Uma das grandes paixões da minha vida sempre foi a música. Antes de me apaixonar pela fotografia quase entrei de cabeça nesse grande e envolvente universo. Em meados dos anos 2000, minha irmã, Karina Buhr, junto com Isaar de França, ministravam uma oficina de percussão para crianças e adolescentes no bairro do Poço da Panela, aqui em Recife. Sempre gostei de ficar vendo minha irmã tocar. Lembro que ficava de longe observando, como se fotografasse mentalmente cada movimento de suas mãos, cada mudança de som que vinha com um toque diferente no tambor. E de tanto observar e admirar, resolvi arriscar e acabei entrando na tal oficina de percussão que ela dava. Foram alguns meses acordando e dormindo pensando em tocar. Vivia naquela ansiedade boa de querer largar do colégio e ir correndo pegar meu xequerê. De repente, Karina e Isaar levaram a nossa turma para o palco. Por um acaso, ao mesmo tempo que começava a me apresentar tocando com a Comadre Fulozinha, decidi fazer um curso de fotografia. E me vi dividida entre a descoberta de duas paixões. Era delicioso tocar, era delicioso estar no palco, cantando, dançando, mas ao mesmo tempo também queria fotografar, não mais mentalmente, os movimentos das mãos da minha irmã. Pouco a pouco fui descobrindo que o meu lugar não era o palco, e o que eu queria de verdade era estar no palco mas através do meu olhar. Era a fotografia que eu queria e eu fui atrás dela. Hoje em dia, mal sei tocar um sambinha em uma caixa de fósforo, mas encontrei na fotografia de shows a simbiose perfeita para unir essas duas grandes paixões da minha vida: a cada show que fotografo é como se eu também fizesse um pouco de música. É sinestesia. E é sobre essa relação que tanto me faz bem, o Diálogo dessa semana.
Esse tema veio à tona não por acaso. Acabei de voltar de dez dias intensos trabalhando no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), nos quais na maioria deles, cobri shows. Posso dizer que foi um reencontro, uma redescoberta de uma paixão antiga, pois foi em Garanhuns, quatro anos atrás, também cobrindo o FIG, que aprendi muito do que sei hoje em relação a fotografia de shows. É bem forte para mim, hoje, olhar para trás, perceber como fui construindo o meu aprendizado e identificar aspectos bem importantes e essenciais deste percurso. E mais do que isso, ver que as relações de troca sempre acrescentaram e sempre impulsionaram o meu olhar.
Minha primeira experiência cobrindo shows na verdade começou durante meu estágio no Jornal do Commercio. Lembro como se fosse hoje: show de Neguinho da Beija Flor, palco baixo, luz ruinzinha, eu com a minha lente 80-200 f5.6 nas mãos e um leve pânico de não ter certeza se aquilo daria certo ou não. Aos poucos fui me acalmando, pacientemente fui observando a luz, os movimentos de Neguinho, o ritmo do samba e as fotografias foram vindo. Lembro também do pós show, eu na redação, exausta editando o material mas com uma sensação boa de que apesar das dificuldades técnicas e da inexperiência, tinha rendido. Mais do que render, aquela pauta me fez sentir como era gostoso viver um show através da fotografia.
Eis que o FIG de 2009 surge como a grande escola e um grande combustível para essa minha entrega à fotografia de show. O cenário era diferente, já tinha um pouco mais de experiência com shows, mas nunca tinha feito a cobertura de um festival de proporções tão grandes e mais uma vez, minha lente 80-200 f5.6 me acompanhava (podia chamar essa minha lente de maldita, mas aprendi tanto com a danada, que ela se tornou bendita nesse percurso). Eu fazia parte de uma equipe de fotografia incrível que me fez aprender muito, mesmo que indiretamente. Eu observava bastante não só o material que estava sendo produzido pela equipe, mas também observava como eles trabalhavam, como eles interagiam com a luz no palco, como eles se movimentavam… Beto Figueiroa, grande fotógrafo aqui de Recife que admiro imensamente, fazia parte dessa equipe e talvez ele nem saiba, mas foi observando muito a forma como ele trabalhava que fui tomando gosto por esse mundo. E de certa forma esse “estudo de campo” foi essencial para eu me encontrar ali, para eu me sentir à vontade, para mesmo com uma lente bastante complicada para o tipo de trabalho que estava fazendo, com luz ruim, com artistas não tão performáticos, conseguir boas imagens. Essa troca de experiências foi bastante construtiva e depois desse FIG eu mergulhei de cabeça nessa paixão pela fotografia de shows.
