7Aniversário: Podia ficar olhando Pra Sempre esta foto de Samuel Aranda

arandaEnquanto eu tentava rabiscar os principais pontos deste texto, senti que eu havia mencionado em algum escrito aqui no blog o peso que certas imagens icônicas têm no imaginário coletivo. Se por um lado, referenciá-las bem uma nova produção, conscientemente ou não, pode ser sinônimo de mérito; por outro, a própria hipótese de proximidade pode se tornar um percalço para a imagem. Uma vez visto e dito “isso parece com…”, o observador pode dar-se por satisfeito e não buscar outros caminhos para olhar para aquela obra.

Sinto que isso acontece com esta imagem do espanhol Samuel Aranda. O que eu mais escutei sobre esta fotografia era que ela era (mais) uma representação incrível da Pietá, que certamente o fotógrafo teria isso em mente quando a produziu durante os protestos contra Saleh, e que o júri do World Press Photo, em 2012, foi muito hábil em perceber a conexão.

Quando eu vi esta imagem pela primeira vez, impressa em quase dois metros de papel, na entrada da sala da exposição, além de sentir um dos maiores arrepios da minha experiência fotográfica, a última coisa que eu quis associar à ela foi a Pietá. A imagem da serena mãe de jesus segurando o filho nos braços em sofrimento, me perdoem as boas intenções, não consegue caber na leitura que faço desta fotografia.

Ela me convidou seriamente a transpor este avatar da dor piedosa para ver outros elementos das relações de poder que nós fabricamos e que Aranda, talvez ativado pelos processos sutis que nos ajudam a fazer escolhas em momentos de conflito físico e emocional, me incentivou a observar. Tudo o que acontece de mais forte nesta imagem não está obviamente visível. A expressão de dor do rapaz insinua-se nas entrelinhas da sombra do rosto da mãe, que está integralmente coberta.

Esta impossibilidade de se fixar na expressão objetiva da dor do outro é, para mim, um dos maiores ganhos desta fotografia, por que assim o sentimento caminha para outras buscas. Olho para as suas luvas segurando de maneira firme partes estratégicas do corpo do filho – o pescoço e os braços –,  que historicamente estão ligadas à comunicação, criatividade, capacidade de articulação e sustentabilidade, e não consigo parar de pensar que um dos motivos de se instituir o uso da burca, entre outras questões religiosas, foi justamente neutralizar essas áreas da expressão feminina.

Que difícil olhar e pensar que, do ponto de vista do das dinâmicas do poder, os grupos sociais que sustentam fisicamente e emocionalmente as consequências da imprudência administrativa dos países são justamente aqueles que no dia-a-dia são forçados à sombra. Porém, o que essa imagem me comunica é que, para além dos nossos impedimentos cotidianos, existem frestas; para além das coberturas, existe a capacidade de transformar o sentido de um elemento repressor para reconquistar um espaço de diálogo com o mundo.

Por isso ela causou um impacto tão grande em mim. Quando eu a vi eu tive certeza de que de fato o meu amor pela reportagem fotográfica é enorme, independente do que se diga dela e das próprias questões que eu mesma carrego a respeito de suas práticas. Tive clareza naquele momento de que era a área sobre a qual eu realmente queria me debruçar.

Foi no susto do arrepio que percebi que essa discussão sobre as relações de poder me dizem respeito. Foi por meio da inquietação que Aranda me provocou com essa foto que eu decidi romper com uma série de coisas que estavam me impedindo de caminhar e dizer um sim bem grande para o meu potencial criativo dolorosamente amordaçado por uma série de desejos que não eram meus.

Olhei para o corpo da moça na foto e prestei atenção no meu próprio corpo. Como eu estava expressando fisicamente as minhas dores? Como eu estava falando do que me fazia chorar? É interessante perceber estas coisas em uma imagem. A posição do corpo dela é um signo muito forte. Ela sofre sem esmorecer, dói sem se desintegrar. Se coloca com alteridade diante do conflito vivido pelo filho e parece solicitar a espera do tempo necessário para agir. Sua presença física na foto é o respiro. É a pausa entre-guerras. É o momento de exercitar a ponderação.

Por isso, mesmo que a luz debruce na pele clara do moço-soldado, cuja boca parece emitir um grunhido de agonia, é a gravidade silente insinuada da mulher que segura o nosso olhar. É o mistério afetivo e político da expressão do seu corpo que nos evoca questões. Por isso, eu não consigo olhar para ela pelo viés da Pietá. Porque não consigo enxergar nesta mulher a docilidade passiva que é geralmente atribuída à figura de Maria. Escrevo sobre o silêncio vigilante que percebo em seu ato de acolhida nesta fotografia para não permitir que mais esta expressão de luta cotidiana seja neutralizada por um dos mais fortes ícones ocidentais da resignação feminina.

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2 respostas para 7Aniversário: Podia ficar olhando Pra Sempre esta foto de Samuel Aranda

  1. Tia Ceca disse:

    Seria uma foto política, que transcende religiosidades. Muito bom argumento, Ana!

  2. Chico Peixoto disse:

    também vejo com um trunfo da foto essa incapacidade de identificarmos as pessoas retratadas. acho que a “ausência” de um rosto liberta a foto de uma análise mais simplista. as representações extrapolam. poderia ser uma mãe segurando um filho, uma enfermeira se compadecendo de um paciente, a esposa cuidando do marido ou qualquer outra relação, e todas elas de certa forma seriam coerentes, pois independente dessas amarras personificadoras é possível ver o registro forte de um drama humano. a imagem toca mesmo sem sabermos as circunstâncias. e é capaz transmitir mensagens ainda mais poderosas na medida em que conheçemos o contexto da situação. pra mim, por hora, bastou saber que se passa no iêmen, durante a primavera árabe. mais que um indivíduo machucado, salta aos olhos as sequelas da revolta de um povo contra um governo opressor. um povo que em sua maioria nem é guerreiro; não é feito de soldados, mas de pais de família, que talvez tenha pego em armas como única alternativa. também não dá pra ver apenas uma “mão amiga” de burca, mas sim aquela outra parte desse mesmo povo que aguarda angustiada o retorno de quem foi lutar. a prova cabal de que o conflito armado não atinge apenas que está em campo. que a guerra atinge a todos. enfim, essa foto é marcante talvez porque tem o poder de sensibilizar em diferentes níveis de leitura.

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