Quando a margem vira rio. Quando os nomes soam vazios e viram somente palavras que não querem dizer nada. Só o que dizem. Quando “bom dia” é “bom dia” e as cenas que eu já vi, eu nunca antes tinha visto. Estar onde só se está. Não precisar nem saber. Estar só, interminavelmente só, somente por um intervalo. Não ter o que dizer e não querer dizer nada. Fartar-se de outras latitudes e ver a água girar ao contrário. Daí saber que se está no meio de outro lugar do mundo e que o mundo é só mundo e que todos somos só uma margem. É bom ser margem e ninguém. Por uma vez, agradecer que ninguém me entende e nem quer entender.
Esses dias comecei a pensar nas minhas tão desejadas e esperadas férias. Esse ritual da escolha do destino é tão instigante para mim quanto a própria viagem. Fico um tempão pesquisando roteiros, vendo mapas, pedindo dicas, sonhando acordada mesmo, sentindo antecipadamente aquele gostinho bom que só o vento no rosto dos dias livres e soltos nos proporciona. Normalmente acabo sempre ficando em dúvida entre dois ou três destinos aí pergunto para um amigo aqui, outro amigo ali… e o papo quase sempre acaba com o seguinte argumento: “lá rende boas fotos”. Já perdi as contas de quantas vezes já ouvi e já falei essa frase mas nunca tinha parado para pensar mais profundamente como esse “render fotografias” nos norteia nessa escolha de viagens. Não falo apenas da busca pela beleza, que nos move naturalmente, falo da relação fotográfica mesmo, entre o viver uma experiência em um lugar novo e retratá-la.
O novo é sempre um estímulo aos sentidos. As luzes, os cheiros, os sabores, os sons, tudo parece vibrar mais, tudo parece mais atraente, tudo nos convida para uma entrega. É se deixar levar pelos estímulos, sem buscar muito e ao mesmo tempo buscando um elo entre o você “estrangeiro” e o lugar. Esse elo pode despertar uma série de reconhecimentos e até estranhamentos, mas tudo isso, somado, torna ainda mais rica uma viagem. É um encontro da pessoa com o mundo, é se sentir aberto para receber tudo o que ele pode e tem para nos oferecer.
Fotografar, que hoje já se tornou um hábito diário na vida de muita gente, faz parte da experiência deliciosa que é essa entrega. E as fotografias vão surgindo e se multiplicando aos montes. Queremos guardar esses momentos, precisamos de memórias físicas. Chega a ser um pouco contraditório essa ansiedade envolvendo o ato fotográfico em um momento em que se busca a contemplação. Isso até mesmo em quem busca destinos mais urbanos e agitados, mesmo nesse contexto, as férias, ao meu ver, pedem um pouco mais de respiro. Mas, o que acontece é que a câmera não para, tanto a dos turistas comuns quanto a dos fotógrafos turistas. Bato muitas vezes na tecla de que as pessoas têm fotografado mais do que olhado ao redor, mas é uma realidade que me intriga e me persegue mesmo. Conheço algumas pessoas que não são capazes de descrever um lugar, ou as sensações que aquele lugar despertou, sem olhar uma fotografia. Isso acontece porque as pessoas estão vendo o mundo apenas pelo visor da câmera e deixam passar uma série de momentos e coisas bonitas que a vida, vista aos olhos nus pode nos oferecer. Para mim a fotografia é um grande instrumento de aproximação do homem com o ambiente, com as culturas, com os povos. Fotografar pode nos levar a vivências únicas. Por isso acabo sempre achando estranho quando as pessoas deixam de lado isso tudo justamente com a câmera nas mãos. A Fotografia deveria unir e não afastar. As vezes é muito mais gostoso ouvir uma história, ver um nascer do sol, sentir novos sabores, do que viver tudo isso superficialmente enquanto se está na ânsia da busca pela melhor foto de uma determinada situação que saltou aos olhos. Acredito, que esse sentimento da descoberta merece ser vivido de forma mais real. E claro, merece ser fotografado, também, muito fotografado inclusive, mas não necessariamente apenas com uma câmera.
