No dia 24 de abril, uma tragédia de proporções e causas absurdas atingiu Savar, periferia de Daca, a capital do Bangladesh: um edifício onde funcionavam fábricas clandestinas de têxteis desabou e 1.127 pessoas morreram. O dono do imóvel ignorou todas as advertências para evitar o uso do edifício, após terem surgido grandes rachaduras. Mesmo com o risco iminente de desabamento, milhares de trabalhadores tiveram que continuar no local. Nove dias antes, duas bombas explodiram durante a tradicional Maratona de Boston, nos Estados Unidos. As explosões mataram três pessoas e feriram mais de 170. Em cinco dias de uma grande operação do FBI, os dois suspeitos do atentado foram identificados, caçados e capturados (um com vida e outro morto em confronto).

Policial caminha ao longo de barricada em Boylston Street, perto da linha de chegada da Maratona de Boston onde ocorreram as explosões do atentado | Matt Rourke/Associated Press

Multidão se aglomera ao redor do predio que desabou em Bangladesh enquanto bombeiros e voluntários tentam resgatar sobreviventes presos nos destroços | Andrew Biraj/Reuters
Não preciso nem perguntar qual dos dois fatos ocupou todos os noticiários, jornais, portais de internet, com direito à cobertura em tempo real, além da atenção de pessoas do mundo inteiro, durante pelo menos cinco dias. O atentado de Bostom esteve presente até em mesas de bares, enquanto a tragédia de Bangladesh pouco foi comentada. Será que os 1.127 mortos Bangladesh não comoveram o mundo? Impossível não lembrar das minhas aulas de teoria de comunicação e da tal Teoria do Agendamento… As notícias, mas mais do que isso, a ênfase de cada notícia pauta nosso dia a dia, nossas conversas. Isso acontece com o poder da mídia de selecionar e julgar o “mais importante” e nos fazer enxergar que aquilo é, sim, o mais importante. E o grande público acaba captando bem essa mensagem e foca o olhar nesses pontos de vista que, por vezes, acabam sendo bem restritos, mesmo com a internet aí oferecendo todo o tipo de informação o tempo inteiro.
Mas, se a tragédia em si não foi suficientemente relevante para ocupar espaço na mídia como merecia (ou teria, se tivesse acontecido em algum país rico, ocidental) e comover pessoas do mundo inteiro, como seria esperado, uma fotografia fez isso. Uma fotografia fez o mundo olhar para Bangladesh. Ao menos, por uma semana.

Fotografia de um casal, abraçado no meio dos escombros do prédio que ruiu em Bangladesh se tornou imagem símbolo da tragédia | Taslima Akhter
Pego emprestadas as belas palavras de Eliane Brum, colunista da Época, para iniciar essa pequena crônica de um prêmio anunciado:
(…) Uma mulher chamada Taslima Akhter esgueirava-se pelos escombros da fábrica de roupas que desabou em Bangladesh, em 24 de abril, quando os viu. Como descrever o que ela, fotógrafa e ativista bengalesa, viu? Taslima registrou, fez uma fotografia que girou o mundo nos últimos dias e se tornou o símbolo do que não pode ser esquecido. E talvez o que se possa dizer é que o que ela viu nos obriga a ver. Ver mesmo. Não como costumamos assistir às imagens das grandes tragédias ou examinar a galeria de fotos de corpos e de rostos distorcidos das vítimas e das faces desesperadas dos familiares, numa solidariedade difusa, mas distante, que nos permite trocar de canal ou mudar de página no minuto seguinte. Ver é mais do que isso. É transpor distâncias geográficas e barreiras culturais e ser lançado para perto, bem perto mesmo. Perto o suficiente para se reconhecer num outro rosto, em outros olhos, ainda que fechados porque mortos. E não poder esquecer porque agora eles estão em nós, tatuados em nossa pele invisível. Isso é ver. E é raro quando acontece. (…)
Taslima Akhter, que trabalha sobretudo em temas ligados à denúncia da exploração laboral, fotografou a dor de um país inteiro e fez boa parte do mundo sentir um pouco dessa dor. Uma imagem que perturba, que rasga, que queima como ferro em brasa e que assombra por, apesar de tão gritante e chocante, ser assustadoramente “bela”. Chega a ser um pouco bizarro falar de beleza diante de uma fotografia tão triste, tão massacrante mas existe uma poesia que sobrevive à miséria do contexto. É como se o horror e o lirismo caminhassem lado a lado naquela fotografia. Akhter deu rosto aos números, nos aproximou um pouco daquelas milhares de pessoas que morreram de forma tão desumana e por pura ganância de um sistema que toma conta de Bangladesh. Mais do que uma fotografia de uma cobertura jornalística de uma tragédia, o “Abraço Final”, como tem sido chamado, é uma imagem de denúncia, feita por uma fotógrafa ativista, que grita e implora ser ouvida, assim como sua fotografia. Em um texto publicado dia 8 no site da revista americana Time, Akhter, contou a história por trás da fotografia:
