O Fest Foto Poa esteve repleto de projetos e vivências fotográficas que se efetivaram no campo da imagem de maneira independente. Estas experiências se articularam desde trabalhos freelancers para cobertura de conflitos, como no cotidiano de , até na estruturação de agências de imagens, como a Vix, Ágil e Imagens do Povo, cujas existências alteraram modelos de percepção do papel destas iniciativas no campo da fotografia de notícia.
Participar dos debates com todos eles me mostraram o quanto é importante conhecer cada vez mais sobre a trajetória da fotografia de notícia no país. Eles nos apontam elementos para compreender o que conseguimos mudar e manter, hoje, e em que áreas estamos precisando sensivelmente rever caminhos de atuação.
O valor da fotografia
O depoimento de André Liohn, no Encontros com o Autor, pode ser considerado um dos mais complexos de todas as edições do Fest Foto Poa. Eu nem vou tentar dar conta, neste texto, de todas as ideias que perpassaram a minha mente, enquanto ele falava, porque é tudo muito delicado.
Liohn sobreviveu a vários conflitos, desde que era criança no Brasil. Em seguida foi morar na Noruega. Quando a fotografia apontou em sua vida, ele migrou para uma comunidade de jovens viciados em heroína com o intuito de fotografar o cotidiano deles. Liohn contou que suas vivências anteriores ajudaram-no a conviver com o grupo e compreender os dilemas deles. Essa documentação interessou o programa de saúde da prefeitura da cidade onde residia e eles começou a receber para continuar fotografando a temática. Depois deste trabalho, iniciou uma série de viagens que o levaram para a rotina de correspondente freelancer de guerra em que atua até hoje.

Kadão Chaves pergunta a Liohn se ele já decidiu parar. Liohn responde: “a questão não é decidir quando a gente vai parar, mas se perguntar se a gente quer ir novamente” | Foto: Ana Lira
Saber disso é suficiente para me fazer refletir, mais uma vez, sobre muitas coisas que pensava sobre reportagem de guerra e a convivência nas regiões afetadas por ela. Sempre me perguntei porque havia essa supervalorização dos repórteres de conflito. Me questionava até que ponto essa valorização excessiva incentivava a ida para o front de diversos fotógrafos muito mais interessados no status que podiam conseguir do que realmente envolvidos com o dilema das pessoas e as histórias que as rodeavam.
Então, depois de ver vários depoimentos, compreendi que essa valorização era uma construção realmente nossa: os fotógrafos que levavam o trabalho a sério, na verdade, se sentiam desvalorizados e desprotegidos em diversas situações. Eles também ponderavam sobre a presença de pessoas pouco comprometidas no cotidiano dos conflitos. Fui conhecendo trabalhos de diversos repórteres fotográficos, entre eles o de Mauricio Lima, que não pôde estar em Porto Alegre dividindo a mesa com André Liohn no festival.
Diante desses trabalhos, mais uma vez, repensei a função de um repórter fotográfico. Eu não acredito que podemos falar pelos outros, mas se um fotógrafo tem uma reflexão diferente sobre o contexto e as sutilezas que envolvem o que ele está cobrindo, e consegue colocar em sua fotografia, é possível ter outras perspectivas. Assim, eu passei a olhar com mais carinho e cautela para este tipo de trabalho.
Então, no começo dos conflitos da Primavera Árabe no Egito, perdi um dos meus amigos. Ele foi atingido por uma pedrada na cabeça, enquanto tomava um café na rua, depois do expediente no jornal. Tinha 22 anos e era um repórter fotográfico excelente. Senti minhas estruturas balançarem de novo e precisei reconfigurar uma série de questões internamente. Cheguei à conclusão que tão importante quanto refletirmos sobre motivações de ir para a guerra é pensar em alternativas reais para resolver e/ou evitar novos conflitos.
Não consigo dissociar uma coisa da outra e não pensei diferente enquanto ouvia André Liohn falar como a fotografia se inseriu em sua rotina e em como ele começou a se articular para estar presente nos conflitos que desejava cobrir. Ouvir com atenção quando ele conta que foi com um amigo para a Somália, voltou, preparou novas viagens e transformou essas experiências em redes de informações para conseguir transitar, sobreviver e publicar as narrativas que produz é apenas uma parte do enredo que me interessa nesse debate.
A outra parte é olhar para suas fotografias e vídeos com calma e observar o quanto da liberdade de pensamento e trânsito, que ele demonstra em seus relatos, está presente nessa produção. É isso que vai me dizer que debates ele está levantando acerca dos conflitos e se seu desejo de ruptura, desse esquema que alimenta as guerras, também permeia suas reportagens fotográficas. Essa, talvez, para mim seja a questão central. O quanto um repórter consegue expressar independência e de que maneira a experiência coletiva da guerra pode impulsionar uma fotografia que incentive a quebra dos circuitos que alimentam os conflitos.
Por isso não fiquei chocada quando ele respondeu a Nadja Peregrino dizendo: “a fotografia não vale nada. O que vale é essa conversa que estamos tendo sobre essas fotografias”. Eu acredito que a fotografia vale bastante, porém, não discordo que dialogar sobre a própria guerra e as dinâmicas que a efetivam como formato de solução de posse de territórios, hoje, são mais importantes para mim. Discutir se uma fotografia de conflito é interessante passa menos pelo quanto ela é “incrível” ou pelo formato com que ela foi feita e mais pela quantidade de elementos oferecidos para ajudar a resolver os dilemas apresentados.
Em respostas aos debates, Liohn dizia: “alguém me perguntou: “André, você acha que vale a pena eu ir para a guerra?”. Sabe o que me deixa chateado, é que ninguém chega e me pergunta: “você acha que se eu fotografar certas histórias, eu posso desmantelar o sistema desse governo? É nisso que tem que pensar, em como transformar, e não se vale a pena ir apenas para fotografar. Se não for para pensar em como modificar, é melhor não ir”.
Deste modo, se eu tivesse que selecionar o que de mais importante Liohn trouxe nas discussões sobre experiências independentes em sua fala, eu diria que foi parte do seu desejo de nos expulsar de uma zona de conforto em nome de um novo modelo de organização. O incentivo para que a gente olhe outras saídas possíveis para nossos próprios conflitos, antes que a guerra falsamente implícita (ou seriam as guerras?) que permeia o Brasil se aprofunde ainda mais. E eu creio que outros debates no próprio Fest Foto Poa trouxeram luzes sobre estas questões…
Imagens do Povo
O Imagens do Povo para mim sintetiza um desses processos de ruptura que propõem um novo modelo de organização. Estabelecer em comunidades populares uma escola de fotógrafos que possam questionar o sentido (de onde para onde, mesmo?) da violência, pensar em novos enredos para os moradores das favelas, valorizar modelos de formação continuada construídos em parcerias com outros setores e devolver questões para o meio social é um dos caminhos que eu realmente acredito atualmente.

