Essa semana estava eu tentando fazer uma foto. Uma agonia no peito encontrou uma música no mp3 player e, de um clichê, a foto veio na cabeça – como aquela resposta que a gente pensa em dizer só depois que a ocasião para ela passa. Mas, ao contrário da frase que, atrasada, faz mais sentido muda no juízo da gente, a foto ainda pode ter a sorte de seguir algum destino. E fui fazê-la.
Acontece que a foto não saiu. Ficou pela metade, como aquelas esculturas de argila que vão girando no banquinho, tomando forma, até que desabam como lama, sendo nada, uma escultura que não deu certo. A minha foto era uma ideia que não deu certo. E não tendo o que fazer com ela, publiquei-a no Instagram.
Publiquei-a com um textinho, que saiu, no lugar da imagem: uma foto que não sai é como um nó no peito, palavra amarrada na língua, um desespero. A gente bota no mundo de nervoso, tentativa de viver. Mas num há nada que se faça com uma foto que não sai.
E dei o enter na publicação sem prestar atenção à contradição do que eu vinha dizendo. Porque vejam que a foto não saiu e, no entanto, estava lá publicada. Fiquei olhando aquela foto e o texto que a desdizia e caindo em mim, cliquei logo no botão de apagar. Imediatamente. Sem pensar, assim como a tinha publicado. Porque vejam bem, o Instagram não permite hesitações. É “ou publica ou não publica”. Na verdade, é apenas publica, publica, publica. O não publica a gente não fica sabendo.
Publicar, hoje em dia, é em si um ato cheio de ansiedade. Talvez o ato mais importante da produção cultural contemporânea, (talvez essa seja só uma frase de efeito). Possivelmente um dos atos mais emblemáticos do momento em que vivemos, porque, na internet, publicar é fazer as coisas existirem. De meros espectadores, passamos a editores de conteúdo, escolhendo (talvez não muito conscientemente) o que queremos consumir e o que queremos repassar. E vamos movimentando a rede, ansiosamente, com tudo o que vemos e produzimos.
Lembrei-me de Vivian Maier e dos seus mais de cem mil negativos guardados, muitos deles sequer revelados. Vivian era uma fotógrafa de rua americana que produziu um acervo gigantesco e muito rico em narrativas sobre a relação entre os homens e as cidades, particularmente Nova York e Chicago. Produziu despretensiosamente, era uma babá que usava uma Kodak Brownie e uma Rolleiflex, ao que tudo indica, nas horas vagas.
Passeava discretamente pela cidade, registrando o cotidiano dos moradores, e sua própria presença nesses cenários, em autorretratos bem interessantes, sempre atenta ao que acontecia à sua volta. Não tendo família nem uma casa, Vivian guardou todas as suas imagens num depósito assim que, com a chegada da velhice, foi adoecendo. Seu trabalho foi descoberto apenas em 2007, pelo historiador John Maloof, quando fazia uma pesquisa sobre os hábitos culturais da Chicago dos anos 1950s.
Antes mesmo que Maloof pudesse fazer qualquer contato com a fotógrafa e dois anos depois de ele ter descoberto suas fotografias, ela faleceu aos 82 anos, anônima do seu próprio trabalho. A surpresa e o encantamento do historiador o impulsionaram a se dedicar à organização, conservação e divulgação dessas imagens misteriosas e hoje Vivian é seu principal projeto. É possível conhecer a história aqui e aqui, com as palavras do autor; e tem esse texto muito bom de Rubens Fernandes Jr., no Icônica.
Sempre fico me perguntando quais as razões que fizeram com que Vivian deixasse todo o seu trabalho guardado, a vida inteira. Como se dava essa relação pessoal dela com as fotos que produzia? Quais as inseguranças e ocasionalidades que fizeram com que suas fotos, partes de um trabalho tão maduro, tão honesto, permanecessem guardadas e algumas sequer reveladas? Fotos misteriosas até mesmo para o fotógrafo.
José Castello, uma vez escreveu sobre o romance Benjamin de Chico Buarque, e disse: “Há, então, que desempenhar a vida em vez de vivê-la. Esse sentimento, muito contemporâneo, já foi descrito, com competência, por sociólogos, filósofos, psicanalistas. Mas só um romance, um estupendo romance como Benjamin, pode dar vida a ele. Lendo o romance de Chico Buarque, não precisamos explicá-lo, ou defini-lo; nós o sentimos na pele e, o mais doloroso, sentimos o quanto cada um de nós, seus leitores, também manobramos discretas câmeras interiores, ainda que sem perceber isso. No mundo da imagem, todos estamos engolfados pela visão. “Eu vi” é a frase que corresponde, por excelência, à felicidade moderna. Vi um filme, vi uma peça, vi um jogo de futebol, vi um assassinato, vi uma batida de carro, vi uma briga, um suicídio. Somos todos espectadores, o mundo se converteu numa plateia. E as imagens nos governam, são os deuses contemporâneos”. Está lá em O Carrossel luminoso, na página 76 do livro Chico Buarque do Brasil (2004).
As imagens de Vivian, nunca vistas, caladas num depósito; essas fotografias existiam antes de Mallof?
Se “Cremos que as coisas e os/outros existem porque vemos e/os vemos porque existem”, como diz Marilena Chauí, qual o papel das fotografias nunca publicadas? Qual o papel do que produzimos culturalmente e não divulgamos?
Minhas dúvidas se baseiam na ansiedade que vivemos de publicação quase que instantânea de tudo o que produzimos. Temos o Instagram aí para não nos deixar esquecer. As fotografias de instantes montados, ou as fotografias montadas de qualquer instante, a leve brincadeira de fotografar despretensiosamente, ou a pretensão de um fingir leve de fotografar. Não sei o caminho que seguimos mas adoro quando Couchot diz que “vivemos uma deriva de sentido sistemática” (A Tecnologia na Arte, da fotografia à realidade virtual, 2003, p.68) – um estado em que a quantidade de informação não cessa de ser produzida, sem fins claros, não sendo, portanto, importante saber o que fazer com ela. Vivemos à deriva, em um mar de informação que não para de nos inundar. Me sinto um pouco mais inserida quando ele diz que “vivemos”, assim no plural, em sociedade.
Se tudo só existe quando publicado, e se tudo pode ser publicado, como saber se o lugar do nosso trabalho é a rede mundial de computadores ou as gavetas da nossa cômoda, as pastas do nosso computador? Não dá pra se ter certeza, eu acho. A gente publica como quem se arrisca de sair de casa; o resultado pode ser pleno ou desgastante, ou simplesmente não ter impacto algum.
Somos feitos das imagens publicadas mas principalmente das não publicadas de nós mesmos. Saber não publicá-las é uma forma de maturidade, como aquele pensamento mau-caráter que escondemos ou aquela mania repulsiva que mantemos guardados. E fico pensando numa pergunta feita por José Afonso Jr., um dos meus mestres em fotografia: “para onde vão as fotografias quando não estamos olhando para elas?”
Freud explica?
Muito bom esse post… Reflexão do meu dia. Obrigado!
brigada, daniel, seja sempre bem-vindo ao blog!
Jô, será que nós somos mesmo feitos de imagens? Isso é muito perturbador…