Para iniciar, uma retrospectiva: eu escrevi parte deste material quando estava elaborando as questões para o diálogo A Linguagem e a Rede. Eu havia pensado em debater dentro dele as questões ligadas à prática criativa dos coletivos, mas acabei retirando este trecho do conteúdo porque tornaria o texto ainda maior do que ele estava, na época em que foi publicado. Durante meses, pensei em escrever sobre este tema, mas algo mais urgente aparecia e eu adiava.
Hoje, enquanto pensava nas ideias iniciais deste diálogo, achei o arquivo com o material que havia suprimido do outro texto e não pude conter o riso. Ele começava exatamente com a situação que eu havia marcado de citar no começo da minha discussão e continha vários trechos que eu havia pontuado nos meus rascunhos para debater ao longo da conversa. A única diferença talvez seja na abordagem da prática criativa coletiva, que mudou significativamente nos dois anos que separam o rascunho deste texto final. Dito isso, prossigamos.
Em uma conversa na Escola Oi Kabum, em Recife, em 2009, Mateus Sá comentou que iniciou na fotografia inserido em uma prática coletiva. Durante uma década, Beto Figueirôa, Luca Barreto e ele formaram o Canal 03 e realizaram diversas experiências e intercâmbios que ajudaram vários fotógrafos a pensar sobre o que significava produzir coletivamente. Isso aconteceu quando a temática do coletivo em fotografia não era tão discutida como hoje e o modelo de abordagem e atuação também eram um pouco diferentes.

Mateus Sá abrindo sua exposição retrospectiva pelas lentes de Luca Barreto : parceria mesmo depois do encerramento das atividades do Canal 03
Após 10 anos juntos, os três sentiram necessidade de observarem melhor quem eles eram enquanto fotógrafos, que referências pessoais agregavam e que novos desejos suas práticas fotográficas solicitavam. Então, eles decidiram se distanciar para compreender quais eram as temáticas e linguagens individuais e quais eram as do coletivo, além de ver se queriam continuar trabalhando em conjunto. O Canal 03 voltou depois desta experiência, mas hoje, como Mateus diz, eles são um coletivo que existe afetivamente, por que cada um deles tomou rumos distintos, se associou a outros projetos, novos coletivos e têm experimentado outras possibilidades na fotografia.
A experiência coletiva é, de fato, muito interessante. Eu lembro que quando a Cia de Foto esteve em Recife, pela primeira vez, eu fui abordada no dia seguinte por várias pessoas querendo formar um coletivo. Foi bacana e esquisito, ao mesmo tempo. Eu havia participado de coletivos de literatura, comunicação, artes e audiovisual, antes e durante meu ingresso na fotografia, e não acreditava em uma prática coletiva que não fosse pautada pela afinidade e pelo afeto. Hoje sei que esses itens são importantes, mas não se bastam. É preciso diversas outras coisas para fazer com que o desejo coletivo caminhe bem.
Neste sentido, é muito significativo perceber como as possibilidades de atuação coletiva são diversas e como cada grupo escolhe sob quais parâmetros se sente mais confortável de atuar. Ter isso em mente é essencial porque durante um certo tempo, que não é muito distante, eu ouvi em algumas conversas e debates pessoas falando sobre a existência de modelos para ser um coletivo.
Isso me inquietava muito porque sempre passava a impressão de que seguindo aqueles parâmetros, o coletivo funcionaria automaticamente. O mais grave é que houve quem acreditasse e tentasse, sem sucesso, reproduzir modelos. Estar em coletivo não é seguir um manual para fazer a batedeira funcionar na hora de preparar o bolo. É uma experiência tão ampla que contempla formatos como o do Fotonauta, do Rio de Janeiro, cuja produção coletiva agrega de maneira forte o desenvolvimento de trabalhos comerciais diários; e o Pandora, da Espanha, que optou por não atuar no campo comercial e deixar a participação em coletivo apenas no âmbito cultural-artístico.
