Em meu último #Diario de Bordo, escrito sobre as atividades do I Encontro Pensamento e Reflexão na Fotografia (realizado no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, no mês de maio), eu prometi escrever este diálogo sobre as reflexões em torno da temática da curadoria, que muito mexeram comigo na ocasião.
Estas inquietações não ocorreram à toa, claro! Eu estava desde novembro de 2011 cuidando da curadoria da exposição Taiê, do fotógrafo de Alejandro Zambrana, e andava as voltas com uma série de questões. Me perguntava sobre o papel do curador, o diálogo dessa figura com o fotógrafo, o trabalho que seria exibido, o contexto e os espaços de exibição, uma vez que, mesmo tendo experiência como editora, ainda estou dando os primeiros passos nesse universo da curadoria.
É um desafio atrás do outro. Eu não conseguia parar de pensar nesses detalhes porque nunca concebi a curadoria como um mero trabalho de seleção e orientação das imagens de um fotógrafo. Sempre acompanhei, de longe e com muito respeito, os trabalhos de , em museus e bienais de arte. Eu observava os resultados de suas intensas pesquisas nas exposições e estes referenciais me alertaram para a responsabilidade de exercer esse papel.
Durante o encontro, os debates ocorreram no workshop A produção do discurso fotográfico – exercícios de curadoria e edição, com Juan Antonio Molina e na mesa Curadoria Contemporânea: a pesquisa crítica como construção de reflexão, que reuniu Eder Chiodetto, Diógenes Moura, Juan Antonio Molina e Claudi Carreras. Na ocasião, Rosely Nakagawa, que estava na plateia, questionou se o termo curador ainda fazia sentido para a atividade que eles desempenhavam, uma vez que a palavra tem sido usada de uma forma meio gratuita em vários contextos seletivos.
Esta questão ficou ruminando comigo, também. Reli o material que Molina passou para o workshop e encontrei a mesma questão no artigo que Cuauhtémoc Medina publicou na revista Arte Nuevo com o título “Sobre la curaduría em la periferia”. Entre os pontos abordados, Medina coloca que por ser a curadoria uma atividade que não requer profissionalização (dentro do contexto formal que divide as profissões por suas atribuições técnicas), ela pode ser exercida por pessoas com diversas trajetórias.

Juan Molina e Claudi Carreras discorrem sobre as questões de Rosely Nakagawa no debate sobre curadoria | Foto: Ana Lira
Essa informalidade, contudo, traz o que ele chamou de um “paraíso de improvisação”. Se, por um lado, a diversidade de trajetórias é excelente para a amplitude dos debates, por outro, ela carrega o risco de incentivar experiências curatoriais feitas de qualquer forma em um contexto em que “para ser curador basta quase se intitular como tal”. Medina, porém, acredita que esta configuração serve como um antídoto contra a neutralização de uma cultura que está em constante mudança e pontua que estes riscos incentivam constantes discussões sobre o papel do próprio curador.
O ponto de vista de Medina é bastante interessante e esta necessidade de repensar e questionar a própria atividade, à medida que novas configurações vão aparecendo, me parece saudável, também. Contudo, eu não consigo me identificar com a ideia do “sou um curador porque sim”. Acredito que podemos até começar sem saber muito bem por onde se está transitando, o que é normal em qualquer processo de iniciação, mas é complicado se acomodar com a ideia do qualquer caminho serve – até para não virar uma espécie de peteca no meio no qual se pretende atuar.
Este aspecto ficou muito claro para mim quando ouvi as experiências de Chiodetto, Moura e Molina, que têm trajetórias diferentes e construíram papéis distintos no campo da curadoria. Em suas falas aparecem algumas das linhas que permeiam a atividade: os curadores que desenvolvem coautoria dos projetos em que se envolvem (Chiodetto), os que dialogam por meio de representações institucionais (Moura) e os que se colocam como ativadores de um contexto sócio-político-cultural (Molina).