Ratão Diniz, Fabio Caffé, Dante Gastaldoni e Bira Carvalho dialogam sobre os resultados da agência Imagens do Povo | Foto: Ana Lira
Não é apenas porque o programa formou uma equipe incrível de fotógrafos e uma das melhores agências de imagens do país, mas porque junto com esses resultados mais visíveis veio um debate intenso sobre os processos de ocupação das cidades, legitimação de territórios e discursos de poder, histórico de atribuição de direitos e deveres sociais, (des) respeito aos direitos humanos, relação com o outro e as maneiras como se escolhem quem deve receber determinados produtos e serviços na dinâmica de estruturação dos municípios. Eles interferem nessas questões diretamente com seus trabalhos e debates.
Assim, ver Ratão Diniz, Elisângela Leite, Léo Lima, Fábio Caffé e Bira Carvalho falando de suas experiências com a fotografia, como entraram na Escola de Fotógrafos Populares, se organizaram em coletivos (a própria agência Imagens de Povo e projetos paralelos como o Favela em Foco) e como representam os demais colegas que não puderam estar presentes no evento é, na verdade, encontrar um referencial de mudança. Uma iniciativa que olha nos olhos, segura a perspectiva e não permite ser vista de cima para baixo. Isso muda tudo.

Léo Lima e Elisângela Leite dialogam sobre suas experiências na cobertura do cotidiano do Rio de Janeiro. Ele também faz o Favela em Foco. Ela também atua no jornal Maré de Notícias. | Foto: Ana Lira
Muda e permite abrir caminho para reflexões, a exemplo do processo de requalificação dos espaços populares na projeto das novas cidades brasileiras. Uma temática que, como bem disse Léo Lima em sua fala, se mostra especial, em um momento em que o Brasil deseja realizar “a melhor Copa do Mundo e a melhor Olimpíada de todos dos tempos”. Um dos papéis que eles querem desempenhar é no debate sobre como as ações de transformação do espaço urbano estão sendo conduzidas, no Rio de Janeiro, sem diálogo mais próximo com a população afetada.
Estas discussões via imagens e ações articuladas viram reportagens e se desdobram em sites, mostras, projeções, exposições dentro e fora do país e em publicações, como o livro Imagens do Povo, que eles lançaram recentemente no Rio de Janeiro e agora no Fest Foto Poa. Iniciativas que não ficam no lamento e nem ruminando na mente esperando o momento ideal. Saem do desejo e vão para a rua, para a internet e para as parcerias, que é onde encontram caminhos de realização e questionam: porque não estamos juntos?
Liohn e Diniz são OS CARAS!
Incrível! Texto e imagens.