguns deles no trabalho de quatro fotógrafos: Fredi Kleeman, Lenise Pinheiro, Guto Muniz e Emidio Luisi, quatro olhares bem distintos que, para mim, ensaiam algumas respostas sobre a fotografia de cena.
A primeira questão que salta aos olhos, sem dúvida, é a memória, ao contrário da efemeridade do espetáculo, a fotografia constroi a memoria do teatro e da dança. E o trabalho de Fredi Kleeman talvez seja o que melhor expresse em imagens a história do teatro brasileiro.
Ao contrário do trabalho de Kleemann, que também era ator e fotografava especialmente os personagens, a fotógrafa Lenise Pinheiro é produtora e suas imagens retratam muito mais os atores do que as peças em si. Seus retratos são bem diferentes dos elaborados por Kleemann e, segundo o jornalista Nelson de Sá, Lenise não fotografa a cena de uma peça, mas o indivíduo isolado, em meio à ação do teatro, não fotografa o momento histórico, parecendo nem ter olhos para o todo.
Já Guto Muniz nos faz literalmente um convite. A foto de abertura de seu site é da placa do espetáculo Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, como se essa imagem antecipasse a apresentação de como Muniz vê o universo das artes cênicas. Lá estão seus recortes das cenas, seus pontos de vista, suas escolhas de ângulos e lentes e o uso da iluminação cênica para compor as suas fotografias.
Outro fotógrafo que tão bem se utiliza dos códigos das artes cênicas para construir suas imagens é Emidio Luisi. Luisi fotografa dança lançando mão da dramaticidade da luz e do movimento para compor o momento decisivo. Suas fotografias em preto e branco seguem o movimento da dança e o aprisionam, num equilíbrio sólido e frágil, a um passo (ou salto) do desequilíbrio dinâmico, harmonioso (Stefania Bril).
É fato que numa peça algumas cenas são pura fotografia e estão prontas para serem fotografadas, mas fotografar um espetáculo não é muito fácil. É preciso uma técnica apurada. Há pouca luz e as cenas mudam rapidamente. A luz do palco quase sempre resulta em grandes contrastes, e é muito fácil ter elementos estourados e outros sub expostos na mesma imagem. Sem falar na falta de mobilidade e na absoluta necessidade de se respeitar o espetáculo, seus atores e seu público, é preciso ser invisível e fazer o mínimo de barulho possível. Situação que quase sempre gera alguns conflitos, já teve produtor estressado reclamando antes mesmo do trabalho começar, bailarina que cuspiu na minha câmera, velhinho que me bateu com uma bengala… Sem falar na falta de estrutura das artes cênicas, ao menos em Recife, onde os equipamentos de iluminação dos teatros da cidade estão sucateados e a falta de recursos impede que a produção dos espetáculos esteja pronta antes da estreia. Ou seja, as fotos de divulgação quase sempre são feitas em situações bastante precárias, sem figurino e sem que a iluminação esteja pronta. Eu já cheguei a fotografar com um único refletor no chão porque o teatro não dispunha de nenhum outro equipamento.
Mesmo assim muito me questionei se a fotografia que eu fazia era criação minha. Essa imagem não seria também criação do iluminador, do diretor, dos atores e dos bailarinos? Fico me perguntando se não seria adequado empregar o termo fotografia compartilhada, expressão tão bem empregada por João Roberto Ripper para suas documentações humanísticas?
Faço minhas as palavras do crítico de teatro Décio de Almeida Prado, no livro Fredi Kleemann Foto em Cena: proponho que as fotografias sejam contempladas em si mesmas, pelo que são e não pelo que significam como reflexos de outras realidades humanas ou artísticas.
Oi Val,
As artes cênicas são um emaranhado de sentimentos. Ninguém vê igual e ninguém sente igual. Seja diretor, fotógrafo ou platéia. O que nos faz diferentes é que podemos (e sabemos) registrar o que nos toca. Então, é deixar fluir.
Muito obrigado pelo texto e pela honrosa citação. É sempre bom ler sobre o que a gente ama fazer.
Beijos,
O texto é deveras instigante e realmente deixa muitas questões no ar, daí concluo que a busca individual dessas respostas é o que nos move nessa paixão pelo palco, como bem disse o Sr Guto Muniz.
Parabéns pelo artigo e obrigado por compartilhar!
Val, uma dúvida:
Quando sugere contemplar as fotos cênicas somente como fotos em si mesmas, e não como representação de uma realidade criada por um diretor e personificada por um ator/uma atriz não estaria excluindo a matéria-prima da imagem, que é essa realidade paralela?
Oi Val,
Adorei o artigo. Eu acho que hoje em dia nós ja podemos ter outras conclusões em relação a fotografia de teatro pois o Guto Muniz e o Nereu ja confirmaram: cada um com o seu olhar. Claro que existem ainda muitas discussões sobre isso, mas eu acredito que elas irão para esse caminho.
Eu só queria comentar que embora eu concorde com muitas coisas que você escreveu, eu achei um pouco rígida a crítica para com a Lenise Pinheiro. A gente não pode ignorar o fato de que ela precisa fotografar especialmente para o Jornal e isso implica muitas restrições de linguagem fotográfica e de assunto… Mas eu acho que se a gente analisar o trabalho autoral dela, ela tem sim uma visão muito bonita sobre a cena em si, e não somente dos atores…
Em fim, essa é a minha opinião… acho interessante discutir essas questões mais específicas aos fotógrafos…
Você conhece o Bob Sousa? Ele está na fotografia de palco a relativamente pouco tempo (10 anos) mas ja é muito reconhecido aqui em São Paulo e está atualmente fazendo uma pesquisa acadêmica sobre a fotografia de teatro. Acho que vale a pena você entrar em contato com ele e talvez até fazer um artigo aqui.
Gosto muito dos teus artigos!