Eu lembro que ainda morava em São Paulo, quando um amigo antigo de escola (com o qual não tenho contato próximo há anos), me ligou: “Bellinha, tudo jóia? Estou trabalhando em uma empresa de compras coletivas e sei que você dá cursos de fotografia. Te ligo para saber se você não teria interesse em uma parceria conosco, para fecharmos um pacote promocional de suas aulas aqui com a empresa, daí você garante um mínimo de muitos alunos e uma boa renda somando o pouco de cada um”. Na hora nem pensei muito, andava ocupada com o mestrado e mal sabia quando seria minha próxima turma. “Eita, tou morando em São Paulo e nem sei quando vou ao Recife oferecer um novo curso. Fica para a próxima”.
Nas férias seguintes estive no Recife e abri vagas para um novo curso básico. Trabalho, nas minhas aulas, com cerca de 6 alunos por vez, em um esquema que mais parece um grupo de estudos, na varanda da casa dos meus pais. Cobrei o que achei justo na época: um pouco menos que as escolas de fotografia (pois eu não tinha estrutura física extra, empresa e nem funcionários para manter). Por conta do meu esquema caseiro, obviamente jamais cogitaria a parceria com compras coletivas. Mas lembro que recebi um e-mail do Peixe Urbano oferecendo um curso básico de fotografia na mesma época.
O pacote oferecido era o seguinte: curso de fotografia para iniciantes, de R$350 por R$39. O conteúdo: “focalização, enquadramento, iluminação, diafragma e obturador, princípios básicos da fotografia, fotometria, sensibilidade do ISO, além disso os professores buscam desenvolver o ‘olhar fotográfico’ de cada aluno com uma metodologia dinâmica e motivadora”. Tudo isso em uma carga horária de apenas 6h. Até o último momento em que eu acompanhei a página da oferta, havia 655 compras efetivadas. Bem, 655 pessoas pagando R$39 são quase R$26 mil. Não me parece mau negócio.
Tive um aluno que participou da promoção. Ele achou tudo tão atropelado que resolveu fazer um curso de fotografia mais tranqüilo depois da experiência (o Peixe Urbano ainda me rendeu um aluno, ó! rsrsrs). O que me foi relatado por ele é que eram turmas de, pelo menos, 50 pessoas. Enfim, outro esquema.
Mas “outro” é bom ou ruim? É outro. A questão é controversa, mas não quero polemizar ainda mais. Meu objetivo é a reflexão: qual é o seu preço? Qual é o seu trabalho? Você joga limpo? É coerente?
Sites de compras coletivas são uma delícia para o público consumidor. Quem nunca comprou um bom jantar, um desejado tratamento estético ou uma viagem dos sonhos bem baratinhos pela internet? Acontece o mesmo com a fotografia. Vez ou outra me são oferecidos cursos e “ensaios fotográficos” por um precinho camarada. Considerando a sociedade de consumo em que vivemos, por que não “democratizar” serviços de fotografia? Afinal, encomendar um “book fotográfico profissional” sempre foi privilégio da burguesia, não é? Agora “#todaspode” ser diva, ter seu book; as mães podem fotografar seus pequenos filhotes naquelas poses formatadas, com aquela luz padrão e serem felizes, e se sentirem “fazendo parte” deste mundo consumidor padronizado. E vamos mantendo o esquema do sistema. Acho ótimo poder desfrutar de bons produtos e serviços, que, se fossem mais caros, talvez eu jamais os experimentaria.
Afinal de contas, o que é que fotógrafos fazem? O que é que vendemos mesmo? Imagens. Imaginários. Sonhos, simulacros. Fotos de casamento, de grávidas, de casais, de sensualidade, de alegria, de desejo e realização. Até a imprensa funciona assim, de certa forma. E agora tudo isso ao alcance do seu bolso, querido cliente!
Porém, é preciso ser honesto com o cliente. Se vendemos sonhos, não podemos vendê-los de forma irresponsável. Pode ser barato, mas é bom deixar claro que não se tratará de algo muito personalizado ou de grande qualidade artística/crítica. Só ficamos satisfeitos com nossas compras, quando elas cumprem o que prometem. Será que cumprimos o que prometemos?
Vivemos em uma profissão bastante livre, em termos trabalhísticos. Há algumas tabelas (é importante conhecê-las), mas, na prática, cada um que calcule o seu valor, o seu mercado, seu público alvo, a qualidade do seu serviço.
Talvez você ache que eu estou um tanto confusa no raciocínio. Talvez esteja mesmo. Explico. É péssimo para uma pessoa que se pretende artista ou educador “prestar um serviço” de má qualidade. Na verdade, é um tanto constrangedor ver sua atividade, que se pretende crítica ou criativa, como um negócio.
Dar uma aula de 6 horas e ensinar fotografia é uma grande mentira – dar um curso de 24 horas ou mesmo fazer uma faculdade de 4 anos já o é, de certa forma. Não se ensina fotografia assim, em cursos. Sinto muito. Mas podemos estimular bastante um aluno a continuar o processo de aprendizagem. Só que em 6 horas, para 50 pessoas ao mesmo tempo, falar de todo o assunto técnico (e ainda sobre “olhar fotográfico”, hein!?) me parece ou utopia ou enganação mesmo! Ou não. Talvez seja apenas uma opção comercial honesta: óbvio que nenhum aluno vai sair de uma experiência dessas achando que é fotógrafo. Né? Será? Eu sairia angustiada, no mínimo. Alunos angustiados e professores ricos esperando a próxima turma de trouxas. Mas foi apenas R$39, né? Não deve ter sido de todo ruim. Dinheiro bom é dinheiro fácil e rápido, curso bom é curso barato e rápido, porque não perdemos tempo e continuamos vivendo felizes com nossas super câmeras e super fotos. A coerência entre o que se vende e o que se oferece não importa tanto. Ou importa? Quem está preocupado com qualidade mesmo? O que é qualidade, quando falamos em educação, mesmo?
