Diário de Bordo – Paraty em Foco 2012 – 3

Se na quinta-feira a cidade já estava aquecida com o movimento e a chegada de mais fotógrafos, na sexta, terceiro dia do evento, cada passo era uma esbarrada em alguém conhecido (ou a conhecer). E, finalmente, durante o dia, o sol foi mais generoso em nos aquecer, mas nada que nos fizesse dispensar o casaquinho, e que, à noite, não tivéssemos que dobrar a carga de roupas, para compensar um frio súbito.

A respeito da programação, consegui passear um pouco mais pela cidade e ver mais coisas do evento. Além das palestras e entrevistas, que precisam de mais textos escritos, trarei mais imagens do que palavras no final deste post.

A palestra da manhã foi sobre a “fotografia como documento”, mesmo tema do evento. Nela falaram o coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles (IMS) e especialista em conservação e preservação de acervos fotográficos Sérgio Burgi, o sociólogo, curador e coordenador da Casa da Imagem Henrique Siqueira e o pesquisador da Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional Joaquim Marçal. A mesa se focou na questão histórica da formação de acervo e na importância da documentação, catalogação e preservação do que eles chamam de “documentos fotográficos”. Burgi mostrou muitas fotos do século XIX e analisou a construção das imagens, destacando relações entre paisagem e paisagem humana, por exemplo. Foram imagens belíssimas e importantes para o registro das mudanças e fatos ocorridos no país, feitas por fotógrafos como Marc Ferrez e Flávio de Barros. Burgi falou que não se pode pensar a foto como documento sem considerar questões autorais, estéticas e formais, mas que é preciso focar também no seu valor histórico, jornalístico, documental.

Sergio Burgi e Joaquim Marçal aplaudem Henrique Siqueira | Foto: Bella Valle

Henrique Siqueira falou sobre a Casa da Imagem de São Paulo. Ele falou que o acervo da Casa foi pensado antes de se pensar a concepção do prédio, para que houvesse uma sintonia entre os dois. Na Casa não são apenas as documentações oficiais, institucionais e de obras do governo que ganham destaque, mas também aquelas que não estão cobertas na documentação oficial nem no fotojornalismo: realidades mais marginais e periféricas. De qualquer modo, Siqueira fez um passeio por várias imagens oficiais do acervo iconográfico municipal de São Paulo. Ao fim, ele destacou a importância das anotações, dos diários e das fichas catalográficas na restituição das informações sobre as fotografias e fez um apelo para que não deixássemos nossas imagens sem essas informações concretas das “lembranças do nosso tempo”: “O que queremos deixar para a geração futura?”

Já Joaquim Nassau focou sua fala no acervo da Biblioteca Nacional, principalmente naquele cujo núcleo ele coordena: o acervo de Dom Pedro II. Mas antes destacou a importância de um livro conhecido, mas nunca traduzido para português, na compreensão da fotografia como documento: “The Pencil of Nature”, de Henri Fox Talbot, o primeiro livro de fotografia da História. “É revisitando a história que a gente avança e entende o presente”, diz. Voltando ao acervo de Dom Pedro II, ele informou que se trata da maior coleção de fotografia construída por qualquer governante ao longo da História. São cerca de 25 mil imagens, intituladas de coleção Dona Teresa Cristina Maria (mulher do imperador), que foram doadas à Biblioteca Nacional (BN) em 1892 e ficaram inacessíveis por 100 anos, mas que agora está sendo completamente revitalizada (identificada, catalogada e conservada) e pode ser acessada. Várias imagens da coleção, inclusive, já saíram em livros e revistas A partir desse processo, a BN publicou um manual para catalogação, indexação e conservação de documentos fotográficos. A coleção foi reconhecida pela Unesco como Memória do Mundo e grande parte está digitalizada e disponível no site da BN. Nassau aproveitou para falar também da importância que é a preocupação com a preservação digital.

Nas perguntas do público, Martin Paar foi questionador: como vocês tem trabalhado este acervo em relação à fotografia contemporânea? As resposta tiraram um pouco o foco deste papel para as instituições e o colocaram nas mãos de revistas e livros. De qualquer forma, o IMS desenvolve muita coisa sobre fotografia contemporânea e a Casa da Imagem vai lançar um edital para a documentação urbana contemporâneas em bairros paulistanos em vias de desaparecimento. Já a BN não possui nenhuma ação específica para a fotografia contemporânea, além dos editais de pesquisa em fotografia. Outra pergunta do público tratou de questionar mais sobre a conservação no digital. Siqueira foi categórico em dizer para sermos mais seletivos: clicar menos e editar mais, além de catalogar tudo e conservar os arquivos em diversas mídias. Burgi e Nassau também falaram da possibilidade de se criar um repositório digital, uma espécie de banco de imagens coletivo que visa à conservação dos arquivos, mas sem fins comerciais.