Por isso, entre 2011 e 2012, eu tentei conhecer o maior número de coletivos possíveis e perguntar como eles se organizavam. Era uma tentativa de perceber conexões e distanciamentos entre as práticas, mas também um meio de responder questões que eu guardava comigo acerca desta abordagem criativa, porque eu sempre acreditei que trabalhar em coletivo era uma espécie de filosofia. Assim, sempre que viajava para alguma cidade a trabalho ou para um festival, visitava alguém. Queria muito compreender como grupos que moravam em locais diferentes do mundo resolviam questões de produção, atuação, construção da linguagem, entre outros.
Também conversei muito com Eduardo Queiroga, que se debruçou sobre a temática em sua dissertação de mestrado, colocando diversas dúvidas sobre a mesa de trabalho, com o intuito de perceber nuances sobre as quais eu ainda não havia acordado. Foram nessas discussões e nos diversos textos que li sobre a temática, que percebi que algumas questões sempre apareciam e outras não eram colocadas ou apareciam de uma maneira um pouco negativa, se assim se pode falar.
Os modos de produção e atuação dos coletivos sempre são discutidos: como eles se organizam, quais são as funções, em que meios atuam, como se mantêm, de que maneira discutem seus caminhos estéticos, quais são as referências que norteiam essas práticas, os projetos que desenvolvem, como lidam com o cotidiano da fotografia, o mercado de arte fotográfica, arte contemporânea, produções multimídia, entre outros. Esses assuntos, por si, são suficientes para preencher várias laudas de texto, estudos, entrevistas pelo mundo.
Porém, eu percebi, também, que as questões relacionais quase nunca não entram em pauta. Quando entram, quase sempre são debatidas com muito pudor ou viram discussões sobre autoria individual versus autoria coletiva. Os dois temas me interessam particularmente, neste momento, porque vejo diversas crenças minhas colocadas em xeque. Uma delas é que eu sempre acreditei que por ter passado os últimos 20 anos da minha vida envolvida em diversas práticas criativas coletivas, eu estava preparada para lidar com qualquer tipo de situação em grupo. A segunda é que por acreditar muito nisso, eu jamais questionaria a minha própria permanência em projetos coletivos.

Cena de Projeto Torres Gêmeas – um dos filmes elaborados por um coletivo audiovisual cujo nome muda de acordo com as produções feitas pelos participantes.
Refletir sobre as questões relacionais das práticas coletivas, nos últimos meses, se tornou um elemento bem importante no meu cotidiano. Não abordei isso com todos os coletivos que eu conheci, mas conversei bastante com pessoas de outros estados e países com quem eu tive o prazer de manter uma relação mais próxima. Esta tema é muito mais recorrente do que se imagina nas conversas entre os participantes. Há coletivos, inclusive, que pautam discussões sobre a chegada e saída de integrantes ou mudanças em suas formas de atuação, intercâmbios e parceria, baseadas na maneira como eles se relacionam. É algo que, a meu ver, poderia ser mais discutido.
Além disso, achei bastante singular a maneira como cada coletivo encara o afastamento de um participante, pelas mais diversas razões, e percebi que não é à toa que o lance da autoria individual versus autoria coletiva vire peça de discussão. Existem muitos ganhos e celeumas no discurso associado a este debate. Um dos ganhos, com certeza, são as diversas possibilidades de referenciamento da assinatura coletiva nos mais variados modelos de atuação do grupo. Porém, existe uma perda quando se vê mais fortalecido um discurso que tende a associar a atuação individual de um fotógrafo à uma prática individualista e desconectada de interesses coletivos.
Perceber a diferença entre individual e individualista é uma das coisas mais singulares deste processo de pensar a prática coletiva e suas escolhas. Digo isso porque o fantasma do ser egoísta é algo que muito me assombra, confesso. Quando comecei a questionar a minha permanência em projetos coletivos, esse foi um dos assuntos que mais me tirou o sono (podem me chamar de tola, tudo bem). Então, enquanto buscava sinônimos e sentidos sobre o que significava descoletivizar, encontrei um texto sobre a repressão chinesa no Tibet, que me fez muito sentido.
