Existem lugares que são como refúgios, onde nos desconectamos do mundo e sentimos o tempo passar em outra velocidade, mergulhamos em nós mesmos, ou até nos esquecemos de quem somos, cada um a seu modo, são como santuários da alma. Esse lugar, para Hirosuke Kitamura, são os bordéis de Salvador. Cidade baiana escolhida por um jovem japonês recém-formado em Literatura para um período de intercâmbio estudantil, há cerca de 20 anos atrás e de onde nunca mais saiu. Aqui fez seu primeiro curso de fotografia e começou a trabalhar como fotógrafo freelancer.
Em abril deste ano Kitamura inaugurou a Exposição Hidra na 1500 Gallery, em NY. Para quem não conhece a galeria, vale o adendo: fundada em 2010, a 1500 é a primeira galeria de arte dos EUA especializada em Fotografia Brasileira, representa, além do próprio Kitamura, fotógrafos como João Castilho, Claudio Edinger, Tuca Vieira, Gustavo Pellizzon e Edouard Fraipont. Em agosto a mesma Exposição foi exibida na Fauna Galeria, em São Paulo. O fotógrafo possui também imagens na Coleção Pirelli/ Masp de Fotografia.
Hidra reúne imagens feitas em médio formato (120mm), incluindo dípticos e trípticos, a maior parte das imagens são as fotografias realizadas nos decadentes bordéis de Salvador, conhecidos como bregas, que vêm aos poucos desaparecendo, ruindo. Hirosuke Kitamura já não é mais um estranho nestes lugares, talvez apenas um frequentador esquisito. O fotógrafo conta que fica horas sentado nestes prostíbulos, tomando cerveja, ouvindo música, observando o movimento e imerso em seus pensamentos. Há cerca de 10 anos ele se dedica a registrar esses cenários, encantado pela extravagância e contradições que reservam: prazer e sofrimento, coletividade e solidão, alegria e tristeza, vida e morte, sexualidade e inocência. Ao mesmo tempo, Kitamura destaca que não lhe interessa nenhum tipo de julgamento ou denúncia social, o que lhe atrai são as cenas, cores, tempos, corpos, movimentos, texturas… Na penumbra destes redutos de prazer e dor ele encontrou exatamente o que lhe interessava fotografar, e seu estilo, mesmo longe dali, carrega as nuances de quem tem um tempo outro ao fotografar.
Conheci o trabalho de Oske (como é conhecido) há pouquíssimos dias, folheando a Edição de setembro da Revista Alfa (Revista de comportamento para homens da Editora Abril), de cara me encantei pelo ensaio e fiquei curiosa para saber mais sobre o fotógrafo e sua produção. As imagens não me eram de todo estranhas, mas eu sabia que nunca tinha visto aquele trabalho. A conexão foi rápida, se você também viu qualquer semelhança com o trabalho de Miguel Rio Branco, não foi mera coincidência, Hirosuke destaca a importância da influência de Rio Branco e de Mario Cravo Neto, ambos são claras referências para o japonês. Inclusive, Rio Branco é o curador da Exposição Hidra (de onde saem as imagens deste post)!
Faço mais conexões, vejo que é também a densidade o que me atrai no trabalho de Oske, é curioso perceber no artista estrangeiro um olhar tão conectado ao dos Brasileiros, fico buscando entender os vestígios que ligam as culturas, os mundos, os povos, os inconscientes… Os fragmentos que ele recorta são corpos e desejos sem identidade, são marcas e rasgos de tempo e no tempo, ranhuras que transbordam os temas mundanos e pessoais de cada um e invadem o espaço do outro, mesmo banhadas de tons e cores quentes elas (as imagens) me tocam profundamente e chegam até mim como espasmos de vida e morte, entre o respiro e o suspiro final. Como disse Miguel Rio Branco sobre a exposição: “Alguma coisa emerge silenciosamente dessas imagens a todo momento: fantasmas a meio caminho entre sexo e morte, fragmentos de sedução que vagueiam entre mundos perdidos.”
Um pouco mais do trabalho de Oske pode ser conferido aqui: https://vimeo.com/5101799
muito massa. poucos sentem vontade de entrar, mas todo quer saber como é o lugar, a atmosfera, né? esse trabalho instiga a imaginação das pessoas.
no quesito fotografia x arte há sempre os pontos polêmicos, que rendem horas de debate, mas também existem algumas situações em que tudo é suficientemente claro. acho que materiais como esse, de produção lenta porém maturada, tem bastante valor artístico, sem muita margem pra dúvida.
agora ele diz que não teve intenção de denunciar nada, mas a denúncia inevitavelmente tá lá em cada imagem. a denúncia não tá no discurso do fotógrafo, mas tá na “voz” gerada por tudo que um bordel evoca e que é impossível desvincular.