Quando fomos montar a convocatória para a #Mesa7, realizada em agosto deste ano, uma das discussões levantadas pelo grupo foi: vamos pedir que as pessoas enviem trabalhos fotográficos ou ensaios? Depois de uma série de debates optamos pelo envio de trabalhos fotográficos. Quando esta decisão foi tomada, eu particularmente me senti bem feliz porque não acredito na máxima que diz que para ser um bom fotógrafo é preciso conseguir desenvolver um ensaio de fôlego. Há questões!
Este é um argumento bastante utilizado em diversos debates no circuito da fotografia, em suas diversas vertentes. Contudo, a insistência na obrigatoriedade de apresentar uma expressão visual sempre na configuração de ensaios tem deixado vários fotógrafos sem dormir, experimentando frustrações ou contínuas sensações de fracasso por não conseguir desenvolver, em suas trajetórias, ensaios bonitos, concisos e relevantes. E esta angústia é gerada por uma requisição, cada vez maior, de apresentar ensaios para diversas iniciativas da área, pelo menos no Brasil.

Leituras de Portfólio em Festivais abrem espaço para diversos tipos de trabalho, mas as solicitações de ensaios são constantes. Foto: Ana Lira
Por exemplo, se observarmos o universo dos processos seletivos – concursos, leituras de portfólio e afins – as solicitações de ensaios têm sido cada vez mais frequentes, sem que o próprio conceito de ensaio esteja claro nos próprios editais ou requerimentos de inscrição. Em uma pesquisa realizada na internet, para escrever este texto, eu encontrei a categoria Ensaio definida desde “conjunto de fotos agrupadas” até “uma proposta de trabalho que tenha unidade temática, estética e narrativa acerca do assunto abordado”. Ambas em seleções consideradas sérias pelo setor da fotografia.
As duas perspectivas são completamente distintas, não sendo difícil entender porquê nos deparamos com propostas tão diferentes de projetos, dentro da mesma categoria, em processos seletivos. Esta realidade também se repete em coletâneas, sites, portfólios e vários meios de comunicação espalhados pelo mundo, criando uma confusão na cabeça de fotógrafos. Quanto mais aberta for a possibilidade de compreensão do que é ensaio, como é o caso da primeira definição “um conjunto de fotos agrupadas”, mais a decisão fica na corda bamba entre quem está propondo o trabalho e quem está avaliando – e nem sempre o acrobata faz o melhor número.
Será que é possível cair menos da corda?
A questão é que, embora a própria idéia de ensaio não seja fechada em torno de um conceito imutável, ela tem referenciais que são importantes para nortear um processo de produção. O volume 3 da revista Discursos Fotográficos, publicada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), traz um artigo curto de autoria de Beatriz Fiuza e Cristiana Parente, que depois de lerem considerações de diversos pesquisadores da área de imagem e entrecruzar dados de suas pesquisas, apresentaram uma proposta de Ensaio Fotográfico que difere da ideia de Coleção Fotográfica e Série Fotográfica.
Uma coleção pode conter ensaios completos ou fragmentos de ensaios (como a Coleção Pirelli/Masp, por exemplo, que há poucos anos adquiriu imagens do ensaio Brasília Teimosa, de Bárbara Wagner). Um ensaio, por sua vez, pode ser integrado por várias séries fotográficas específicas (como é o caso do belo Paisagem Submersa, de João Castillo, Pedro David e Pedro Mota, cujas séries são editadas no site por meio de palavras-chaves e estas palavras se relacionam no ensaio completo), mas coleção, série e ensaio não são a mesma coisa.

