O clima em Parati ainda está frio, mas a cidade está cada vez mais aquecida: a cada segundo chegam mais fotógrafos e interessados em fotografia. As ruas se tornam preenchidas por pessoas de todos os lugares, muitas carregando uma câmera a tiracolo. E muitos fotógrafos famosos. Paraty respira fotografia.
Este segundo dia foi bem puxado, uma entrevista atrás da outra, e mal sai dos arredores da Casa da Cultura. As filas de espera sempre grandes e o auditório sempre cheio. Quis dar uma escapada para ver exposições, mas não consegui, pois preferi dar um pulo na Casa Nikon, onde está instalada a livraria do evento, e dar uma olhada nas fotos que serão leiloadas. Hoje prometo que registro melhor as ruas e todas as intervenções que acontecem nelas. Vou tentar dar um pulo também em alguma oficina. São muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, que fica impossível acompanhar tudo.
A sensação que se tem depois de um dia cheio de reflexões é a de que a cabeça não vai dar conta de processar todas as questões levantadas nos debates provocados durante as entrevistas. Só de pensar de que foi só o primeiro dia de maratona propriamente dita, a vontade é de dar um respiro e gritar “quero mais!”. Tentarei ser o máximo sucinta possível, pois poderia escrever um #diálogo inteiro para cada mesa.
A primeira delas foi ainda pela manhã. Para discutir os diálogos entre a fotografia e literatura, cinema e arte, foram convidados o professor, crítico e curador Agnaldo Farias, o editor da revista Zum e coordenador da área de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles Thyago Nogueira e o fotógrafo cineasta Jorge Bodanzki. Thyago começou pontuando sobre a própria Zum, que traz espaços para esses diálogos entre texto e foto. Ele citou os convites que são feitos para alguns escritores escreverem sobre o trabalho de fotógrafos, que resulta em materiais riquíssimos, como os textos de Cuenca sobre Castilho e de Carvalho sobre Yashiyuki. Nogueira fala também do trabalho de alguns fotógrafos que, em suas próprias imagens, mesclam linguagens: Thomas Demand, que fotografa minuciosas maquetes de papel feitas por ele, e Jeff Wall, que carrega seu trabalho de influências das artes plásticas, do cinema e da literatura. O editor lembra que muitos fotógrafos preocupados com a questão da narrativa, do antes e depois, são bastante influenciados pela seqüencialidade cinematográfica, que conta uma história. Porém, na foto, a narrativa é recriada por quem a vê, todo documento recebe uma carga de interpretação de quem o lê.
Já Bodanzki contou mais sobre o seu percurso pessoal, quando começou a trabalhar com fotografia por acaso, em Brasília, onde era estudante de arquitetura na UnB. Com o golpe militar, voltou a São Paulo, onde entrou para a equipe do Jornal da Tarde como repórter fotográfico. Depois, ganhou uma bolsa para estudar cinema na Alemanha e se tornou diretor de fotografia, enquanto ainda fazia frilas para clientes como a Revista Realidade. Resolveu virar cineasta quando decidiu fazer um filme que contasse a história da estrada Belém-Brasília, a partir da perspectiva de prostitutas e motoristas de caminhão. Quando o projeto saiu, a estrada já estava quase pronta e o filme foi transferido para a Transamazônica, que começava a ser construída. A história resultou no filme “Iracema, uma transamazônica”. Depois disso, não parou mais de fazer filmes, porém, recentemente, após ser entrevistado para a Zum sobre seu acervo fotográfico, diz que voltou a fotografar, graças a uma câmera que ele utilizava para filmar, mas que também fotografa (um desses modelos da Canon de câmeras DSLR que filmam). Por sinal, Bodanzki elogia as facilidades do digital: hoje, é fácil fazer, mostrar e distribuir imagens.
