Há um assunto na minha vida de estudante-professora-pesquisadora que me persegue. Sabe daqueles temas que deixam a pessoa intrigada mesmo? Pois é bem assim. Desde que o 7 nasceu como coletivo, que Val me falava do desejo que ela tinha de estudar mais sobre uma tal de “alfabetização visual”. O termo me parecia meio bizarro, mesmo que eu fosse (ou talvez por isso mesmo) mestranda em semiótica.
Logo depois do nascimento do grupo, eu me matriculei em um curso de Estética da Fotografia, no Sesc Pompéia, comandado por Simonetta Persichetti. Éramos um grupo de estudos e, por ali, diversos temas polêmicos foram alvo de debates muito construtivos, guiados pelo livro homônimo de François Soulages (uma de minhas bíblias teóricas). E, como era de se esperar, lá vem a tal de “alfabetização visual” novamente, em uma das discussões do grupo.
Sempre fui a favor de uma “leitura” crítica das imagens. Mas a palavra “alfabetização” aplicada ao universo das imagens sempre me incomodou. Como alfabetizar alguém para ler uma fotografia? Isso não seria limitador? Bê-a-bá para ler fotografia me assusta! É como se padronizássemos códigos que, na verdade, são fluidos. Mas talvez um certo preconceito contra a leitura das palavras tenha falado mais alto, mesmo sendo tão amante do verbo. Afinal de contas, desde quando ser “alfabetizado verbalmente” nos faz partilhar uma leitura comum de um livro, por exemplo?
Li pela primeira vez o “Lendo Imagens”, de Alberto Manguel, há quase três anos. As observações que o autor fazia, com tanta simplicidade e inteligência me encantou. Jamais esquecerei quando ele fala que
“As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, alegorias, ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos”.
Libertando-se da responsabilidade de criar um método ou uma “alfabetização” padronizada para todas as imagens, Manguel preza pelas particularidades para falar de coisas universais. Ele começa a ler algumas imagens, escolhidas deliberadamente por ele, a partir dos códigos que ele mesmo dispõe, para levantar questionamentos que acha importante, através da bagagem que a vida lhe deu. Quer aprendizado mais delicioso para despertar uma consciência crítica na leitura de uma imagem do que ir, aos pouquinhos, acompanhando a leitura crítica de outra pessoa?
Ao ser convidada para ministrar a disciplina de “Teorias da Imagem” a alunos de primeiro período de Fotografia e de Artes Visuais, lembrei logo desse livro, que virou mote para seminários apresentado pelos estudantes. E me vejo novamente pensando e repensando sobre o tema que não me larga.
Ler imagens é interpretá-las, tentar decifrá-las, reconhecer seus signos, se deixar viajar no universo que ela permite. É participar com ela da mágica que é criar e perceber uma imagem. Afinal de contas, não faltam histórias para provar que uma imagem só passa de materiais, cores e formas dispostas sobre uma superfície, porque, de alguma forma, nós a reconhecemos como imagem. Tintas, papéis, químicos, luzes, pixels, rasgos, texturas só se transformam em imagem porque nós lhes conferimos esse status. Simbolicamente, completando vazios.
Não pretendo adentrar em aspectos de produção de imagens (como o fato de precisarmos conhecer sua arché para reconhecê-las), mas apenas perceber que, digam o que disserem, a imagem está, antes de tudo, em nós. Porque imagem em si não existe, o que existe é matéria, matéria que ganha potência simbólica em contato conosco e com nossos vazios. E é o papel do homem simbolizar tudo o que encontra a sua volta.
O fotógrafo nada mais é do que um primeiro interpretador da imagem que ele mesmo produz, mesmo antes de ela existir. E camadas e camadas de leituras simbólicas se somam e se subtraem a ela, a cada novo “diálogo” que entra no jogo, a cada nova pessoa que relaciona a ela as suas angústias, buscas, expectativas, dúvidas e certezas. Muitos dos códigos são mais antigos, outros podem ser comuns a maioria das pessoas do mundo ou apenas de uma determinada época ou região, outros são mais específicos da realidade de cada pessoa. Há sempre uma rede se articulando e sendo partilhada.
Cada imagem só é um mundo, porque nós somos capazes de abstrair. Porque, na verdade, nós mesmos é que somos os mundos complexos, despertados por conexões múltiplas que, vez ou outra (contemporaneamente, bastante frequentemente), entramos em “sinapse” com uma imagem. E, não podemos negar, a fotografia é um dos tipos de imagem com que mais nos relacionamos.