Paisagem Submersa – João Castilho, Pedro David e Pedro Motta editaram o trabalho usando palavras como Presságio. Foto: João Castillo
Fiuza e Parente, por exemplo, acreditam que o ensaio “trata-se de um texto imagético, temático, configurado a partir das experiências próprias do fotógrafo e de suas pesquisas sobre o assunto” e que “ao mergulhar em um ensaio o autor se vê inserido em um processo que exige muito mais que a captura de imagens. Exige uma reflexão sobre a conexão entre essas imagens, sobre a edição que melhor pode expressar sua intenção no trabalho (…)”. O ensaio deveria conter ainda “escolhas que devem obrigatoriamente ser feitas pelo fotógrafo, dentre elas a do tema; da estética fotográfica; das fotografias que devem compor o trabalho; da definição da mensagem a ser transmitida no ensaio final configurado; e da montagem a ser feita para apresentá-lo”.
Além dessas, encontrei em um dos artigos do site Collective Lens, que tem um foco mais voltado para o fotojornalismo e para a fotografia documental, um texto sobre elaboração de ensaios que dizia, entre outras coisas, que os ensaios podem ser de origem narrativa e de origem temática. O primeiro traria em sua estrutura a necessidade de contar uma história por meio de uma sequência de eventos ou ações nas fotografias. O segundo focaria em um tema e a edição traria imagens relevantes acerca do assunto abordado pelo fotógrafo. Os dois casos, contudo, precisariam ter força sozinhos para sustentar o debate proposto sem a presença de um texto.
E se eu não quiser ser ensaísta?
A questão central para mim, quando eu leio todas essas observações a respeito do ensaio fotográfico e recordo do panorama que citei no começo do texto é: será que todos os fotógrafos precisam ter habilidade para o ensaio? Pensemos na literatura: todo ensaísta é contista? Todo contista é romancista? Todo romancista é poeta? Pensemos na música: todo musicista é maestro? Todo maestro precisa, obrigatoriamente, ser um bom violista? Saindo da área das artes para os esportes: na natação todo mundo é velocista? Ou existem os fundistas e os meio-fundistas?
Voltando para o campo da escrita: ser contista, romancista, ensaísta, jornalista, crítico, novelista ou poeta é resultado da trajetória do indivíduo e de como ele desenvolveu sua relação com a área. Se alguém se expressa melhor elaborando conexões, criando personagens complexos, ampliando contextos, elaborando tramas internas para grandes narrativas, ela pode se situar no romance ou na grande reportagem e vivenciar os outros campos para ampliar repertório, mas sem necessariamente assumir para si uma área com a qual não se sente confortável.
Da mesma maneira, alguém que tem um poder forte de síntese pode encontrar seu lugar no mundo através do conto ou da poesia e nunca migrar para o romance, não é? Então, porque todo fotógrafo precisa ser ensaísta? Por que o moço excelente do hard news ou da foto publicitária ou do coletivo multimídia precisa se forçar a se sentir confortável no campo do ensaio para ser considerado um bom fotógrafo?
Lembro bem que há três anos eu fui para o Fest Foto Poa fazer uma oficina de Ensaio Fotográfico com Eder Chiodetto (Pri Buhr e Gamarra estavam na mesma turma e discutimos este caso longamente, durante meses). Esta oficina foi um divisor de águas nesta minha percepção. Havia na turma um garoto que se apresentava como street photographer e ele espalhou sobre a mesa uma série de imagens feitas ao acaso, em épocas distintas, e sem a menor relação.
Eder olhou por um momento as fotografias, toda a turma em silêncio, e aos poucos começou a editar o material. Depois de algum tempo, a gente tinha na mesa uma seleção que parecia uma narrativa a la Hitchcock. A conexão foi feita a partir de elementos como cores, luzes, formas, objetos e um certo clima que apareciam em parte das imagens e orientaram uma relação entre elas. Então, discutimos que, mesmo diante de fotografias feitas sem relação, existem elementos presentes em nossas trajetórias que marcam a produção fotográfica – e, em algum momento, diversas dessas imagens juntas podem indicar para onde o fotógrafo está seguindo.