Agnaldo Farias deu uma verdadeira aula para os que estavam presentes. De cara, ele já começou questionando essas separações que se estabelecem entre as linguagens, pois para ele não faz sentido nenhum separar as coisas. Farias iniciou com um vídeo de David Claerbout, um artista belga. O vídeo é, na verdade, um slideshow de fotografias que mostram uma mesma cena vista de diversos ângulos e com diversos recortes de enquadramentos. São vários minutos de exploração imagética de um mesmo instante que formam um verdadeiro filme, a partir da captura de cerca de 15 mil fotos. O crítico explica que há uma infinitude dentro de um instante. Que é fácil falar de infinito para frente ou para trás, mas que é difícil percebermos as infinitas coisas que acontecem dentro de um único instante. A foto estanca o fluxo do tempo de alguma forma, porém este mesmo instante pode se abrir ao infinito. Nele, tudo está acontecendo. Assim, quando escolhemos apenas um ângulo para mostrar apenas uma fotografia, devemos nos perguntar “o que este olhar nos conta?”. Tudo interessa, mas apenas algumas coisas são escolhidas por determinados pontos de vista. Para discutir a questão, Farias traz referências no cinema, como os filmes Rashomon, do Kurosawa, Janela Indiscreta, do Hitchcock, e Blow Up, do Antonioni, e da literatura (Cortazar), e brinca dizendo que faz sentido pensar mal dos fotógrafos, porque eles sempre acham que o seu ponto de vista é o melhor. Se tudo é uma construção, como definir o que de fato é o real, o flagrante ou a verdade? Trabalhamos sempre na fronteira da linguagem.
Farias fala que algumas fotografias possuem vocação de filme e vice-versa, citando como exemplo a foto de Michael Wesely que registra a construção do MOMA, em NY, e foi feita em um clique só, que durou 1 ano e meio. Ele cita a literatura de Proust, sobre as demoradas vírgulas, que influenciam na respiração ao longo do texto. Cita também o livro Os Emigrantes, de W. G. Sebald, em que uma foto abre o texto de um capítulo, deixando a dúvida: esta imagem foi o gatilho para o texto? Ela já existia antes? Ela é uma mera ilustração? O texto é verídico, a foto é um documento real? Agnaldo cita que o livro “A insustentável leveza do ser”, de M. Kundera, surgiu de uma cena que o escritor observou na rua. Agnaldo também explora essa realidade do fotógrafo como narrador: “quem fotografa é um narrador e toda narrativa é em 1ª pessoa. Como eclipsar esse sujeito?”. Segundo ele, resolvemos essa angustia categorizando as coisas, como romance, ficção, documental, etc.
Farias também cita o trabalho de Jeff Wall, em paralelo com obras de Delacroix, Hokusai, Boticcelli e Van der Rohe, para analisar a questão “documento x dramatização”, dizendo que o artista é o produtor de imagens de algumas coisas, é o diretor da sua encenação. Para ele, não existe ficção e não existe realidade, e esse é um discurso que não leva a nada. É preciso ver as coisas por debaixo, analisar as capacidade de produção de sentido. “Ninguém pode medir o efeito de uma obra de arte em uma pessoa”, diz, tanto a curto como a longo prazo. É preciso deixar a arrogância de lado na hora de se colocar diante de uma obra de arte, pois ela sempre pode (e vai) falar alguma coisa. Farias, para deixar ainda mais completa sua colocação no evento, fala da importância da formação sobre imagens nas escolas, no intuito de estimular esse olhar sobre a produção de sentido: “os alunos nas escolas são dóceis, são ovelhas”, diz.
A segunda mesa foi uma entrevista de Claudi Carreras a Rodrigo Gomez Rovira. O chileno começou a falar de sua história a partir de uma foto de família feita por seu pai, em que sua mãe, ele e seus irmãos (e um desconhecido que passou na hora) aparecem ao lado do então presidente Salvador Allende. A sua história de vida emocionante envolveu a todos os presentes. “Me fiz chileno sem viver no Chile, através do discurso de outros, dos adultos, nas comunidades chilenas e latinas de exilados em Paris. Criei minha identidade a partir disso. Mas quando voltei, eu sabia de tudo, era aquilo mesmo, estava em casa. Vir foi muito importante para me dar conta de que realmente era chileno”, diz. Rovira veio de barco para o Chile, em uma viagem de 45 dias que fotografou e nos mostrou em imagens. Ele foi se distanciando aos poucos da Europa e chegando à América do Sul. Conta que tinha um radinho de pilha que sintonizava uma rádio em francês, passou um tempo muda, e depois começou a sintonizar em espanhol, e que tudo isso foi muito marcante.
Carreras perguntou a Rovira o que é fotografia para ele. A resposta: um cruzamento de tempos. “A imagem consegue reunir tempos distintos”. Presente, passado e segue adiante. Rodrigo mostrou também alguns retratos que fez na Bolívia, de mulheres e crianças de uma comunidade Queshua. Depois, falou sobre seu trabalho na produção do Festival Internacional de Fotografia de Valparaíso (FIFV) e da sua forte relação afetiva com a cidade. “Há um transtorno do tempo em Valparaíso”, diz, completando que é difícil fotografar cidades assim (como Parati também), pois as imagens já estão feitas por si só e pode ser uma cilada clicá-las.