Fazer um book fotográfico seguindo o “padrão” é ótimo: não gastamos energia com trabalho criativo, montamos aquela luzinha básica, enquadramos aquelas poses básicas, o cliente fica feliz e satisfeito e a gente volta pra casa com dinheiro no bolso. Para quê cobrar R$10 por um trampo que vai me dar um trabalho diferente e me tomar vários dias, se posso cobrar R$1 por um que resolvo fácil e me permite fazer vários por dia. Trabalho mais, mas penso menos e, no fim, ganho igual. E ainda “democratizo o acesso à fotografia”, já que meus clientes podem ser felizes por um preço por que podem pagar. Não sou artista, nem quero ser. Sou fotógrafo e vivo da venda do meu serviço, negociado claramente com meu cliente. Há uma coerência nisso. Quem está preocupado com qualidade mesmo? O que é qualidade, quando falamos em fotografia, mesmo? Até onde popularização é oposto de qualidade?
O que é qualidade em fotografia e educação eu não sei, mas acho que ela se relaciona com o tempo de dedicação e com o envolvimento crítico e criativo, além de outros fatores materiais. Em que universo queremos nos situar: naquele em que se valoriza tempo (e exige mais dinheiro) ou naquele em que se valoriza a economia (e de forma geral proporciona um resultado standard)? Qual o objetivo de alguém que oferece seu produto em um site de compras coletivas: divulgar uma novidade de possível qualidade ou ganhar dinheiro rápido e muito com algo feito de qualquer jeito? Onde você quer se situar? Eu, como cliente, adoro quando compro um produto bom e barato. Mas será que esses baratos fotográficos são bons, nas medidas em que se oferecem?
Outro dia me perguntaram quanto eu cobro para fazer um casamento. Foi quando eu descobri que não tenho preço. O valor que vou cobrar é sempre relativo. Sempre converso, considero as condições dos clientes, considero a minha disposição/disponibilidade e considero o preço médio do mercado. Às vezes um desses critérios pesa mais que os outros. Sim, já “trabalhei” de graça. E, sim, já cobrei “caro” para fazer o mesmo serviço. Depende do meu momento, depende do cliente, depende do prazer, da grana, do tempo. Depende. Não sei se estou certa. Mas não sou fotógrafa-negociante, sou fotógrafa-amante. Sabe? Uma vez eu e Pri parodiamos uma música de Karina Buhr: “Mas eu não sei negociar, eu sei no máximo clicar meu botãozinho e olhe lá. E olhe lá!… Mas é preciso entrar no gráfico, do mercado fotográfico!…”
Trabalhar com aquilo que nos toca afetivamente é complicado. Ganhar dinheiro em cima do que nos emociona é difícil. E o contrário também: nos envolver com o que nos sustenta é fogo! É como uma prostituta que se apaixona pelo cliente. É assim que me sinto, pela minha relação de servidão, paixão e dependência com a fotografia. Eu choro nos casamentos que fotografo. Eu acompanho as crianças cujas mães grávidas fotografei. Mas fico naturalmente revoltada quando demoram a me pagar.
Eu gosto de conhecer pessoas e de criar memórias visuais (mesmo que forjadas) de seus momentos felizes – e isso renderia um novo #diálogo. Já fiz ensaios em que a cliente grávida me mostrou uma série de fotos que ela queria que eu simplesmente as copiasse iguaiszinhas. Como fotógrafa, me sinto péssima de não criar as imagens ao meu gosto e ainda de “plagiar” alguns colegas por aí (apesar de achar as fotos horríveis!). Mas também como fotógrafa me sinto ótima de poder dar àquela pessoa o produto com que ela sonha, deseja, que ela quer. Gosto de sair dali com dinheiro, mas gosto também de sair dali com a energia boa de uma mãe que vai dar à luz uma criança e está ansiosa. E quanto cobrar por esse trabalho/prazer? Por horas fotografando e tratando imagens? Vale considerar o quanto ela pode me pagar? Vale considerar o quanto o mercado tem cobrado por esse tipo de serviço? Vale considerar o quanto preciso para pagar as minhas contas mensais? Acho que vale tudo. Mas acima de tudo, vale pensar sobre esses assuntos. Vale dedicar um tempo a refletir antes de decidir. Vale ponderar, ser sensato, ser justo (consigo, com o mercado e com o cliente). Vale se questionar sobre seu próprio esquema e, além de criticar, também considerar/respeitar os esquemas dos outros. Qual é o limite? É uma questão ética? Será que não há espaço para todos os esquemas? Será que todos os esquemas são honestos ao que se propõem?
Eis a partilha de um pedacinho das minhas angústias de pessoa que ganha dinheiro com o que ama e que está inserida em um mercado um tanto desregulado, para refletirmos juntos o que merece ser construído, reconstruído e desconstruído na hora de decidir “qual o nosso preço”. Espero provocar debate ou, ao menos, reflexão.
Pingback: #Diálogo 068 – Qual é o seu preço? (via SeteFotografia) | Beto Bertagna a 24 quadros
ótimo texto, sem dúvida “Eu gosto de conhecer pessoas e de criar memórias visuais (mesmo que forjadas) de seus momentos felizes – e isso renderia um novo #diálogo.” renderia um belo texto seu, me identifico com a frase e é isso, qual nosso preço?
abraço 😉
E quem não ganha ainda, mas quer ganhar, e profissionalmente, e é elogiado, estimulado… imagina a angústia!