Por Júlia Santos*
A arteterapia entrou na minha vida para somar com minha profissão de psicóloga. Promover vida e saúde para as pessoas, alimentando sua fome de arte, e todas as possibilidades de criá-la, foi o caminho que escolhi. A arte como instrumento terapêutico surgiu em minha vida ainda em tempos de faculdade, quando facilitei oficinas e fiz atendimentos individuais utilizando recursos artísticos com pacientes psicóticos, em um centro de atenção psicossocial (CAPS) particular do Recife. A partir daí, não consegui mais separar minha profissão do encontro com a arte e, logo depois de formada, iniciei uma especialização em Arteterapia e Linguagens Corporais.
A fotografia apareceu durante este percurso. Pessoalmente, sempre tive meus olhos cheios de alegria ao estar frente a fotografias, câmeras e flashs, porém nunca investi neste meu encantamento. Até que, a partir do meu envolvimento com arteterapia, resolvi apostar em um curso de fotografia básica e em uma oficina de fotografia e literatura (ministrados por Bella Valle, aqui do 7). Foi um momento muito bonito, instigante, pessoal e profissionalmente. E nem sabia o quanto.
Durante os cursos, me encantei pela técnica do lightpainting, que foi o mote para o projeto de conclusão da minha especialização. Era preciso facilitar um grupo arteterapêutico. Eu e meu parceiro, Moa Lago, escolhemos um grupo masculino, com mais de 40 anos de idade, e que tinha uma característica peculiar: detentos de um sistema prisional da Região Metropolitana de Recife. Resolvemos levar o lightpainting para dentro das grades do presídio. Não imaginávamos que o grupo iria se encantar da mesma forma.
“Trouxe luz pra mim”. A frase de um dos participantes do grupo nos chamou a atenção, nos emocionou e foi título para um trabalho final apresentado no Congresso Nordestino de Arteterapia, no IMIP, em novembro do ano passado. Trilhamos um processo muito bonito, emocionante, com muito cuidado e respeito por parte de todos.
Foram encontros de, em média, três horas de duração, duas vezes por semana, por três meses e meio. O grupo iniciou com nove homens, mas, por diversas razões, da metade para o fim do processo contávamos com quatro participantes.
Iniciamos o encontro fazendo um momento de relaxamento. Levamos luzes de LED coloridas. Cada integrante escolheu uma cor, colocamos uma música, apagamos as luzes e nos movimentávamos pela sala, deixando aquele espaço branco, tão cheio de cores. Após esse momento, explicamos um pouco sobre a técnica, como funcionava e depois disso, pedimos para eles brincarem um pouco com as luzes e os movimentos, de forma livre, para se familiarizarem com o material. Não demorou muito. Cores, movimento e auto-imagens eram tudo o que aquele grupo precisava. Eles precisavam se ver se (re)construindo.
Nesse tempo, utilizamos diversos materiais e criamos tantos outros. E, assim, pudemos observar o crescimento, as transformações e a vida brotando naqueles quatro homens que chegaram ao nosso grupo com olhares tão sofridos e tantas mágoas presas.
Em alguns momentos, pedimos para que eles utilizassem as luzes para expressarem “como estou me sentindo?”. Uma palavra que os expressassem, um desenho, e, no final, uma imagem de proteção. As imagens foram feitas com muita emoção e disponibilidade. Aqueles homens com os corpos tão presos por tanto sofrimento se soltaram, dançaram, rodavam, para construir imagens tão significativas, com tantas histórias.
Ao final, o grupo concluiu que a técnica do lightpaintingtrouxe sentimentos de liberdade, de prosperidade, de esperança. Me baseando na teoria analítica junguiana para fundamentar a leitura das imagens e trabalhar o estágio, estudei os símbolos marcantes das imagens e da técnica, levando em conta, principalmente, os sentimentos e falas que os integrantes do grupo trouxeram.