Esse bombardeio de imagens fotográficas é um dos grandes motes para os defensores da tal “alfabetização visual”. Vemos tantas fotografias, em casa, na publicidade, na internet e em todos os ambientes em que circulamos cotidianamente, que supostamente nos tornamos incapaz de interpretá-las.
É aí onde acho que a corda balança (ainda não sei se cai). Como assim não somos capazes de interpretá-las? É óbvio que interpretamos todas elas! E defendo, aliviada, meu argumento, antes preconceituoso com as palavras: por algum acaso somos capazes de não lê-las? É nos dada essa possibilidade? Outro dia eu passeava pela cidade e comecei a me dar conta da quantidade de palavras que nos bombardeia também: placas de automóveis, outdoors, panfletos, livros, internet. Não podemos fugir de interpretá-las. Eu adoraria olhar para essa tela de monitor agora e conseguir não ler nenhuma dessas palavras que escrevo. Mas, infelizmente, não possuímos um interruptor que desliga o nosso código linguístico. Eu leio porque aprendi e agora é impossível não ler mais. Não dá para “desaprender”.
Jamais me esquecerei da sensação inédita que experimentei quando estive no leste europeu: em Praga ou Budapeste, as palavras me eram verbalmente ilegíveis. Eu não fazia ideia do que os panfletos, outdoors, placas de informação me diziam em palavras. Na verdade, eles não me diziam, além do que eu podia interpretar das cores, formas e disposições gráficas e contextuais, ou (ironicamente) de alguma imagem que os acompanhava. A sensação era um misto de liberdade e de angústia ao mesmo tempo. A impossibilidade de ler (ou, talvez, a possibilidade de não ler) me conduzia cada vez mais a novas tentativas de leitura.
Ao não conseguir ler verbalmente uma palavra, ela se transforma em uma imagem (sonora ou visual). Buscamos interpretá-la mesmo assim, a partir de outros códigos (que não a língua) que formam nosso repertório. Liberdade ou prisão: somos imunes ao insignificante.
“Nasci numa câmera”, li outro dia no livro de Soulages, como depoimento de alguém. Não posso olhar para uma fotografia e não vê-la. Ver é ler, e ler imagens é aplicar todos os códigos (conscientes ou não) que aprendemos ao longo da vida na interpretação de uma matéria, inevitavelmente simbólica, que se apresenta para nós. Na semiótica, dizemos que são apenas tipos diferentes de textos. Que me perdoem os defensores de uma arte “puramente abstrata” (como se houvesse uma ausência de linguagem), mas abstrair é a essência do simbolizar. Se a fotografia nos engana pela sua referencialidade, este é o seu engodo: não passa de matéria fotográfica simbolizada em imagem. Sempre buscaremos interpretar o mundo a nossa volta e aplicaremos significações a ele. Impossível não interpretar vestimentas, arquitetura, fotografias, gestos, cores. Entendo perfeitamente quando a Santaella me dizia em suas aulas que “tudo é signo”. Não nego que há diferentes modalidades simbólicas, mas não é o tema deste texto.
Aprender a ler imagens não é ser “alfabetizado”, mas saber reconhecer os símbolos que nelas se colocam (principalmente por nós mesmos). É esse exercício que nos propomos aqui no blog do 7, com o Olhando Pra Sempre.
O que falta na nossa sociedade é, na verdade, uma educação crítica. Somos bombardeados e alucinados por milhares de imagens que passam despercebidas porque somos incapazes de aplicar criticamente os códigos adequados nos momentos adequados. Ou dedicando o tempo adequado, como defendem alguns.
O que nos falta é somar repertório e desenvolver consciência de análise para ler o mundo inteiro, não só as imagens. Precisamos dialogar mais com as imagens. Precisamos aprender a dialogar com o mundo. E isso não se aprende só na escola (mas é um dos papéis fundamentais da escola), porém a partir de uma postura crítica cotidiana, do exercício do próprio diálogo e da conscientização de que as imagens significam para nós, todas elas, desde o momento em que as reconhecemos como tais. Basta dominar mais o processo e refletir sobre essa interpretação. Sair do ler e passar ao analisar.
PS – o #diálogo veio propositalmente sem imagens, porque acredito que este texto deve ser interpretado verbalmente mesmo, em língua portuguesa. Não lembrei agora de nenhuma imagem que me ajudasse a desenvolver a ideia discutida aqui.
Uma vez recebi o conselho de produzir a imagem antes da fotografia, antes de fotografar. Achei muito interessante a idéia e pensei muito no assunto. O que seria então “produzir a imagem” nesse contexto? Seria o avesso dessa leitura?
Belo texto, bela inquietude me deu.
abraço
.