Muylaerte entrevista Munneke | Foto: Bella Valle

Após o almoço, houve uma entrevista com o holandês Michiel Munneke, um dos organizadores do World Press Photo, feita pelo fotógrafo Eduardo Muylaerte. Munneke explicou como a WPP funciona de forma independente (é não governamental e sem fins lucrativos) e, sobre o prêmio de fotojornalismo, deixou clara a liberdade do júri em decidir o que achar melhor. Sua apresentação foi um panorama dos vencedores do prêmio máximo ao longo da história, desde 1955, mostrando a diversidade nos tipos de fotografia selecionados e, logo, nas diferentes prioridades de valores dados pelos jurados. Muylaerte perguntou sobre quem poderia concorrer ao prêmio e o holandês foi categóricos: o WPP é aberto a todos os profissionais do mundo todo. Uma questão polêmica – os limites da manipulação – também foi levantada pelo entrevistador. Munneke disse que, como toda competição, há uma série de regras no WPP e uma delas é evitar alterações fortes na imagem. Os limites são decididos pelo júri, mas tratamentos sutis não constituem nenhum problema. As fotos também podem ser encenadas e, segundo ele, há uma certa flexibilidade nesses limites da manipulação.

Sobre a ameaça aos fotojornalistas de imprensa com as tecnologias digitais e a internet, Munneke defende que este é um problema que não existe, pois cada vez chegam mais inscritos ao prêmio e o WPP se preocupa em criar novas categorias, como a categoria Multimídia, inserida há 2 anos no prêmio. Ele acha todas essas mudanças positivas e espera ver as novas soluções encontradas pelos fotógrafos para contar suas histórias. Para ele, o WPP serve para refletirmos a forma com a qual vemos o mundo. Muitas vezes isso é dado em imagens de cenas tristes, mas isso não é regra, considerando que há também fotos vencedoras mais positivas. A respeito da formação do júri, ele fala que buscam cada vez mais pessoas de diferentes lugares do mundo, considerando suas reputações profissionais e tentando equilibrar entre homens e mulheres. Ah! Por sinal, houve uma pergunta sobre a quantidade de mulheres premiadas: apenas quatro ganharam o prêmio máximo do WPP em quase 60 anos.

No final da entrevista, houve a melhor parte: a exibição do vídeo Afrikaner Blood, de Elles van Gelder e Ilvy Njiokiktjien, último vencedor do prêmio na categoria multimídia. O documentário é sobre um treinamento racista destinado a adolescentes brancos na África do Sul. Simplesmente incrível!

Juan Esteves, Edu Simões e Sergio Branco | Foto: Bella Valle

A terceira palestra do dia seria com Mauricio Lima, do Fotografe Melhor. Felizmente, por um problema de última hora, a produção chamou Edu Simões para substituí-lo. Assim, Sergio Branco e Juan Esteves conduziram uma linda entrevista sobre o processo de elaboração do projeto/livro “Amazônia”. Muitas questões foram debatidas, como o papel das grandes reportagens na imprensa hoje em dia, o fim das grandes revistas de reportagens e a pobreza imagética dos jornais. Simões fala que ganhou-se espaço nos museus, em compensação. O fotógrafo contou tudo sobre como foi feito o seu livro, desde a elaboração do projeto para a lei Rouanet, até as dificuldades em negociar acesso com os índios e os altos custos do processo. Ele se diz fascinado pela Amazônia, lugar que fotografa desde a década de 1980 e que diz ter passado por diversas mudanças que merecem ser fotografadas. Simões disse que não sabia muito bem o que iria fazer, mas sabia o que não queria fazer. Ele não quis um trabalho jornalístico, pois preferia outra poética; ele não queria fotografar índio; queria usar suas câmeras de médio formato e filmes em preto e branco; não queria fotografar bichos. “Sou um fotógrafo humanista”.

Juan Esteves fala sobre o trabalho de Edu Simões | Foto: Bella Valle

Foram 5 expedições para a Amazônia, cada uma durou entre 20 e 40 dias. Ele foi a toda a Amazônia, menos na parte que fica nos estados do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, por questões de custo. Simões contou várias histórias engraçadas e arriscadas por que passou em suas aventuras fotográficas e todos os presentes rimos muito dos seus perrengues. Um assunto interessante que foi levantado foi a dificuldade em não repetir bons fotógrafos que já fotografaram (e muito!) a Amazônia. A originalidade é difícil, é preciso saber o que quer. Simões diz que, ao mesmo tempo que é preciso ter repertório fotográfico, para saber o que já foi feito, é preciso evitar repetir suas próprias referências. Ele assume: “talvez eu tenha escolhido fazem em PB exatamente para não ceder à tentação de repetir o Luiz Braga”. “Escapar das armadilhas é um treino”, defende, pois se “demora para desenvolver um caminho próprio”. A importância de uma boa edição do material também foi comentada.