Um dos integrantes finalizou com a seguinte frase:
“Atrás tem a escuridão. Precisamos seguir em frente, sem olhar pra trás. Dentro dos momento de tristeza, uma alegria (…)Luz pra mim lembra liberdade, infinito. Coisas boas. Me senti hoje num dos dias mais leves. Um dia inesquecível. Dia da luz. Trouxe luz pra mim. Estou leve e eletrizado.”
Numa interpretação sobre a luz, que é a essência da fotografia, Chevalier & Gheerbrant descrevem que “a luz simboliza o desabrochar de um ser pela sua elevação – ele se harmoniza nas alturas – enquanto que a obscuridade, o negro, simboliza um estado depressivo”. A luz é trazida, desde épocas mais remotas, como símbolo de liberdade, evolução, como o calor que origina a vida.
Além da luz que simboliza a liberdade, é importante lembrar o processo criativo como um processo de libertação. Podemos concluir, então, através da experiência relatada acima, que a atividade de Light Painting proporcionando um espaço e momento criativo, o grupo descreveu esse sentimento de liberdade, que, como vimos, faz parte do simbolismo de cada instrumento que foi utilizado: a luz e a criativadade.
O trabalho rende, até hoje, muitos frutos e desdobramentos belíssimos. Resolvemos revelar as imagens produzidas e trabalhar com tinta, em cima das imagens construídas com luzes. Nem o grupo nem nós, facilitadores, conseguíamos nos desprender do presente que a fotografia nos deu. As fotos reveladas se transformaram em personagens, paisagens, lugares, de um curta-metragem em stop motion, que produzimos nos encontros finais do estágio. A imagem de um rosto, por exemplo, foi transformada no rei, o protagonista de uma história real, de dor, de encontros e de renascimento.
A fotografia trouxe novas oportunidades de vida para aquele grupo, para nós facilitadores e, espero, para a arteterapia. Uma técnica um tanto desconhecida no meio arteterapêutico começou a fazer sentido e ser tão necessária para a promoção de vida, de saúde, de (re)nascimento.
A luz que pintou aqueles “corações dilacerados” (título de uma das imagens produzida durante a experiência) atravessou grades e invadiu um ambiente tão desumano, trouxe esperança, trouxe alegria, trouxe lágrimas, os mais diversos sentimentos, trouxe o desejo de (re)começar.
*Júlia Santos é psicóloga e mestre em Psicologia pela UFPE, especialista em Arteterapia, Linguagens Corporais pelo instituto Traços e técnica social de rua do Programa Atitude, do Governo do Estado de Pernambuco.
Que bom ver o lightpaiting servindo a causa tão nobre! Parabéns Júlia. O segredo está na luz!
Obrigada, Felipe! Fico bem feliz com o resultado do trabalho, tanto esteticamente quanto terapeuticamente! 🙂
Fotografia é razão para se viver, e ter a iniciativa de levá-la àqueles que pouca razão ainda tem de existir, é louvável. Palmas para você e parabéns para eles 😉
coisa linda! 😀 obrigada, meu amor! Falei para o grupo que o trabalho deles estava na internet, esses dias que tive la, e eles ficaram com os olhos repletos de lagrias felizes!
Julia, em 2009 e 2010, a moçada do Trotamundos Coletivo (na época eu ainda não fazia parte do coletivo) fez em Sergipe um projeto chamado Quem Faz a Foto? Eles trabalharam no primeiro projeto com o pessoal do Centro de Atendimento Psicossocial Jael Patrício (CAPS), incluindo pacientes, funcionários e gestores do setor da saúde na mesma turma, e, no segundo projeto, com a juventude do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) do bairro da Coroa do Meio, em Aracaju. Quando eu falei sobre esse seu texto com eles, todo mundo que fez o projeto leu e ficou emocionado com a sua experiência. Dividir essas práticas são importantes para vermos como a fotografia, na verdade, pode ser uma bela desculpa para aproximar pessoas, universos, confrontar reflexões. A moçada em Aracaju aprendeu muito com a vivência deles e agora você presenteia todo mundo com esse relato tão intenso e lindo! Muito bom sabermos dessas conexões. Se quiser trocar ideias, estamos aqui =)