(…) Eu tenho feito muitas perguntas a respeito do casal que morreu abraçado. Tenho tentado desesperadamente, mas ainda não achei nenhuma pista a respeito deles. Eu não sei quem são ou qual relação eles tinham. Passei o dia inteiro do desabamento no local, assistindo aos trabalhadores serem retirados das ruínas. Lembro do olhar aterrorizado dos familiares, eu estava exausta mental e fisicamente. Por volta das 2 horas, encontrei um casal abraçado nos escombros. A parte inferior dos seus corpos estava enterrada sob o concreto. O sangue que saía dos olhos do homem corria como se fosse uma lágrima. Quando os vi, não pude acreditar. Era como se eu os conhecesse, eles pareciam muito próximos a mim. Eu vi quem eles foram em seus últimos momentos, quando, juntos, tentaram salvar um ao outro – salvar sua vidas amadas. Cada vez que eu olho para essa foto, me sinto desconfortável. Ela me assombra. É como se eles estivessem me dizendo: “Nós não somos um número, não somos apenas trabalho e vidas baratas. Nós somos humanos como você. Nossa vida é preciosa como a sua, e nossos sonhos são preciosos também. (…)
Akhter conseguiu que sua fotografia fosse massivamente compartilhada nas redes sociais e divulgada amplamente na imprensa mundial. Porém o movimento em torno da imagem seguiu um padrão que acompanha a forma como se tem olhado e assimilado fotografias, onde a dor é o personagem principal: o fator denúncia perde um pouco sua força diante do apelo visual do inesperado, grotesco e chocante que é um casal morto, abraçado sob os escombros. Infelizmente, as condições precárias de trabalho, a exploração humana e a negligência que causaram a morte de tantas pessoas em Bangladesh não têm sido tão debatidas, quanto a lágrima de sangue no rosto daquele homem que abraça firme, como quem quisesse abraçar a própria vida.
O fato é que uma fotografia se tornou a pauta da semana, inclusive entre não fotógrafos. Até questionamentos sobre luz e enquadramento eu presenciei. Mas possivelmente o comentário mais recorrente sobre essa fotografia foi: já conhecemos a próxima ganhadora do World Press Photo. Todos os anos, sempre que anunciam os vencedores do maior prêmio de fotojornalismo do mundo, diversas polêmicas surgem em torno da padronização estética e temática dos trabalho vencedores. Mas uma questão particularmente me intriga muito mais do que prever o próximo vencedor: o que podemos esperar do fotojornalismo atualmente quando o maior prêmio da área prioriza a dramatização estética de um fato, quase nunca a informação, o debate e a denúncia?
O principal problema ao meu ver é “legitimação” dos “caçadores de prêmios”. Se tornou algo normal e corriqueiro dentro do fotojornalismo, ou o jornalismo como um todo, se pautar no “isso rende prêmio”, em vez de “essa denúncia é importante e o objetivo dela é tentar mudar uma realidade”. Susan Sontag pontua bem essa questão, em seu livro “Diante da dor dos outros”, quando comenta que muitos fotógrafos orientam o seu trabalho simplesmente na busca por imagens dramáticas e isso constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor. O leitor “gosta” de drama. O drama vende jornal. O drama gera prêmios. O WPP, assim como vários outros grandes prêmios de fotojornalismo, foca na espetacularização do drama, da dor, da morte. E se esse show de horrores vier com uma luz bonita, um tratamento especial, com uma palheta de cores meio dessaturada, melhor ainda. É prêmio certo.
Olhando para galeria com os 55 vencedores do WPP, junto com uma nota de advertência que diz “algumas das fotografias podem chocar pela sua crueza e violência“, fica muito claro que o foco é o trágico pelo trágico, apenas, sem muito ou necessário aprofundamento. Aquelas informações básicas do leade jornalístico “o quê?”, “quem?”, “quando?”, “onde?”, “como?” e “por quê?” acabam não fazendo a menor diferença. (Uma boa leitura sobre o assunto, é a Dissertação de Mestrado de Janaina Dias Barcelos: Fotojornalismo: Dor e Sofrimento – Estudo de caso do World Press Photo of the Year 1955-2008).