É claro que os três carregam elementos de todas essas linhas em suas atuações, além de vários outros que podem ser identificados em seus trabalhos, mas as características citadas marcaram suas apresentações/trajetórias e foram importantes para que entendêssemos a amplitude do processo criativo curatorial de cada um deles. Diante de propostas tão claras, eu compreendi porque, durante o workshop, Juan Molina nos pediu para pensar:
Quem sou eu como sujeito individual? Quem sou eu como sujeito social? Quem sou eu diante da fotografia?
Sem essas respostas, como é possível se posicionar diante do panorama e dos vários interesses que o perpassam? Fiquei pensando que as perguntas de Molina agregavam sentido às ideias de Cuauhtémoc Medina, para quem a curadoria é uma intensa negociação de poderes, saberes, poéticas e públicos. Gostei muito da possibilidade de pensar nesta atividade como um processo de construção de conhecimento e, principalmente, como um exercício de articulação de um discurso político.

Ação conjunta entre a curadoria e o educativo do MAM promovem conversas dirigidas à discussão crítica em torno das exposições do museu. Os convidados propõem linhas de leitura e diálogos acerca de problemáticas, saberes e práticas que norteiam os universos das mostras.
Pensar na curadoria como produção de conhecimento é compreendê-la como um ciclo em andamento e não como produto. É refletir constantemente sobre as linhas de força e movimentos, que se relacionam (ou não) com o trabalho pesquisado, para definir os caminhos de comunicação dele no contexto em que está inserido. Esta dinâmica requer repensar o papel do curador como criador de uma obra a partir de outra obra (a do fotógrafo) e lançar o foco sobre as relações que permeiam o processo de criação.
Por exemplo, no workshop, Molina nos pediu para iniciarmos pelas imagens. Observá-las e colher as informações oferecidas diretamente e em suas entrelinhas. Ele dizia que começar por elas é importante porque, algumas vezes, vemos exposições em que o discurso curatorial comunica algo que não conseguimos encontrar nas fotografias exibidas. Além disso, as próprias imagens podem fornecer pistas preciosas sobre o panorama em que o trabalho está inserido.
Este contato com os discursos que as fotografias trazem é, também, a maneira de iniciar o diálogo com o pensamento do próprio fotógrafo. Segundo Molina, o discurso do fotógrafo não deve se submeter ao discurso do curador. O curador é quem precisa estruturar a sua fala para que ela conviva com as reflexões do fotógrafo. Esta relação, como se sabe, não ocorre sem conflitos. É uma eterna construção de pactos e escolhas.
Lembrei-me de uma conversa que ocorreu na mesa sobre crítica e curadoria da VI Semana de Fotografia, em Recife, com Nadja Peregrino e Clarissa Diniz. Entre as discussões, Clarissa dizia que se o fotógrafo (ou artista) não sabe para onde quer levar o próprio trabalho, não é o curador quem vai resolver. Cuidar (de onde vem o termo curar) é encontrar caminhos juntos e não delegar a responsabilidade sobre o seu discurso para outra pessoa – por mais responsável e cautelosa que ela seja.

Mateus Sá e Ricardo Peixoto discutindo os caminhos da exposição Antes de Ontem, Ontem e Hoje: a longa parceria entre os dois reforça o compromisso com o discurso final do trabalho | Foto: Guga Soares
A produção de conhecimento que envolve um trabalho curatorial é um espaço de interação de poderes. É onde se discute, inclusive, quem tem mais poder de fala dentro daquele determinado contexto. Se observarmos, por exemplo, os conflitos envolvendo a fotografia no campo da arte contemporânea teremos uma ideia de como esse fluxo de relações se estrutura e pauta os debates em um determinado meio.
Por isso, Cuauhtémoc Medina pontua em seu texto que a curadoria precisa caminhar ao lado da produção crítica e incentivar retornos do meio – isso inclui todos os setores que influenciam um processo de produção cultural, inclusive o público. Para Medina, o processo da curadoria é validado pelas respostas que provoca. Então, quanto mais definida é uma trajetória curatorial, mais retornos concretos ela deve receber.