Assim, o mocinho das imagens ficou com duas possibilidades: a) pensar em um ensaio, a partir da seleção proposta por Eder Chiodetto, se assim quisesse e se sentisse bem com o desafio; b) continuar fotografando como antes e desenvolvendo esses exercícios de edição de tempos em tempos, em busca desses elos entre suas imagens, como forma de conhecer para onde o seu olhar estava caminhando. A coleção de fotos editadas na aula não era um ensaio, mas virou um trabalho bem amarrado e mostrava as ideias que permeavam o imaginário do fotógrafo.

O World Press Photo foi fundado há 55 anos e premia trabalhos enviados em formato de ensaios e fotos isoladas. As avaliações são feitas por meio de rodadas e cada uma delas têm comissões diferentes, que decidem os premiados em nove categorias.
Outro exemplo que pode ser citado, desta vez no campo das seletivas, é o do World Press Photo, que abre espaço para uma foto única ser pinçada de um ensaio, caso ela seja muito boa e o trabalho geral não seja coeso. Pode ser uma forma a mais de respeitar e valorizar uma perspectiva fotográfica, permitindo que olhares bacanas sejam melhor aproveitados em processos que antes o descartariam porque fotógrafo talvez não tivesse habilidade para o ensaio.
Enfim…
Eu não quero dizer com isso que as pessoas não devam tentar fazer ensaios. Sim, devem, como a própria expressão tem outros significados no dicionário, ensaiar é também experimentar, praticar, buscar pela insistência em algo o refinamento de um processo. Porém, acho injusto ver uma série de fotógrafos, que sabem nitidamente que o ensaio não é o caminho de expressão deles, viverem atormentados por quererem seguir outros caminhos. Este um debate que precisa ser considerado seriamente em cursos de formação na área de fotografia, festivais, concursos, projetos editoriais, entre outros. Se temos que exigir algo é que os trabalhos sejam bons e bem editados, sejam eles formatados como ensaio ou não.
Engraçado Ana, ontem eu estava justamente falando isso no meu grupo de estudo.
Na minha quase modesta opinião, os formatos dentro da arte devem ser para ampliar os horizontes e não restringir.
Muitas vezes vejo discursos excludentes, onde só é possível um formato sendo todos os outros ¨errados¨.
Dentro da fotografia esse excesso de regras é ainda pior. Tem regra para tudo e a função fundamental que é a de comunicação acaba sendo sufocada.
Quanto à questão dos ensaios, o mesmo Eder virou minha cabeça pelo avesso quando pegou uma foto de cada ensaio meu e transformou em uma série muito mais forte.
Foi nessa hora que percebi que cada imagem funciona como uma palavra e que pode ser aplicada e reaplicada em frases completamente distintas.
Algumas ¨palavras¨ comunicam sozinhas. Outras precisam de uma frase mais curta ou mais longa. Outras precisam de várias frases.
Depende do que se quer comunicar.
O que observo é que quando se tem propriedade do discurso, esse fio condutor entre uma fotografia e outra aparece naturalmente.
A forma como foi concebida a imagem é problema de quem cria.
E aumentando um pouco a questão, nem todo fotógrafo precisa ser ensaista, ou artista, ou fotojornalista para ser um bom fotógrafo.
Essa cobrança onde coloca uma forma superior à outra, acaba sendo uma armadilha que deixa muitos bons fotógrafos travados.
Não achas?
Oi Cecília!
Obrigada por contribuir com o diálogo trazendo questões interessantes.
Olha, eu acho que ter propriedade do discurso sobre o seu próprio trabalho é uma construção que precisa ser feita de uma maneira muito dedicada – e tenho dúvidas se isso é uma realidade majoritária na fotografia.
Estamos dando passos importantes com a quantidade de circuitos de formação, informação e discussão que estão se criando (ou reavivando – porque esses fluxos aumentam e retraem de tempos em tempos, dependendo do momento vivido pela Fotografia no país).
Contudo, ainda existem muitas lacunas e muitos espaços para serem ocupados neste processo de formação/informação/discussão que envolve a fotografia, da mesma maneira que encontramos algumas resistências a mudanças e novas perspectivas, também.