Público que assistiu a Martin Paar da telinha da Casa da Cultura | Foto: Bella Valle

A última entrevista do dia foi a mais aguardada e disputada: Martin Paar. Faltou ingressos desde o primeiro dia do evento e eu, assim como muita gente, acabamos vendo de fora, através da TV da área externa da Casa da Cultura ou no telão da Tenda da Praça da Matriz ou ainda no lounge da Nikon. O jornalista Cassiano Elek Machado começou a entrevista destacando a coleção de Paar, que possui uma biblioteca com cerca de 12 mil volumes de livros de fotografia, além de pontuar um pouco da história e do currículo invejável do fotógrafo inglês. Paar fez uma longa apresentação sobre seus trabalhos. Vários deles. Mostrou imagens, contou histórias e o que mais nos fica marcado é sua enorme inventividade, seu poder criativo na hora de criar e executar projetos e idéias. Surpreendentes.

Martin Paar nos falando pela TV | Foto: Bella Valle

Durante a entrevista, assuntos como a produção de fotolivros no Brasil foram discutidos. Paar acha que os livros brasileiros não são ousados. Há coisas maravilhosas, mas muito previsíveis. Ele também critica nossa cultura de esperar que os editores venham até nós para que publiquemos. “Vá, pegue emprestado, roube, faça, publique seu livro, faça você mesmo, não espere!”, clama, sempre com muito bom humor. Por sinal, ele comenta sobre a “ironia inglesa” presente nos seus trabalhos, quando traz uma mensagem sinistra por baixo de uma diversão. “Ou o mundo nos mata ou o vemos com bom humor”, diz.

Paar falou da importância do livro como obra consolidada, estável, influente. “Há algo muito sensorial no livro. Ele é tátil, tem cheiro”, completa, “todo fotógrafo quer produzir um livro”. Sobre sua coleção de livros, ele diz que todo fotógrafo é um colecionador e que ele acabou levando isso ao extremo e a “se viciou” quando começou a ganhar mais dinheiro como fotógrafo da Magnum. Martin Paar também comentou sobre a obsessão que temos em tirar fotos de tudo o tempo todo e que isso pode nos impedir de experimentarmos mais diretamente a vida. “De onde vem essa obsessão?” é algo que ele se pergunta frequentemente.

Depois e entre as entrevistas, consegui dar uma voltinha a mais na cidade e conferir outras coisas que estavam acontecendo. Seguem algumas fotinhas.

Exposição ao ar livre de fotos de P. Funch na fachada da Casa da Cultura | Foto: Bella Valle

Exposição ao ar livre de fotos de Marcos Lopez na Praça da Matriz | Foto: Bella Valle

Mais fotos de Marcos Lopez na Praça da Matriz | Foto: Bella Valle

Cubo de Rodrigo Rovira e container do projeto #casalusa | Foto: Bella Valle

Fotos impressas do instagram para o projeto #casalusa | Foto: Bella Valle

Container FotoVolante do projeto Uma Casa Portuguesa Com Certeza (#casalusa) – laboratório digital itinerante do instagram | Foto: Bella Valle

Oficina “imersão analógica” do Grupo Cidade invertida | Foto: Bella Valle

fotos dos alunos da oficina do Cidade Invertida, feitas na câmera escura móvel | Foto: Bella Valle

Exposição Véus, de Thales Leite | Foto: Bella Valle

Máquinas da coleção Kombi Nação, mostra itinerante fotográfica ! Foto: Bella Valle

Morador de Paraty retirando seu retrato feito pelo Nitro Imagens, para o projeto “Moradores – A Humanidade do Patrimônio Histórico” | Foto: Bella Valle

João e Gustavo, da Nitro, e as fotos dos moradores no varal | Foto: Bella Valle

Exposição Avistar | Foto: Bella Valle

Mais Avistar | Foto: Bella Valle

Exposição de Peter Funch vista à noite | Foto: Bella Valle

Cubo de Cristiano Mascaro iluminado | Foto: Bella Valle

Uma das várias projeções paralelas nos muros do casario do Centro Histórico | Foto: Bella Valle

Gilvan Barreto assinando meu exemplar no lançamento do seu livro Moscouzinho | Foto: Bella Valle

Fausto Chermont e Edu Simões, no lançamento dos seus livros “São Paulo-Século XXI” e “Amazônia”, respectivamente | Foto: Bella Valle

Projeto Deixe Seu Retrato na Tenda Matriz | Foto: Bella Valle

Nova foto na árvore do Deixe Seu Retrato | Foto: Bella Valle

Trípticos da exposição Praias, de Martin Paar, iluminados | Foto: Bella Valle

Registro afetivo do dia: Gilvan, eu, Tiago e Belém | Foto: Paloma Marques

Sobre bellavalle

Fotógrafa, pesquisadora, professora da UFPB, mestre pela PUC/SP, doutoranda pela UFPE e amante da vida.
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