É nesse sentido que se pode pensar a curadoria, também, como um papel político. Ela pode propor questionamentos sobre a obra, a autoria, o mercado, a relação que se estabelece com os próprios meios de produção das imagens e desdobramento em um contexto mais amplo, que está conectado com a maneira com que comunicamos o que é relevante para nós. Assim, o que foi dito, ocultado e o que ficou pairando nas sutilezas do trabalho estarão no conjunto do projeto.

Outras vozes e percepções sobre curadoria podem ser encontradas no livro “Uma Breve História da Curadoria”.
Por isso, talvez seja mais adequado encarar isso e cuidar para que o conhecimento construído “coloque o debate para andar”, como diz Medina, do que ficar se esquivando de uma discussão que está latente ou até mesmo explícita no contexto do trabalho. Ainda mais porque, por mais bem cuidado que seja um projeto curatorial, não se pode controlar tudo. Juan Molina, dizia, inclusive, que é preciso estar aberto para o erro, para as fissuras, e compreender essas lacunas como parte do diálogo curatorial.
Ele comentava que se temos medo de errar e de ver os equívocos dos projetos nos quais nos relacionamos debatidos por nossos pares e pelo meio, não encontramos novos caminhos de pesquisa. O processo curatorial, então, não deveria ocorrer em redomas, sob o risco de criar um espaço de personalização que transforme a crítica ao processo na crítica ao próprio curador – e isso acabe criando mais um constrangimento, do que uma reflexão sobre o papel de todos os agentes envolvidos naquela produção.
Este talvez tenha sido para mim o maior ganho dos debates. Poder abrir a reflexão e ver as nossas responsabilidades de maneira integrada. Pensar na curadoria como uma articulação de saberes, estratégias, direcionamentos e ponderações; observar como outros curadores trabalham e refletir sobre suas escolhas; e prestar atenção cuidadosa na dinâmica social e como ela se desdobra no campo da fotografia e em seus movimentos correlatos.
Participar dos debates trouxe alguns alívios e novas dúvidas. Por isso, hoje, eu acredito que, entre outras coisas, o que podemos fazer – enquanto pessoas que colaboram para as discussões que também chegam aos processos curatoriais – é continuar investindo nos diálogos abertos. Mapeando fotógrafos, percebendo as propostas dos perfis dos festivais, saboreando leituras dentro e fora do campo da fotografia, ampliando experiências sensoriais, mas, principalmente, compreendendo com tranquilidade que outras coisas vêm com o tempo, se nos dedicamos de maneira comprometida.
Uma nota: para continuar esse debate, eu disponibilizo abaixo os textos que lemos para o workshop de Juan Antonio Molina (textos 1, 2 e 3) e também alguns que encontrei na internet, enquanto pesquisava sobre o tema (textos 4,5 e 6). Vale a pena, também, retomar o texto que Joana Pires escreveu sobre a produção brasileira e a exposição Geração 00, que teve a curadoria de Eder Chiodetto. Eu mesma fiquei cheia de ideias sobre as discussões depois dessa renovada de perspectiva – só não toquei nesse assunto porque os caracteres estão esborrando da tela.
No mais, deixo aberto para os colegas que estiveram no curso comentarem sobre possíveis desvios de interpretação, outras ideias que possam ter surgido e para que os leitores que não estiveram conosco, na ocasião, possam fazer suas considerações e trazer outras ideias sobre curadoria. Aprender é sempre bom e eu ando fazendo par com meu sobrinho de seis anos: abrindo bem os sentidos para experimentar o mundo.
Texto 1 – Arte Nuevo – Sobre la curaduría en la periferia – por Cuauhtémoc Medina
Texto 2 – La curaduría como indisciplina – Juan Antonio Molina
Texto 3 – Estrategias Curatoriales – Francisco Reyes Palma
Texto 4 – Icônica – Inhotim espaço e experiência – Ronaldo Entler
Texto 5 – Curadoria: expressão e função social – Milton Guran
Texto 6 – Processo de Criação – Rubens Fernandes Jr – Revista FACOM
Olá Pri, muito bacana. Vc soube refletir sobre as questões ligadas a curadoria expandindo de forma muito intensa o que foi discutido naquele dia. Muito bom. Bjo. Eder
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