O que eu sinto é que a gente precisa continuar incentivando os debates como forma de sentir o meio, ouvir as pessoas e de incentivar esse destravamento dos processos criativos – e eu fico agradecida de te ver colaborando com isso, também!
Um cheiro!
Oi Ana, vou contribuir um pouquinho aqui pra discussão.
Acredito que esse “problema” apontado por você tenha muito mais a ver com a questão de terminologia do que qualquer outra coisa. É problemático para nós brasileiros não sabermos definir por completo o que é um ensaio e o que é uma série, por exemplo.
No próprio World Press Photo, trabalhos de reportagem fotográfica inscritos provavelmente seriam chamados aqui de “Ensaio”. E nem sempre são.
Tenho visto em bastante concurso ou inscrições em festivais de fora do Brasil que o pré-requisito também é parecido com o nosso, mas eles geralmente não utilizam “Ensaio” como termo, e sim o tal do “Body of Work”. O que é muito mais abrangente, muito menos limitador.
O “Body of Work” deles pode ser sim um ensaio, assim como uma série de imagens que se relacionam de alguma forma ou uma reportagem fotográfica sobre determinado assunto, etc.
Não sei definir um termo em português para “Body of Work”, mas uma expressão mais nesse sentido talvez criasse menos problemas e limitações na cabeça da galera.
Tomemos como exemplo o Prêmio Porto Seguro de dois anos atrás, de 2010. O tema do próprio Prêmio era “Ensaios”. Mas na categoria “São Paulo” não foi premiado um “Ensaio” e sim uma “Série” de fotos sobre São Paulo, do fotógrafo Tuca Vieira. Com certeza super bem editado, nada sobrando, fotos lindas, um trabalho belíssimo. Mas não era um “Ensaio”. Então, veja você como há confusão de terminologias já na cabeça de quem cria esses regulamentos.
O alemão Gursky não poderia participar de um prêmio brasileiro que tenha como pré-requisito um “Ensaio”? Quem escreveu esse regulamento sabia mesmo o que estava querendo? É muito provável que não sabia.
No Prêmio Porto Seguro deste ano, agora Prêmio Brasil de Fotografia, também se solicitava que fossem “Ensaios” os trabalhos inscritos. Mas Letícia Ramos e Carlos Dadoorian, vencedores na categoria de Pesquisas Contemporâneas, inscreveram seus trabalhos que não tinham definitivamente nada a ver com um “Ensaio”. E foram premiados.
Então, reforço: a questão é a terminologia. Pensar em como definir o termo desse pré-requisito talvez seja algo muito urgente.
E conversando com sua colega de blog Priscilla Buhr sobre essa questão, comentei sobre uma edição da revista Serrote (edição 9) que tem um texto belíssimo da escritora Cynthia Ozick defendendo uma idéia do que é um “Ensaio”. Ela se refere a ensaio literário, claro, mas é perfeitamente possível trocar o termo para “fotográfico” e o texto servir também para nós fotógrafos. Cito aqui abaixo alguns trechos do texto, que se chama “Retrato do ensaio como corpo de mulher”:
“Ensaio é imaginação.”
“Um verdadeiro ensaio não serve a propósitos educativos, polêmicos ou sociopolíticos: é o movimento de uma mente livre quando brinca.”
“O ensaio não se presta às barricadas: é um passeio pelos labirintos pela mente de alguém.”
“Artigo é fofoca. Ensaio é reflexão e intuição. O artigo tem a vantagem temporária do calor da hora social –o que está acontecendo lá fora no exato momento. O calor do ensaio é interior.”
“Como um poema, um verdadeiro ensaio se faz com linguagem, personagem, atmosfera, temperamento, garra e acasos.”
É isso!
Beijos procês!
bela e arguta reflexão! só uma correção: o texto da Beatriz Fiuza tá no n. 04…
bjs
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