“Como a China eliminou todas as formas de expressões coletivas de dissidência, os tibetanos responderam descoletivizando o ativismo. Por meio de ações pessoais, tais como usar roupas tradicionais, comer comida tibetana, ouvir rádio independente e ensinar sua língua nativa em casa, muitos tibetanos começaram a usar seu espaço individual para afirmar uma identidade que tem sido suprimida por décadas. (…) Ao tratar suas casas, locais de trabalho e computadores como campos de batalha de resistência, os tibetanos estão utilizando suas limitadas escolhas pessoais e atividades diárias como uma ferramenta para criar um maior espaço social, político e econômico. (…) Assim, por meio da descoletivização do ativismo, o Lhakar sustenta a resistência capacitando o indivíduo. Ao fazê-lo, tornou-se uma porta de entrada para o ativismo mais amplamente.”
Uma outra questão que me perseguia era: como exercitar esse processo de descoletivização, depois de 20 anos envolvida em criação coletiva e com uma forte crença nisso enquanto filosofia de vida?
Um dos caminhos que encontrei veio depois de uma conversa com Queiroga. Ele me fez perceber que em todas as minhas experiências anteriores, eu tive dificuldade de perceber quando o processo não estava mais sendo coletivo ou quando eu não estava mais em sintonia com os projetos de existência de um determinado grupo, como ocorreu quando eu com muito atraso resolvi sair da Vacatussa (coletivo literário que existiu em Recife). Perder o tempo (essa palavra tão sagrada para a fotografia) dessa reflexão pode gerar entraves complicados de solucionar, tanto do ponto de vista das relações quanto da própria dinâmica do coletivo.
Por isso, quando meu desejo eremita (pedindo uma licença poética a Rodrigo Braga) começou a bater mais forte e todas essas questões vieram à tona, eu percebi que estava na hora de pensar como eu me enxergava na fotografia neste momento. Eis que ocorreu mais uma coincidência: quase à meia-noite de um domingo, eu esbarrei com uma proposta de workshop chamado Atos de Desistência. O curso fazia parte da pesquisa artística de Jorge Menna Barreto e integrava a residência que estava desenvolvendo para a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife.
Durante o curso, Jorge Menna trabalhou a produção criativa baseada em pilares como: a reflexão sobre esvaziamento, a busca de sínteses, o deixar ir e a construção criativa por meio da supressão de elementos. Foi singular, em especial, porque ele nos propôs o exercício de pensar no sentido das palavras. Pensar em seus sinônimos e suas antíteses e nos diversos significados que elas poderiam ter. Durante o curso, colocamos sobre a mesa a palavra desistência e tentamos ir além de seu sentido naturalmente associado à perda, fracasso, abandono, entre outros. Pensamos em resistência, abertura, consciência e em um conceito de vazio que jamais esquecerei.
Menna comentava para não olharmos o conceito de desistência como um vazio qualquer, um lugar que está estático à espera que qualquer outra coisa chegue para ocupar o lugar, mas pensar nele pela perspectiva do vácuo, que é um estado de vazio latente na capacidade de puxar coisas novas para dentro. Esses elementos podem ser processos criativos que não experimentamos, desejos que não realizamos, amplitudes de reflexão que chegam até nós apenas quando efetivamente existe espaço. Se todo espaço está tomado por práticas criativas estagnadas e insistências desnecessárias, não há como vivenciar uma criação distinta.
Então, eu percebi que, por mais que eu creia na prática coletiva e em tudo o que ela me traz de incentivos, referências, estéticas diferenciadas, segurança, afetos, desafios e tudo mais, talvez esteja na hora de experimentar o que eu nunca fiz na vida: um processo criativo individual. Porém, como diz o sentido que eu atribuí à experiência do Tibet, independente das minhas decisões, eu sei que continuarei levando no cotidiano tudo o que eu agreguei dessas vivências e práticas coletivas – e isso me traz um alento enorme. Desfazer esses laços coletivos, contudo, não é fácil. Requer uma renovação de crenças e de um modo de ser e estar que eu nem sei se estou devidamente preparada.
Mas quem está?
Os Tibetanos fizeram isso sabendo que suas práticas individuais fortaleceriam ideais coletivos. Tática de guerra para não perder no tempo, e por força bruta maior, suas tradições e costumes.
Esse texto está foda! Muito grato.
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