Sim, olharia para sempre essa fotografia de Jair Lanes**, meus olhos não conseguem sentir essas imagens de outra forma a não ser fotograficamente.
A sensação que tenho é como se a imagem se movimentasse acompanhando o passeio dos meus olhos. É como se a fotografia ali, inerente, criasse vida, como se meus olhos pedissem mais, e a fotografia fosse reagindo e se movimentando a cada vibração e impulso do meu olhar. E como meus olhos vibram!
São 17 minutos de pura falta de ar. O silêncio proporciona uma entrega muito visceral, muito perturbadora. Mexe tanto, que em um momento aquele dorso do cavalo, passou a ser a prolongação de meu corpo. Cada movimento ali, de alguma forma, também vibrava em mim. Como em uma espécie de transe, em que seu corpo já não é mais seu, e só lhe resta sentir a energia.
E depois que recupero o ar, me dou conta que poucas fotografias de mulheres me fizeram ver o feminino com tamanha bravura e força como eu percebi nesse cavalo branco. A cadência dos movimentos, a respiração, o próprio olhar… existe uma mulher muito forte ali presente. Ou talvez, esse vídeo tenha mexido de uma forma tão intensa comigo a ponto de despertar os instintos mais orgânicos. E tudo isso me remete a uma passagem de um dos livros mais incríveis e essenciais que já li, Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés:
“E então, o que é a Mulher Selvagem? Do ponto de vista da psicologia arquetípica, bem como pela tradição das contadoras de histórias, ela é a alma feminina. No entanto, ela é mais do que isso. Ela é a origem do feminino. Ela é tudo o que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto – ela é a base. Cada uma de nós recebe uma célula refulgente que contém todos os instintos e conhecimentos necessários para a nossa vida.
Ela é a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a intuição, a vidência, é a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a continuarem a ser multilíngües: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão, da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pêlo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la.
Ela é idéias, sentimentos, impulsos e recordações. Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Ela é o cheiro da lama boa e a perna traseira da raposa. Os pássaros que nos contam segredos pertencem a ela. Ela é a voz que diz, “Por aqui, por aqui”.
Ela é quem se enfurece diante da injustiça. Ela e a que gira como uma roda enorme. É a criadora dos ciclos. É à procura dela que saímos de casa. É à procura dela que voltamos para casa. Ela é a raiz estrumada de todas as mulheres. Ela é tudo que nos mantém vivas quando achamos que chegamos ao fim. Ela é a geradora de acordos e idéias pequenas e incipientes. Ela é a mente que nos concebe; nós somos os seus Pensamentos.”
Esse cavalo para mim é o transe de uma mulher selvagem. E eu olharia para sempre, sempre..
** Esse video foi feito pelo coletivo Duo2, um registro da série fotográfica Sagitarius de Jair Lanes, a convite da revista Amarello.