Em meu primeiro #Diálogo aqui no Sete, falei um pouco sobre um dilema que de alguma forma acredito estar presente na vida da grande maioria dos fotojornalistas quando estão cobrindo pautas tensas, difíceis: fotografo ou abaixo a câmera?
Nesse #Diálogo de hoje, levanto mais uma vez inquietações que o meu trabalho como fotojornalista me desperta. Mas, dessa vez falo sobre a hora de levantar a câmera, da urgência e da necessidade de fotografar e da sensação estranha que muitas vezes vêm quando temos certeza que por mais que haja entrega na hora de fotografar e por mais densa, tocante e cheia de informação que seja a fotografia que você faça, existem situações que só estando presente para sentir e mensurar tudo.
Quando fotografamos estamos editando a realidade. Não levanto nem a questão dos recortes tendenciosos, isso renderia um #Diálogo a parte, falo da edição que todos nós fotógrafos fazemos (não só os fotojornalistas). A fotografia revela um ponto de vista particular do olhar do fotógrafo e esse olhar é carregado de ideologias, pensamentos, ideias de mundo, e tudo isso, de certa forma, influencia no recorte, no momento da escolha do que vamos fotografar, de como iremos representar aquela realidade imposta aos nossos olhos. O real é imenso demais, o real tem cheiro, som, temperatura, e nenhuma fotografia, por mais que nos transporte e nos faça ter a sensação de estar presente naquele instante fotografado, consegue englobar todo o peso, toda a densidade, toda a sua força.
Algumas vezes essa sensação de que a sua fotografia nem de longe chega perto do que vemos e sentimos quando vivenciamos um fato, me desperta um sentimento muito parecido com a impotência. É como se a representação da realidade não bastasse para algumas situações. A vontade é que realmente todo mundo pudesse ter a chance de sentir o que é aquilo de fato, como se todo esforço para captar o mais próximo do real fosse pequeno, diante da grandeza do concreto em si.
No início desse ano, passei 7 dias na estrada, 2.600 km rodados, percorrendo três Estados do Nordeste fotografando as obras da Transposição do Rio São Francisco, um trabalho que rendeu a reportagem especial Transposição, novos obstáculos, para o Jornal do Commercio. O que vi e o que senti no sertão é extremamente difícil de definir. A obra é assustadoramente faraônica e o estado de abandono dos canais é extremante chocante. Foi um trabalho bastante intenso, de muita entrega de toda a equipe e que rendeu um material bem consistente. As fotografias que produzi mostram a situação decadente da obra, as rachaduras, as placas quebradas. Tudo isso está presente nas fotografias, o papel de denúncia que minhas imagens deveríam cumprir, foi cumprido. Mas não consigo olhar para as imagens, vídeos e não pensar que tudo que foi produzido ali, não se compara com a realidade de fato, nada se compara com olhar aquilo tudo de verdade, com tocar no cimento quente dos canais, sentir o cheiro da água turva do rio, perceber o silêncio que corta o sertão junto com aquele canal. A sensação de impotência vem quando me dou conta que a fotografia nunca vai ser completamente fiel ao real e nem todo mundo tem a chance de sentir esse “real”. Ao mesmo tempo que é extremamente gratificante poder levar para a sociedade um pedacinho dessa realidade, fica uma frustração de saber que o pedacinho é muito pequeno, o todo é extremamente complexo, cheio de pequenas nuances, de estímulos sensitivos, o real vibra.

Trecho de 600 metros em sequência de placas de concreto quebradas, no lote 6, da obra da Transposição, em Mauriti, no Ceará | Priscilla Buhr
Um outro exemplo que sempre me vem na memória quando penso sobre isso é a enchente que devastou o interior de Pernambuco no inverno de 2010. Na primeira semana das chuvas não fui cobrir a situação das cidades, fiquei apenas acompanhando o trabalho dos colegas de redação. As fotografias que chegavam no jornal eram absurdas, chocantes. Algumas vezes encontrei a fotojornalista Hélia Scheppa voltando de Palmares (uma das cidades mais atingidas pela cheia), coberta de lama, destruída emocionalmente e fisicamente, após um dia inteiro de trabalho cobrindo o caos que aquela cidade vivia e sempre comentava com ela, como aquelas imagens eram fortes, que dava para sentir bem a situação. Lembro que Hélia sempre me dizia que não dava para ter ideia do tamanho real daquela destruição apenas vendo as imagens, as fotografias mostravam muito, de fato, eram extremamente chocantes, mas nada era comparado a estar lá, a ver, sentir, viver aquele caos. E realmente, Hélia tinha razão. Na segunda semana das chuvas fui para Palmares e mesmo tendo visto centenas de fotografias e acompanhado tudo sobre a cheia, foi impossível não ficar perplexa. Nenhuma imagem, nenhum texto, nada conseguia reproduzir a dimensação real daquela destruição.

