Diário de Bordo – Pequeno Encontro da Fotografia – Diálogos Ampliados

Uma das coisas mais bacanas de ter um encontro realizado em uma cidade que permite deslocamentos, sem necessidade de automóvel, é abrir espaço para as pessoas acessarem a programação enquanto estão a caminho de suas atividades cotidianas. Depois de ver os alunos de uma escola pública de Recife visitarem alguma coisa nas ruas ao redor da Praça do Carmo e do Amparo, diversos outros estudantes do Sítio Histórico de Olinda procuraram o que estava ocorrendo no entorno e foram descobrindo as exposições.

Eu, que sempre fico observando como as pessoas reagem às várias experiências visuais que são exibidas nesses circuitos, achei interessante perceber as novas descobertas, os sustos, as inquietações que as mostras foram, aos poucos, provocando naqueles jovens. Melhor ainda, é que eles puderam encontrar com os próprios fotógrafos,em alguns momentos, e conversar a respeito de suas impressões. Acho que o formato do Pequeno Encontro da Fotografia estende a experiência de diálogo dos campos artístico e profissional para o ambiente público e proporciona uma troca muito bacana entre as pessoas da cidade.

Exposições montadas na Praça do Carmo atraem atenção das pessoas ao longo do dia | Foto: Ana Lira

Enquanto as atividades ocorriam, muita gente comentava como foi bacana a escolha do local e a opção por realizar um evento dentro de uma lona de circo montada no pátio da Praça do Carmo. Ontem mesmo, durante o nosso diálogo, foi incrível e star na mesa de debates e ver as pessoas correndo na pista, trazendo os filhos para brincar, fazendo aula de ioga e, neste processo, interagindo com o evento. Uns paravam para ver as mostras dos grupos Fotolibras e Imaginautas e o projeto Munganga, que estavam distribuídas na praça. Outros sentavam para ouvir os debates e ver as projeções. Em alguns momentos, eu fiquei meio em estado de graça vendo essas coisas bonitas que a fotografia proporciona.

Ontem, as oficinas encerraram as atividades. Eu pude ver um pouco das discussões com a turma do Media Sana, Comunicação à Mão, que estava sendo acompanhada por Queops Negão. Discutir a linha política de um projeto de vídeo, antes de editar, sempre envolve ter uma escuta afinada dos entrevistados e pensar nos desdobramentos proporcionados pelo debate. O desta oficina foi bem rico, porque havia pessoas com experiências distintas – pesquisadores, integrantes de coletivos midiáticos, estudantes, artistas visuais, entre outros – que se reuniram para debater as possibilidades de usos das ferramentas de produção de comunicação que temos em mãos, mas que são subutilizadas. Além disso, a temática da reciclagem de conteúdo visual e textual também estava em discussão no curso.

Debates entre a turma da oficina Comunicação à Mão, que nos últimos três dias produziu pelo entorno do Sítio Histórico de Olinda | Foto: Ana Lira

Percepção do Olhar, a oficina de Ricardo Peixoto, proporcionou momentos interessantes para quem estava dentro e fora do curso. Enquanto a turma experimentava novas vivências sensoriais, em sala de aula, e expressava isso de forma veemente em sons e articulações corpóreas, o pessoal que passava do lado de fora questionava ao fiteiro, que comercializava doces e outras guloseimas do lado de fora, o estava acontecendo no curso. O fiteiro entregava suas impressões “é terapia, meu filho, é terapia”. A “terapia” visual de Peixoto conquistou a turma e despertou interesse dos participantes das demais oficinas, que esperam edições em Pernambuco em breve.

Sequeira, por sua vez, dedicou os últimos momentos do curso Criação em Arte Contemporânea e Fotografia para conhecer os projetos e as discussões elaboradas pelos participantes. A turma estava apaixonada pelas discussões e comentava bastante nos bastidores o que a oficina estava agregando em suas reflexões. Hoje, Alexandre inicia as atividades de leitura de portfólio e muitos dos fotógrafos e artistas visuais que vão mostrar trabalhos estão muito ansiosos com este encontro com ele. As vindas dele para a região sempre geram uma série de boas expectativas.

Gabriel divide o processo criativo do Media Sana | Foto: Ana Lira

À noite foi o momento do diálogo entre os coletivos e a palestra com o mestre Eustáquio Neves. Pela primeira vez, eu me vi em uma situação oposta em um festival. Deixei de ser a participante com meus cadernos de anotações e gravador, documentando o conhecimento produzido em casa mesa redonda, para estar nela colocando nossas ideias no circuito e esperando o debate com as pessoas. O diálogo que eu participei junto com meus companheiros de Trotamundos Coletivo se chamou Intermídias em Coletivos Fotográficos. Dividimos a mesa com o Media Sana e com a moçada do Santo Ateliê, ambos de Pernambuco.