Que bom que inquietou, Marco! Me sinto compartilhando algo que me toca! =)
Bem, acho que produzir imagem não é o avesso da leitura, mas, pelo contrário, a primeira leitura possível, que permite uma concretização da imagem.
Tu concordas?
Já programei a compra dos dois livros citados. Muito bom o texto!
Os livros são deliciosos! Você jamais vai se arrepender. =)
Meu professor certa vez falou sobre a linguagem da fotografia e como devemos aprendemos a entendê-la, como se fosse uma língua verbal mesmo como o português.
Acho que aprender a “ler” (seja verbo ou imagem) exige uma educação que vai além do que o bê-a-bá proporciona. Não dá pra ensinar a ler, mas dá pra tentar fornecer algumas ferramentas para isso. Para mim, repertório histórico, consciência crítica e disponibilidade para análise são as coisas que devem ser “ensinadas” de fato. Afinal, de que adianta ler um livro ou experimentar uma imagem, se não nos colocamos neles ou se não percebemos o que se tenta colocar neles, né?
Oi Bella, suas ponderações são ótimas: se é para falar em “leitura de imagem” ou “alfabetização visual” é preciso resgatar a complexidade desses termos. Potencialmente, toda leitura é uma conversa que envolve muitas vozes, e que não tem fim. Por isso é que a gente pode “ficar olhando pra sempre” para algumas fotos. Essa “matéria”, quando passa a ter existência simbólica, quando se torna uma imagem, assume vida própria. Daí que, enquanto lemos uma imagem, descobrimos às vezes que somos lidos por ela, que outros olhares e outros tempos também nos pensam através dela. Parabéns pelo texto, vou indicar.
Entler, é uma honra tê-lo aqui acompanhando nosso blog! Obrigada pelo comentário e pela indicação do texto. A complexidade que envolve uma leitura realmente não tem fim. São tantas camadas sobrepostas e tantos nós em rede que fica difícil ensinar alguém os códigos necessários à leitura uma imagem, né? Exatamente por isso a gente “Olha para sempre”, porque o olhar se transforma ao longo dessa “eternidade” toda. E toda imagem carrega em si uma série de olhares também. Obrigada por refletir com a gente!
Bella
Eu não vou conseguir lembrar de toda a coisa bonita que eu escrevi para responder a esse teu diálogo, mas vamos lá: o seu conceito de alfabetização me inquieta muito. A sua reflexão acerca da fotografia é muito interessante, mas o que você chama de alfabetizar aqui está associado a um conceito que não se sustenta mais no campo da educação e muito menos de maneira tão restrita. A ideia de que alfabetizar é ensinar um bê-a-bá de alguma coisa.
Por isso, além de não poder usar este mesmo conceito que reduzia o sentido de alfabetizar ao de aprender a juntar as letras para compor palavras e frases, ele não pode ser interpretado da mesma maneira diante de uma linguagem que é outra. Tanto a orientação quanto o aprendizado ocorrem de outras formas. Talvez, você precise migrar um pouco para os contextos específicos da área de educação – se for do seu interesse – para compreender melhor o que eu estou dizendo.
É possível, sim, conduzir um processo de orientação de leitura de imagem. Tanto você quanto eu conseguirmos olhar tantas coisas para sempre, nas fotos que analisamos, porque passamos, várias vezes, pelo contato com diversas pessoas que nos deram pistas, referências e peças que nos proporcionaram novos caminhos de percepção sobre as imagens que víamos.
Essa construção não se deu sozinha. Além disso, não consigo pensar em educação crítica sem refletir no que significa “educar criticamente” dentro de diversos contextos sociais, econômicos, políticos, filosóficos, entre outros. Vamos ser educados criticamente a partir de quais referenciais? Quem determina? O que é aplicar os códigos adequados nos momentos adequados? Quais são os códigos adequados?
A própria ideia de crítica pressupõe termos como selecionar, contextualizar e assumir determinados valores. Ela mesma é uma forma de “alfabetizar”, mas os seus códigos são muito mais complexos e por isso acreditamos que eles estão distantes da ideia do “aprender a ler”.
Achei bacana a discussão, mas acho que é preciso trilhar um pouco por outros caminhos para compreender outras dimensões do que significa a proposta da alfabetização visual. Ela vai bem mais longe do que esta impressão mais restrita do bê-a-bá que nos ensinaram na infância.
Aninha, vou tentar responder o teu comentário a altura das questões que você traz, tá?