Sobre o FIFV, ele conseguiu vender muito bem o peixe do festival. Fiquei incrivelmente encantada e com vontade de ir participar já no próximo. É um festival de criação fotográfica, de processos, tudo vai acontecendo ao longo da história. Há processos de construção fotográfica coletiva lindos, como uma câmera simples que viaja o mundo através das mãos de diversos fotógrafos que devem registrar sua viagem em 11 imagens e repassá-la a outro; ou como um livro composto por relatos sobre imagens e um próximo que será feito com imagens buscadas em arquivo a partir de relatos.
A próxima entrevista foi de Geórgia Quintas a Tiago Santana. Geórgia analisa o trabalho de Tiago como um documento como ação e troca social, como ponto de partida para um discurso, como uma escritura fotográfica. Santana concorda e diz que é na relação que se dá sua fotografia, que ele tenta contar histórias de maneira mais íntima e menos óbvia. “A fotografia parte do encontro”, diz o fotógrafo, arriscando concluir que, por isso, a fotografia é coletiva. Tiago conta um pouco do seu percurso e mostra imagens de seus trabalhos “Benditos”, “O chão de Graciliano”, “Brasil sem fronteiras” e “Patativa do Assaré”. Tiago apresenta sua trajetória sempre incluindo, além da produção das próprias fotos, a montagem da exposição e, principalmente, a transformação em livro. Segundo ele, seus ensaios são feitos para ser postos em livros. Sua paixão por esse formato se mostra na própria editora que mantém com sua irmã. Assim, Santana também contou um pouco sobre o processo de ser incluído na famosa e importantíssima coleção Photo Poche Societé, com o livro “Sertão”.
Tiago Santana também compartilhou sua atual paixão por fotografias panorâmicas – não de paisagens, mas de “paisagens humanas”. E falou um bocado sobre sua relação com o tempo, e do amadurecimento que vem com o mesmo, já que seus trabalhos levam anos sendo construídos antes de serem mostrados.
A última mesa do segundo dia foi uma entrevista de Cláudia Jaguaribe a Peter Funch. Funch passeou por vários trabalhos que fez. Desde um ensaio de retratos de pessoas com máscaras de proteção, passando por seu fascínio pela realidade fake e bizarra de Las Vegas, e chegando às suas construções do surreal, quando começou a fazer vários cliques de um mesmo ponto de vista de aviões sobrevoando uma praia. Em 2006, ele iniciou seu conhecido projeto “Babel Tales”, quando resolveu fazer uma forma diferente de street photography. Funch resolveu se posicionar na mesma esquina de Nova York por muito tempo, clicando as pessoas que passavam por ali. Ele faz dezenas de milhares de imagens de uma única esquina. Posteriormente, analisando as imagens que tem, o fotógrafo busca elementos em comum entre elas, para fazer suas sobreposições e formar uma única imagem ao final.
A princípio, Funch começou a observar as pessoas fumando e fez uma série só com elas. Depois, as pessoas vestidas de preto, depois de branco, depois as pessoas que olharam para a câmera no momento do clique, depois as pessoas que estavam falando ao celular, pessoas bocejando, com guarda-chuvas, com flores, chapéus, balões, pessoas correndo, fotografando, tomando sorvete, etc. São muitas imagens finais formadas por diversos cliques eleitos com características em comum. O resultado é às vezes cômico, mas bastante interessante. Jaguaribe conduziu a entrevista no sentido de questionar o valor documental das fotografias de Funch a ele mesmo. O fotógrafo diz que não interfere diretamente na encenação da imagem, não fala com as pessoas que passam nas ruas, não as interrompe, e que, de certa forma, isso faz com que suas imagens sejam uma espécie de documento: “elas estavam de fato passando por aquele mesmo local daquele mesmo jeito”. Funch, inclusive, retoma a ideia de “instante decisivo”, de Cartier-Bresson, afirmando que, no seu caso, há milhares de instantes decisivos seus, editados por ele mesmo. Se tudo é uma construção, é através desse conjunto de imagens que ele quer contar suas histórias. Para ele, não existe mais sentido em provar o real ou não hoje em dia. É tudo uma questão de processo, de “como” e de que história se quer contar. É uma visão poética.
Depois da palestra, houve projeções na tenda da matriz. Confesso que não consegui ficar por muito tempo, pois o cansaço e o frio me tomaram e me levaram logo para a cama quentinha do hotel. Neste terceiro dia, prometo ficar até mais tarde para contar mais histórias.