Era março, fim do verão, mas fazia frio em São Paulo. Eu ainda morava em Recife e via sozinha uma exposição da Maureen Bisilliat. Passeei por todo o universo literário construído por ela, percorri um corredor azul (guardado na memória, mas que de fato não tenho certeza se existia), vi índios e mulheres, até que me deparei com as imagens do ensaio “Pele Preta”.
De repente, um menino, preto, com asas de anjo, quase pousado em uma cadeira. Docemente, ele me convidou para sentar. Assenti com a cabeça e passamos a nos olhar em silêncio.
Tenho a impressão que a foto era gigante, mas já não tenho certeza… Fiquei olhando para aquele menino e pensando em todos os episódios de discriminação que eu havia vivido até aquele momento.
A doce criança, então, sentou ao meu lado, enxugou minhas lágrimas, segurou minhas mãos e começou a me falar de uma vida que apenas é, inteira, sem fronteiras, sem racismo.
O menino, preto, me falou também que é preciso estar atento, mas que não é necessário responder com dureza às discriminações. E por um segundo, não importava mais a cor da pele dele, não importava mais a cor da minha pele, quem eu era, onde eu estava. Ele cochichou mais algumas coisas no meu ouvido e também falou de delicadeza e da simplicidade da vida.
E eu sorri e chorei outra vez.
Foi assim que me senti no primeiro encontro com essa fotografia.
E agora, poucos dias depois da eleição de um deputado racista e homofóbico para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, sentei-me outra vez diante desta imagem e resolvi conversar de novo com o sábio menino.
Hoje, parece que essa fotografia encontra um outro eco, sobressaindo e respirando o ar de tantos, indignados, com um representante do poder executivo, cujo o dever era defender as minorias mas, no entanto, anda a se colocar contra elas.
Essa fotografia marcou a minha pele, misturou-se à cicatriz deixada pelo racismo nosso de cada dia. E eu posso dizer que nós estamos unidas para o resto da vida. Ela está no meu cabelo, na cor da minha pele, no formato dos meus lábios, no meu sorriso, especialmente, no meu sorriso.
Hoje, o doce menino, com seus olhos cheios de sabedoria, conversa com as asas da borboleta tatuada em minha pele preta, me lembra de dar outros contornos à minha existência e me diz que tudo é meio um milagre, mesmo que não seja necessariamente divino.
Por tudo isso, faço minhas as palavras do deputado Jean Wyllys:
“É isso que estou fazendo, tentando representar aqueles que, como eu, sempre receberam mais insultos e porradas que direitos e estima.”
E faço isso sendo eu mesma. Faço isso mais uma vez, quando olho pra esse menino.
Para Ana Lira, Cínthia Fernanda, Calixto Neto, Carlos Ferreira, Carlos Sílvio, Diva Mattos, Eron Villar, Lenne Ferreira, Otávio Bastos, Philippe Camarão, Swati Nigam e Viviane Bezerra, que também estiveram presentes nas tantas conversas ao longo do caminho, com esse pequeno menino, preto.
Val, amei. Obrigado.
Delicadeza sem fim!
Val, parabéns por esse texto lindo e tão sensível. Fechou com a cara de Feliciano e me emocionou até me engasgar. Tenho muito orgulho do nosso trabalho, nossa!