Conversando com Joana Pires sobre o desenrolar desse #Dialogo, ela fez um comentário bem pertinente em relação a essa questão da estetização e padronização, que tanto marca o WPP: WPP é poesia e não prosa. De fato, é bem isso. Existe uma “fórmula mágica” que relativiza a importância da história por trás da foto ou, mais do que isso, praticamente anula as discussões sobre os temas fotografados, tão importantes e tão necessários. Tanto que, as últimas grandes discussões sobre as fotografias vencedoras do grande prêmio do WPP, giraram em torno da forma e não do conteúdo. Como foi o caso do trabalho de Jodi Bieber, que retrata a afegã Bibi Aisha, de 18 anos, que teve o nariz e orelhas cortadas pelo marido após fugir de casa e se queixar dos maus tratos. Essa fotografia teve bastante repercussão e gerou diversas polêmicas e as mais debatidas giravam em torno do quanto Jodi Bieber expôs de maneira negativa a menina afegã e a semelhança da imagem premiada com o clássico retrato de Steve McCurry’s. As atrocidades cometidas contra mulheres no Afeganistão ficaram em segundo plano na discussão.
A recente polêmica em torno da fotografia de Paul Hansen, último ganhador do WPP, é mais um grande exemplo da inversão de importâncias: vários artigos, matérias, discussões em torno da possibilidade da fotografia premiada ter sido fruto de uma montagem. Foram dias de especulações. E quanto tempo essas pessoas, muitas delas fotógrafos, que tanto falaram da possível manipulação de imagem, passaram discutindo a dor daqueles homens levando os cadáveres de seus sobrinhos de dois e três anos de idade, assassinados em suas próprias casas, por um míssil israelense, para serem velados em uma mesquita em Gaza? Se é que passaram. O que realmente importa naquela imagem? O photoshop ou o fato?
É muito delicado e muito questionável ao meu ver essa superficialidade de olhar e essa previsibilidade, que os grandes prêmios de fotojornalismo têm reproduzido. É de extrema importância se fotografar situações tensas de tragédias e conflitos. Essas fotos precisam existir, fotógrafos devem estar no front. O questionamento aqui é quantas dessas imagens estão sendo produzidas com o olhar voltado para a denúncia e não apenas para a possível capa, o possível destaque, o possível prêmio, aquele, o previsível? Claro que um fotojornalista não fotografa tudo o que acredita, para que exista essa motivação de transformação social e que nem sempre existe uma causa social tão forte, como no caso de Akhter, que é uma ativista. Trabalho em jornal e sei que a realidade não é por aí… Mas, a partir do momento em que se escolhe trabalhar com jornalismo, é muito importante pensar primeiro no impacto que aquela imagem pode surtir na vida das pessoas e não em prêmio. Penso que a disputa por pautas nas redações deveria ser pela força informativa e importância de se mostrar um fato e não pela rentabilidade dele. O drama vende? Vende. Mas o drama é real, cheio de contexto, de histórias, causas e consequências. Quando um fotógrafo enxerga apenas o brilho da lágrima de uma mãe que chora diante do caixão do filho, o fotojornalismo se torna quase fotopublicidade, onde a única função é o lucro. Se nós, fotojornalistas, não pensarmos e depositarmos um pouco da nossa energia na força de transformação do conteúdo de uma imagem, não podemos questionar o fato dos receptores estarem preocupados apenas com o esteticamente mais chocante. Esse é uma questão que me preocupa e intriga bastante, por conhecer e ser amiga de muitos fotojornalistas e recorrentemente ouvir, como primeiro comentário sobre um trabalho: “essa foto rende prêmio”. E pronto. Muitas vezes mal se adentra sobre que história aquela fotografia está contando. Não consigo não pensar em uma grande inversão de valores. O que realmente importa em uma fotografia e na produção dela?
Quando falo que a fotografia de Akhter muito provavelmente ganhará um World Press Photo é justamente e infelizmente, por ela se encaixar perfeitamente nesses padrões estéticos/temáticos de vencedores. O infelizmente se dá pelo fato de inserido nesse contexto, o abraço de Bangladesh se torna apenas mais uma foto chocante, nada mais além disso. E essa é uma fotografia que não deveria ser premiada apenas por isso, deveria e merecia ganhar como reconhecimento de uma grande trabalho de denúncia, consciente, consistente e muito bem feito por Akhter na luta pelo seu povo. Afinal, esse não deveria ser o real modus operandi do fotojornalismo?
Pontual, pertinente e com impressionante força critica e reflexiva esse seu texto. Parabens!
Obrigada por citar minha dissertação!