“O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.”
Didi-Huberman
Quando resolvi escrever sobre a falta de visão e a fotografia, Ana Lira me trouxe um questionamento que mudou completamente o rumo do meu texto: o que é ver?
Uma pergunta aparantemente simples mas que me calou. No lugar de respostas, apenas mais perguntas. Em uma conversa rápida com alguns fotógrafos na redação, soltei essa pergunta no ar. Silêncio. Expressões de dúvidas. Assim como eu, todos ficaram inquietos, pensando, buscando respostas.
“Exercer o sentido da vista sobre“, “Olhar para“, “Presenciar, assistir a“, “Avistar; enxergar“, “Encontrar, achar, reconhecer“, “Observar, notar, advertir“, “Conhecer“. Essas são algumas definições que encontrei no dicionário para a palavra ver. Ainda assim, tudo isso me parece muito vago. Muito vazio. Ver, para mim, vai além do ato físico, vai além do olhar propriamente dito. Ver chega bem mais próximo do sentir. E é justamente esse sentir que está presente no ver, que me motivou a escrever um pouco sobre a falta de visão, a fotografia e a escuridão.
De uns tempos para cá, comecei a me questionar porque ao mesmo tempo que valorizamos tanto a visão e a imagem, nos refugiamos em vários momentos na escuridão? Nossos olhos nem sempre estão dispostos a enxergar, porque nós nem sempre estamos abertos para perceber o que vemos. A vista, num sentido amplo, cansa e encontramos na escuridão um respiro, um alívio. Talvez por isso, para mim, como fotógrafa, responder o que é ver não tenha sido tão simples.
No filme “Janela da Alma“ de João Jardim e Walter Carvalho, Evgen Bavcar, fala justamente dessa dificuldade que temos em ver e em sentir o que vemos de uma maneira mais profunda. O ato de ver se esvai. O excesso de informação leva à falta de percepção. É como se não suportássemos a sobrecarga de imagens e nos tornássemos um pouco cegos. Segundo Nelsson Brissac, essa “cegueira” é uma das mais marcantes condições contemporâneas. Quando há muito a ver, nada se pode ver. São tantas imagens oferecidas simultaneamente, que não conseguimos ver nada.
Quando paramos o olhar em algo mais profundamente temos uma leve sensação de suspensão do tempo. Parece que tudo desfoca ao redor mas, quando nos damos conta, já estamos a procura outra imagem para o nosso olhar. É como se não nos permitíssemos se entregar a uma imagem só. Estamos vendo, mas não temos consciência do que vemos.
Volto para a escuridão para falar sobre o ver e o fotografar.
“A visão não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro a fissão do Ser, ao término da qual somente me fecho sobre mim. (…) Qualquer coisa visual, por mais individuada que seja, funciona também como dimensão, porque se dá como resultado de uma deiscência do Ser. Isso quer dizer, finalmente, que o próprio do visível é ter um forro de invisível em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.” Merleau-Ponty
Bavcar diz que fotografa o que imagina. Que cria uma imagem mental. Que mesmo na escuridão percebe, sente e vive o mundo com intensidade. A falta de visão torna seu trabalho um eterno exercício de descoberta, nada é certo ou previsível no que ele fotografa. Não existe controle, não existe amarras. A maneira a como ele constrói a representação interior de cada objeto, de cada pessoa por meio de suas fotografias está diretamente relacionado ao seu repertório imagético e a sua memória. Uma fotografia que se equilibra em uma linha tênue que separa o ver e o pensar, como um convite para um olhar mais calmo, para alcançar além do óbvio em que tudo se nivela.

Autorretrato | Evgen Bavcar

Evgen Bavcar

Evgen Bavcar
A fotografias de Bavcar, seus pensamentos e questionamentos sobre o olhar, me fizeram experimentar fechar os olhos. Respirar fundo. Sentir uma idéia se transformar em imagem no pensamento, lentamente. Ativar a percepção no ato de não ver. E enfim, fotografar, no escuro, no imprevisível, se entregar as incertezas e se libertar da ansiedade da previsão de uma imagem. Um exercício simples, que tem feito parte das dinâmicas de workshops como os de Miguel Chikaoka, Cláudio Feijó, que estimulam o descondicionamento do olhar, ampliando a percepção de fotografia e da fotografia enquanto parte da pessoa. É só vendar os olhos, se deixar levar numa experiência sensorial para enxergar o mundo além da imagem estática.
Sinto a escuridão, não apenas como a ausência de luz, e sim como uma especie de repouso necessário para que possamos de fato ver. Lembro quando li “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, um dos trechos que mais me marcou falava justamente do obscuro, do infinito que existe dentro de nós quando fechamos os olhos (e eu nem sonhava em ser fotógrafa na época). Assim como Bavcar cria na escuridão, também acredito que nós, que enxergamos, podemos e deveríamos, fechar mais os olhos para experimentar o invisível, sentir a falta da luz e buscar caminhos menos evidentes para o nosso olhar.
“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.“
Manoel de Barros
na escuridão as pupilas abrem mais… =)
🙂
“Estar consciente do que se olha”, foi essa a minha impressão imediata em resposta à sua pergunta: o que é ver? Concordo que se aproxima do sentir, pq estar consciente é uma exigência do viver o momento presente. E é nesse tempo de sentir, antes que os sentidos nos desviem, que deveríamos permanecer, olhar e ver. E então ver torna-se um estado de consciência, mesmo de olhos fechados… Janela da alma é uma poesia, lembro que quando assisti quis ser meio miope pra poder ver diferente mais vezes. Mas o bom é que a gente pode fazer isso fotografando… E lembro com carinho de uma oficina, há 15 anos, com Miguel Chikaoka e aquela caixinha preta linda, feita de cartolina e papel manteiga. Fiquei encantada com ele! Um mestre! Bjs
Que lindo, Cris.. Penso que a consciência é justamente o enche o “ver” de sentimento.. e é engraçado quando a gente se dar conta que em vários momentos da vida da gente (de tristeza, prazer, medo, alegria) fechamos os olhos para se sentir mais consciente do que estamos vivendo… o escuro é infinito!! Brigada por trazer um pouquinhos dos teus sentimentos aqui pro 7, viu?