Palmares após a enchente | Hélia Scheppa/JC Imagem

Palmares após a enchente | Hélia Scheppa/JC Imagem
Penso muito sobre isso sempre que vejo fotografias de guerra e de zonas de conflito. O repórter Lourival Sant’Anna, fala algo bem interessante sobre o que move esses fotógrafos, na reportagem “Profissão: voltar vivo“, com os fotógrafos André Liohn e Maurício Lima, na Revista Trip de outubro: “Ser fotógrafo de guerra é viver confrontado com a própria impotência diante da barbárie e da morte. Mas é também, em um dia de sorte, fazer a diferença em uma vida que seja”. É indescritível e inimaginável o que é viver uma guerra para quem nunca viveu. Seria impossível se ter uma sensação aproximada do que seja uma guerra se não fosse a fotografia, se não fosse esse recorte da realidade. Em uma entrevista no programa Roda Viva, André Liohn fala muito dessa questão de como é difícil se mensurar o quão forte e assustador é estar em uma zona de conflito e da importância de se estar lá, fotografando. Vale muito a pena assistir:
Por mais consciência que se tenha de que o real nunca será o real em uma fotografia, as vezes bate a sensação que o “real possível”, fotograficamente falando, em algumas situações, ainda é pouco. Talvez trabalhar como fotojornalista me desperte isso, o que é bom também. Talvez o desejo de tocar e de atentar o leitor que vai ver a minha imagem, seja tão forte, que eu fique com essa sensação de impotência, de querer fazer o impossível. É estranho saber que muitas vezes o melhor que eu posso dar de mim profissionalmente, é pouco diante de um todo. Mas também acredito que é exatamente isso que faz o fotojornalista pulsar em busca da melhor representação do real.
Bom dia! E longa vida ao SETE!!!! Enfrento(ei) essa sensação de não satisfação sempre que cubro a Amazonia, grandes desastres ou a guerra- seja no Iraq ou urbana-. Talvez por que nosso objetivo maior, ao retratar uma situação, seja nesses casos de ser um agente transformador dessa realidade. E, ao não conseguir muda- la imediatamente (parar a transposição, impedir o corte da floresta, terminar a guerra, propiciar justiçã social imediata…) com uma foto ou texto ou qualquer representação, nos sentimos frustados. Será a “realidade” muito grande para as lentes? Ou a sociedade é quem não reage adequada e imediatamente aos fatos denunciados? Sigo acreditando que nosso trabalho é o de aportar “um grão de areia”. Em algum momento, esses grãos serão uma duna em movimento, que “forçará” mudanças na “realidade”. Em cada cobertura sempre haverá UMA e so UMA foto chave que fechará/ simbolizará todo o “real” daquela situação naquele unico centesimo de segundo. Poderá ser um detalhe ou uma vista geral, mas haverá. Até por que esse “real” é diferente para diferentes pessoas e muda a cada segundo. As vezes, a foto de um detalhe, que no momento “quente” da cobertura faz a capa, ganha premios etc, perderá importancia ao longo do tempo por que a “realidade” já não carrega as informações cognitivas que permitem decodificar aquela imagem. Nesse momento, uma vista geral, passara a ser a “foto chave” do registro daquele fato, ou seja, a importancia do documental, auto explicativo. Mas esperar que apenas essa UMA, seja capaz de sozinha mudar a realidade imediatamente… Ela trará mudanças sim, mas ao longo do tempo.
esse lance da fotografia como registro do real é um dos dogmas fotográficos mais antigos e difíceis de quebrar. por isso acho esse texto superpertinente: ele sugere aos desavisados e reaviva a mente do esquecidos sobre essa importante reflexão.
como experiência também posso citar a enchente em palmares. lembro bem do cheio pútrido na entrada da cidade… eram animais mortos? pessoas? aquilo me deixou com calafrios. lembro dos escorregões que eu dei em meio ao mar de lama, do meu total constrangimento em abrir um pacote de biscoito diante de tanta gente pedindo comida, além do medo de doar pra alguém e provocar alguma confusão com os demais, da minha dificuldade em jantar à noite, depois que cheguei em casa. nada disso saiu nas fotos que fiz, seja por falta de sensibilidade ou de condição psicológica mesmo. eu saí da cidade muito abalado.
desde essa ocasião eu passei a valorizar mais a experiência ao invés da documentação. entendi de vez que a angústia ou a urgência em fazer um registro “completo” é totalmente inútil, pois esse registro nunca virá; que parar por um momento e se deixar contaminar pela atmosfera que nos envolve é fundamental pro amadurecimento da percepção – e não apenas do olhar, como já foi debatido em diálogos anteriores.
seria tão bom se as pessoas parassem de ver a fotografia não como a experiência em si, como o fim do processo, mas como um convite à realidade, uma ponte que leva até ela. seria bom que as pessoas sentissem vontade de conhecer algo a partir do que viram e não apenas se contentar com um enquadramento. eu acredito que um dia isso será amplamente compreendido.