Dois anos atrás vivi uma experiência bem interessante nas minhas férias. Planejei uma viagem para Alemanha, terra do meu avô materno. Saí daqui pensando em fazer um ensaio fotográfico na casa em que ele nasceu, em Nannhausen, em uma cidadezinha do interior do oeste da Alemanha. Logo nos primeiros dias das férias, peguei a estrada rumo àquela cidade. Câmera nas mãos, mil ideias na cabeça e uma total falta de certezas em torno do que iria encontrar por lá. Cheguei e encontrei um silêncio que talvez eu nunca mais ouça algo do tipo. Ruas vazias, casas cheias de flores e perfumes, sol fraquinho, um ventinho frio que batia na perna levemente, quase um sopro. Andei por aquelas ruas buscando, quase implorando, por fotografias. Fotografei, timidamente, mas fotografei. Toda a emoção daquele lugar mexeu de uma forma tão intensa, que eu não sabia direito nem o que fazer. Voltei, na estrada, já anoitecendo e esfriando lentamente, pensando em tudo aquilo que vivi. Não pensava mais nas fotos, no ensaio, em nada daquilo que me fez ir até aquele vilarejo. Só pensava no meu avô, na saudade, nas memórias de infância. Cheguei na casa em que estava hospedada e fui descarregar as fotos. Me deparei com um cartão de memória corrompido e nenhuma foto sequer sem estar truncada. Vieram lágrimas, fiquei sem chão. Até que pensei: eu tinha aquelas imagens. E guardadas de uma forma que nenhum erro tecnológico pode apagar: minha memória. Comecei a pensar que o fato de ter chegando lá, empolgada, na sede de fotografar e travado diante de tudo foi uma espécie de alerta, para que eu registrasse menos e olhasse mais. Hoje, tenho detalhes daquela tarde guardados em mim que nenhuma foto talvez fosse capaz de me fazer relembrar. Eu vivi. Fotografei com os olhos, com o coração. E isso tudo me fez repensar a minha relação com a fotografia e as viagens que faço.

Caminho voltando de Nannhausen, fotografia feita em um segundo cartão de memória que não deu erro | Priscilla Buhr
Gosto bastante de acompanhar os processos dos meus amigos fotógrafos em suas viagens de férias. Independente do material fotógrafico produzido, acho que é um momento muito produtivo de modo geral. Tenho amigos que aproveitam esse tempo para desenvolver projetos pessoais; alguns preferem fotografar de modo mais despretensioso com uma câmera pequenininha ou celular mesmo; outros levam todo o equipamento fotográfico possível e imaginário; alguns nem sequer levam equipamento e não produzem uma única foto; sem falar dos “não fotógrafos” que iniciam sua relação com a fotografia em uma viagem marcante. Mesmo com perfis bem distintos, uma coisa acho que acaba movendo boa parte deles: um encontro com a fotografia e com o fotógrafo que cada um se tornou. A pausa é um momento que desperta esse olhar mais para dentro. Digo isso porque quase sempre vejo meus amigos voltando das férias com olhares mais pulsantes, mais vivos. Suas fotografias me contam isso.
E foi extamente isso que aconteceu comigo de uma forma mais intensa nas minhas últimas férias, em que fiz uma viagem para Belém do Pará. Cheguei até postar no Facebook um pouco sobre essa experiência e aquelas palavras acabaram me motivando a escrever esse Diálogo. Uma das coisas mais incríveis dessa minha viagem pra Belém foi a forma como me relacionei com a fotografia. Fazia anos que não fotografava com filme e talvez possa até afirmar que escolher registrar esse meu encontro com aquela cidade (tão absurda em todos os sentidos possíveis) de forma analógica fez toda diferença em todo o processo daquela descoberta. Até fotografei um pouco com o meu iPhone, mas nem de perto ele me mobilizou e me instigou tanto como ter minha EOS 3000 nas mãos. Mais do que o filme e toda a “magia” que a fotografia analógica envolve, o importante pra mim nisso tudo foi a forma calma e serena como fotografei e senti a fotografia me atingindo ali. Só fui relevar esses filmes, scanea-los e ver o que tinha produzido 5 meses depois da viagem, em alguns momentos até fui capaz de esquecer que essas fotos existiam. E tudo foi voltando lentamente de um jeito tão bonito e tranquilo aqui dentro, quase sentia os cheiros, os gostos, os barulhos… Essa viagem marcou um reencontro lindo entre mim e minha fotografia. E hoje começo a perceber que o que ficou aqui depois de tudo que vivi e vi por lá, são fotografias não urgentes, fotografias que sobrevivem guardadinhas como um sentimento que só você entende quando vibra. E isso é só meu.

Feira do Açaí, Belém do Pará | Priscilla Buhr