Vamos lá:
Eu não trago nenhum conceito de alfabetização, flor, exatamente por eu achar esse termo associado demais a um método de aprendizagem da língua (complexo, sim, claro, mas que não sinto que dá conta do que quero falar quando falo de uma “leitura das imagens”).
Eu não trago a ideia de que alfabetizar é ensinar bê-a-bá. Eu a questiono. Se, no começo, eu assumo um preconceito inicial: “Como alfabetizar alguém para ler uma fotografia? Isso não seria limitador? Bê-a-bá para ler fotografia me assusta! É como se padronizássemos códigos que, na verdade, são fluidos. Mas talvez um certo preconceito contra a leitura das palavras tenha falado mais alto…”. Logo depois, eu desconstruo completamente essa ideia: “desde quando ser “alfabetizado verbalmente” nos faz partilhar uma leitura comum de um livro, por exemplo?”
Tentei deixar sempre clara a complexidade que é qualquer processo de leitura e interpretação. Será que eu não consegui me expressar bem?
Sei, claro, como educadora que sou, que tanto a orientação quanto o “aprendizado” ocorrem de outras formas com as imagens. Porém, essa questão não é o foco do meu texto. Quero falar da complexidade do processo de ler uma imagem e não de métodos de ensino para essas leituras. É um texto sobre interpretação e referências simbólicas, por isso não sinto necessidade aqui (talvez em um desdobramento em outro #diálogo) de entrar em referências específicas da área de educação. Neste caso aqui, o viés da semiótica é que está em foco (mesmo os autores que cito nem sendo intitulados de semioticistas…).
Quero discutir com esse texto a rede de significações e não métodos de aprendizados. Quero dizer que não se ensina ninguém a ler nada do jeito que lemos, porque simplesmente ninguém fará as mesmas conexões que cada um de nós. Seja texto ou seja imagem. Algumas bagagens são, podem e devem ser compartilhadas, claro, (arquétipos, história, memórias, línguas), mas elas são constantemente vistas a partir do filtro da experiência de cada um.
Claro que é possível conduzir um processo de orientação de leitura de imagem. Eu não nego isso e até afirmo. Manguel faz isso constantemente no livro dele que cito e é lindo descobrir vários mundos a partir do olhar do autor. Nosso Olhando pra sempre é isso, como eu mesma digo no texto: “Aprender a ler imagens não é ser “alfabetizado”, mas saber reconhecer os símbolos que nelas se colocam (principalmente por nós mesmos). É esse exercício que nos propomos aqui no blog do 7, com o Olhando Pra Sempre.”.
E quando eu digo que não é ser alfabetizado é sem preconceito nenhum contra a alfabetização, mas apenas afirmando que o código linguístico que se aprende ao ser alfabetizado é apenas um dos que entram no jogo da leitura e da interpretação (tanto de um texto como de uma imagem – como texto que é).
Você está dizendo o mesmo que eu quando diz que não consegue pensar em educação crítica sem refletir no que significa “educar criticamente” dentro de diversos contextos sociais, econômicos, políticos, filosóficos, entre outros. É exatamente isso que eu digo: educar envolve muito mais do que alfabetizar. E educação visual não é nada que deve ser tratado como disciplina específica, pois é apenas um dos viéses naturais de aplicação e interpretação que uma educação crítica como o todo pode ser aplicada.
Jogo todas essas perguntas como reflexão no texto. Não quero dar respostas sobre referenciais, poder, valores e códigos adequados. Porque qualquer resposta que eu der será apenas a minha postura interpretativa diante do mundo, a partir da minha bagagem. E não é a proposta do meu texto agora (já fiz – e faço – isso em outros textos daqui mesmo).
Selecionar, contextualizar e assumir determinados valores acontece naturalmente o tempo inteiro por todo mundo, seja criticamente ou não. Devemos é somar repertório, ler histórias, ouvir depoimentos, estudar, somar diferentes opiniões e pontos de vista para entendermos os nossos.
Concordo que podemos trilhar por outros caminhos para compreender outras dimensões do que significa a proposta da alfabetização visual. A dimensão que assumo aqui é a do ponto de vista semiótico. Apenas espero que esteja claro que não tenho nenhuma impressão restrita sobre alfabetização. Mas confesso que acho difícil que ela possa se aplicar às imagens sem que caiamos em um direcionamento tolo de opiniões (valores e ideologias) já formadas por nós mesmos, antes mesmo de permitir que os “ensinados” criem suas próprias interpretações do mundo. Mas, já diria Aristóteles, qual a melhor forma de começar a aprender do que imitando, não é mesmo? Depois de ver e adotar bem muito a opinião dos outros, bem que começamos a percebermos as nossas mesmas….
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