Lendo o último diálogo de Isabella aqui no blog, não pude deixar de relembrar um pouco todas as conversas que nós duas mantivemos nos últimos dois anos – ela pesquisando produção fotográfica digital e eu focada na interação com a imagem digital na hora de sua reprodução. As duas apaixonadas por Flusser e sua incrível percepção sobre a misteriosa caixa preta que é câmera fotográfica, as duas pesquisando dois momentos tão complementares da fotografia.
À medida que se tornaram numéricas, as imagens analógicas foram abrindo espaço para um novo tipo de imagem, que nos remete a uma relação bem diferente com a linguagem e a comunicação. Recodificando nossa produção cultural visual em dados numéricos, essas imagens não possuem referente no real, como as imagens analógicas, mas são uma simulação numérica, ou seja, uma interpretação da realidade em dados eletrônicos matemáticos. Seu formato potencialmente interativo, pode produzir novas abordagens do discurso imagético, oferecendo-nos a possibilidade de dar conta (quando for do nosso interessante) de algumas das ambiguidades e limitações que a imagem analógica não conseguia.
Giselle Beiguelman explica de forma melhor o que eu tô querendo dizer, quando ela afirma: suas cores – um elemento básico da percepção visual –, como outras características formais, são produzidas por sistemas numéricos, operações lógicas e displays eletrônicos. Por isso, permitem operações de imersão e navegabilidade que expandem a visão, incorporando outros sentidos e gestos ao processo de interação com imagens.
É aí que entendo muito essas afirmativas que Bellinha pontuou numa dissertação tão linda, tão rica e tão fundamental (o arquivo completo tem que ser bibliografia obrigatória mesmo). A fotografia hoje é outra, precisamos olhá-la também com outros olhos.
Num livro muito bom chamado After Photography, Fred Ritchin aborda a produção de imagens digitais e como o formato numérico tem transformado nossos modos de ver e pensar, em suma, nossa percepção de mundo. O formato digital modifica as imagens e nós modificamos nosso relacionamento com o visual. Ter consciência desse processo ajuda a estimularmos tanto uma produção quanto um consumo de imagens com mais responsabilidade.
Mais do que isso, observar as particularidades da lógica digital pode facilitar a
exploração das diversas potencialidades oferecidas por essa nova linguagem, tais como:
a amplificação do alcance da comunicação; a possibilidade de acabar com as
ambiguidades dos conteúdos, contextualizando-os com outras informações; o incentivo
à seleção de conteúdos a ser operada pelo usuário de internet; o estímulo à
interatividade e às respostas; enfim, a dinamização do processo comunicativo.
Pensar novas estratégias de apresentação de imagens explorando as novas mídias é
apontar para o desenvolvimento de formas de interação com os conteúdos culturais que
contemplem o interesse de uma sociedade cada vez mais envolvida na simulação e se
adequem a sua lógica algorítmica. Afinal, a questão que se impõe é a mesma feita por
Ritchin: por que fazer a mesma coisa que se pode fazer no papel quando o digital oferece tantas outras possibilidades?
Nesse contexto, o danado do Ritchin diz que: um novo tipo de fotografia surge, nem janela, nem espelho, mas mosaico. Ela nos leva a múltiplas vias – o hipertexto. Nele, a fotografia não é apenas um objeto tangível, um retângulo relembrando uma pintura, mas sim uma imagem efêmera feita de ladrilhos.

Um dos formatos de visualização do projeto “The Whale Hunt”, de Jonathan Harris, se encaixa perfeitamente na metáfora da imagem-mosaico, de Ritchin
Falei disso aqui num #Plataforma que escrevi sobre o trabalho do artista visual norte-americano Jonathan Harris. Ele é um dos poucos (diante da imensa maioria dos demais) dos produtores de conteúdo digital que perceberam as novas narrativas possíveis com a interação digital com a fotografia (vale ir no #Plataforma para entender o que eu falo aqui).
Durante as nossas pesquisas, tornou-se claríssimo o que eu tinha dito no #Plataforma e acho importante repetir aqui no diálogo: todo mundo fotografa, mas pouca gente ultrapassa o padrão analógico da fotografia, e pouquíssima gente sabe como tornar esse amontoado de fotos um produto interneticamente (sic) interessante. Ainda bem que esse número cresce cada vez mais.
On-line, uma série de operações nos permite desafiar a estrutura tradicional da
fotografia. Outros gestos são possíveis com o mouse e o jogo tátil estabelecido entre ele
e o computador. Estar em contato com uma imagem pode não ser mais, como era há menos de meio século, ter essa imagem nas mãos, senti-la com os dedos. No ambiente digital, a imagem é uma tela composta de milhões de pixels, prontos para se comportar como portas a nos levar a diversos outros caminhos.
É importante deixar claro que todas essas possibilidades de navegação introduzidas pela
linguagem hipertextual são só um dos aspectos e formas de abordagem. Mesmo na
Internet, uma imagem pode não apontar para nada além do que se faz presente
visualmente no seu frame. Ou ainda, por mais que aponte, estará sempre submetida a
outras possibilidades, sem esgotar de todo as potencialidades do formato.
Mas perceber que é fundamental considerar o interesse do espectador em percorrer outros caminhos e montar estratégias para que essas imagens não se esgotem nas suas próprias arestas é valorizar as possibilidades que o formato digital nos oferece.
“Ao contrário da fotografia analógica, em que o espectador é persuadido a nunca tocar
o seu centro pra não deixar marcas, o leitor é convidado a entrar no interior da imagem
digital”, diz Ritchin. Cabe ao fotógrafo também intensificar esse convite e abrir essas portas.