O Media Sana discutiu o papel da reciclagem de conteúdo de áudio, de texto e visual na produção de um novo discurso político e social. Em geral, eles usam trechos de programas, recortes de jornal e diversos outros conteúdos de comunicação para criar os audiovisuais que eles mostram e articulam ao vivo em suas apresentações. Eles vêm da área de música e usam o conhecimento e discussões que envolvem montagem e articulação de novas propostas das sonoridades para elaborar os seus trabalhos. Eles mostraram alguns projetos de apresentações ao vivo e deixaram um vídeo maior para ser exibido na projeção final, que ocorreu após a palestra de Eustáquio Neves.

Fotografando os meus companheiros de mesa | Renato Spencer debate o trabalho de experimentação do Santo Ateliê | Foto: Ana Lira

Renato Spencer, do Santo Ateliê, apresentou uma experiência muito instigante: eles desenvolveram um projeto em que adaptaram um Iphone no ampliador fotográfico e, ao invés de usar a luz do ampliador, eles utilizaram a iluminação do telefone para sensibilizar o papel. Em seguida, a revelação foi feita com uma mistura de café solúvel e vitamina C e a finalização agregou uma viragem de selênio. O resultado é muito bacana e os meninos filmaram todo o processo, que se transformou no documentário bem humorado que eles mostraram na noite de ontem. O projeto foi acompanhado por Mila Targino, que provocou a discussão do estudo dos meninos.

Mila, por sinal, foi bem importante nessas discussões realizadas pelos coletivos na noite de ontem. Ela estudou o perfil de cada coletivo e propôs as discussões que levamos para a mesa, a partir do recorte de debates do encontro. A experiência do Trotamundos foi mostrada por meio da ocupação de espaços de mídia que realizamos. O tempo de 15 minutos curto para esmiuçar a experiência e eu prometi a Mila que levantaríamos as questões nesse tempo e precisei cumprir. Então, obviamente, algumas coisas ficaram de fora e conversas foram surgindo depois do debate.

O Trotamundos, há uns dois anos, se viu inquietado por um dos integrantes, Zak Moreira, com a proposta de ser um coletivo multimídia e realizar intervenções que misturassem vídeo e fotografia. Durante estas experiências, a gente percebeu que se a gente quisesse enveredar pelo intercâmbio entre essas duas linguagens, nós teríamos que estudar as dinâmicas que envolviam a produção vídeo, uma vez que, como eu já disse em outros textos aqui no 7, linguagens diferentes proporcionam experiências narrativas distintas e atuar nessa interface não é brincadeira.

Eu levei a câmera para a mesa como prometido e fotografei os participantes do debate | Foto: Ana Lira

Então, nos vimos diante de uma questão fundamental: como o nosso discurso se processa em mídias distintas? O que significa produzir uma narrativa acerca do que produzimos para rádio, vídeo, internet? O que é ocupar com um trabalho a parede de uma galeria, um convite de exposição ou as páginas de uma revista? Como podemos aproveitar os conteúdos que produzimos nessas diversas plataformas midiáticas, respeitando os seus perfis e propondo diálogos? Passamos a conversar sobre isso pensando o contexto da cidade de Aracaju e as necessidades da fotografia local com os olhares e outros sentidos atentos à produção que vinha sendo desenvolvida fora de Sergipe.

Isso se desdobrou nas produção de conteúdo do nosso blog, nas exposições e parcerias que articulamos, ao longo destes dois últimos anos de atividades. Mila disse que fica impressionada com o que conseguimos produzir em termos de ocupação e sedimentação do nosso discurso coletivo. Este semestre mesmo fomos convidados pelo projeto Onda Cidadã para discutir produção cultura, na área de fotografia, por causa de como usamos no espaço virtual do Trotamundos. O que eu sinto, porém, é que há outros coletivos que desenvolvem isso muito bem, como o Garapa. Eles sabem utilizar super bem as plataformas para difundir ideias e admiro bastante esta iniciativa.

Depois do diálogo com este coletivo, que envolveu um debate enorme sobre linguagem, criação, posicionamento político e articulação, nos voltamos integralmente para a experiência de Eustáquio Neves. Encontrar o fotógrafo pessoalmente é um sonho realizado, confesso publicamente. Sempre que olho para o trabalho dele, minhas fronteiras criativas estremecem. Eu me vejo impelida a romper com uma série de práticas e fico dias perturbada com essas ideias. Então, como no conto Amor, de Clarice Lispector, cuja personagem também se chama Ana, a rotina me engole mais uma vez e consegue com suas forças podantes neutralizar meus instintos fotográfico-libertários.

Eustáquio Neves mostrou aspectos de uma trajetória repleta de intensidade no processo criativo | Foto: Ana Lira

Por isso, ouvir e ver Eustáquio Neves, pessoalmente, foi tão importante. A noção de impossibilidade, que sempre ronda nossos processos criativos, simplesmente vai embora quando ele conversa sobre sua dinâmica de trabalho e crenças. Mistificamos demais a criação fotográfica e criamos barreiras intransponíveis, enquanto ele decidiu durante toda a sua trajetória, que ele também podia produzir um trabalho rico e instigante. Produziu imagens fortes sobre temáticas que envolviam origem e ancestralidade, a questão de como o corpo feminino é apropriado pelo meio social, o cotidiano de intensas transformações de cidades, como Madri, que durante um trabalho de residência se mostrou para ele como um sinônimo de construção.

Neves contou durante a mesa que uma de suas grandes inspirações é a obra de Arthur Bispo do Rosário. Outra referência bem importante para ele é o olhar de Win Wenders. Estas duas figuras emblemáticas para a arte mundial levaram questões que Eustáquio resolveu dentro de si e com a sua obra nas horas a fio em que passou (e passa!) no laboratório fotográfico. A imagem final – a sua fotografia – não é aquela que aparece no negativo, mas o resultado de todo o processo de sobreposição, intervenção e rearticulação das imagens que fotografa. Há alguns anos, por conta da digitalização do mercado, Eustáquio desenvolve todo o processo analogicamente e quando a matriz da imagem fica pronta, ele escaneia para dar uma saída digital.

O resto da sua dinâmica de criação continua a mesma, exceto pela ansiedade de produzir, que ele “curou” depois de um diálogo com um amigo que disse que fotograva somente quanto sentia realmente necessidade de discutir alguma coisa. Ele também conversou sobre as decisões que tomou ao longo da vida para investir na trajetória como fotógrafo, como a criação de dois fotógrafos fictícios, que eram ele mesmo, e cuja produção era feita dentro de um padrão mais “tradicional de fotografia” com o intuito de pagar as contas rotineiras e o investimento em novas pesquisas laboratoriais, preservando a relação dele com seu trabalho autoral.

Ricardo Peixoto e Gleideselma acompanharam os debates com Eustáquio Neves. GleideSelma foi uma das fundadoras da Galeria Observatório Fotográfico, que trouxe Eustáquio para diversos cursos, na década de 1990, em Recife | Foto: Ana Lira

Outros temas que apareceram no debate com Eustáquio Neves foram: a relação com o mercado de arte, as premiações, as inquietações envolvendo seu processo fotográfico, a preocupação dele com o destino e desdobramento de suas obras, entre outros. Um momento de muita delicadeza e abertura no Pequeno Encontro da Fotografia. Encerrados os debates, o pessoal exibiu os projetos dos três coletivos que participaram da mesa anterior, enquanto os participantes dialogavam com Eustáquio nos bastidores. A moçada do Santo Ateliê aproveitou para mostrar as imagens produzidas na experiência relatada na mesa e dialogar com Neves sobre outros caminhos de produção de imagem.

O resto da noite foi marcada pela confraternização que sempre ocorre nos encontros fotográficos. As do Pequeno Encontro estão sendo feitas nas comedorias que receberam as exposições. Em cada dia do evento, uma comedoria é contemplada com a visita dos participantes, que também aproveitam para dialogar com o fotógrafo que está com a mostra no local. Quem nos recebeu, neste terceiro dia de encontro, foi Iezu Kaeru, que estava com a expo Outro Rio na Comedoria Atelier Lautréamont.

Ele também esteve presente na noite anterior na abertura da exposição Comida em Construção, de Rafael Medeiros e Leandro Ricardo, que ocorreu na Fuji Temakeria, em Olinda, e que propõe uma linguagem bem diferente para a fotografia de gastronomia. Encerramos a noite com a energia boa de Paula Sampaio, a visita instigada de Ratão Diniz e o carinho de Ronaldo Entler, que chegaram ao evento. Sampaio e Eustáquio Neves seguem, no próximo domingo, para um encontro fotográfico que será realizado na Paraíba. O diálogo continua se espalhando…

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