Uma paixão e um aprendizado que vou amadurecendo não apenas fotografando, como vendo muitas imagens de shows, principalmente de shows em que tenho a chance de encontrar um fotógrafo conhecido trabalhando. Quase sempre busco o resultado daquele trabalho, observo como o fotógrafo resolveu aquela luz, como ele sentiu aquele artista no palco. Esse processo de perceber o antes (vendo o fotógrafo trabalhando) e o depois (as fotografias que ele fez) é uma das coisas mais ricas para mim. E como tem gente bacana fazendo fotografia de shows hoje em dia, com personalidade, força, intensidade! Atualmente um dos fotógrafos que mais admiro e que mais mexe comigo é o paulistano Diego Ciarlariello (que já passou por aqui com um #Flickrweek). O trabalho dele é de uma beleza e densidade indescritíveis.
Hoje, quatro anos depois dessa minha primeira experiência mais intensa com o palco que foi o trabalho no FIG, posso dizer que fotografar shows é o meu grande tesão na fotografia. Estar ali, diante de um artista, fotografando seus movimentos, seus barulhos, seus silêncios, envoltos em luz e escuridão é uma catarse para mim. O mais louco nesse meu processo, é que é como se eu também fizesse parte, é como se cada fotografia que eu fizesse ali fosse a minha música se entrelaçando com a música do outro. Acho que essa foi a forma que encontrei de “fazer” música, de “estar” no palco. Descobri que para mim, fotografar um show é a forma que me faz me sentir mais próxima de um artista, mais até do que fazendo um retrato, por exemplo. Apesar do retrato proporcionar um contato mais direto e mais próximo, é no show que eu consigo sentir aquele artista no seu momento de ápice, de entrega, de verdade. É no palco que eu consigo melhor interagir com eles, mesmo que na grande maioria das vezes, eles nem percebam que estou ali. Talvez por isso, eu me pegue querendo enlouquecidamente fotografar um show que estou apenas curtindo. É como se eu pudesse até me divertir mais se estivesse com a câmera, ou talvez como se eu estivesse incompleta sem ela. Tenho essa relação muito forte com os shows da minha irmã, por exemplo. Eu nunca vi nenhum show Karina sem fotografar. Às vezes até da vontade de apenas dançar, dançar… Mas é inevitável querer fotografá-la e é extremamente delicioso esse nosso “encontro” no palco. É tudo tão, tão intenso, que depois de fotografar um show de Karina me sinto extremamente cansada, como se eu estivesse no palco, pulando junto com ela.
Esse FIG de 2013 foi bem forte e importante para essa minha relação com o palco. Além de ter fotografado artistas que admiro imensamente, pude trocar ideias lindas com uma fotógrafa também linda, Renata Pires, que fez um trabalho belíssimo nesse festival. Por acaso, a história dela com a fotografia se parece um pouco com a minha. Ela veio do teatro e os caminhos da vida foram a levando para fotografia e assim como eu, ela encontrou na fotografia, uma forma de se entregar mais intensamente ao palco. Tivemos conversas deliciosas durante todo o festival. Trememos juntas diante da emoção de fotografar Ney Matogrosso, Caetano Veloso e tantos outros artistas incríveis.
Mas mais do que isso, nos encontramos nessa paixão que é se doar ao show, ao artista, à luz… Aprendi muito com Renata durante esses dez dias e essa troca de experiências é sempre tão enriquecedora, não só para o trabalho, mas para a vida como um todo, que a convidei para escrever um pouquinho sobre como foi viver tudo isso:
Tenho alguma experiência em fotografar palco porque venho do meio teatral e meus primeiros trabalhos como fotógrafa foram nessa área. Hoje já me considero totalmente imersa no universo da fotografia de artes cênicas e adoro, me envolvo, me entrego. Mas com shows minha experiência era quase nula, salvo um festival, shows de amigos, mas nada muito sério. Corta – e eu estou compondo a equipe que fará a cobertura fotográfica oficial do Festival de Inverno de Garanhuns 2013. Quando cheguei em Garanhuns me dei conta do que era aquilo ali afinal, de qual era a minha função junto com mais 6 fotógrafos. Deu frio na espinha, pois era uma responsabilidade enorme, mas encarei com as pernas tremendo (rs) e muito feliz. Ao me deparar com as pessoas que fotografei no palco, como, de primeira, Ney Matogrosso, encontrei várias semelhanças nesse fazer fotográfico. Encontrei inúmeras possibilidades diferentes e também me vi esgotada de possibilidades. Mas, no fundo, quase tudo permanece o mesmo, pois minha relação de entrega para me sentir parte daquilo era a mesma. O respeito por quem está ali no palco numa relação íntima entre si mesmo e o outro (no caso os outros, milhares de outros que compõem o grande público) também é o mesmo. A função de documentar e transformar em imagem a energia movimentada por essa troca continua a mesma. Então o que muda? Ainda não sei dizer, talvez aspectos técnicos – a luz de show é bem mais difícil de interpretar, por exemplo. O que sei é que em qualquer palco, aos meus olhos, tudo se transforma em teatro, essa encenação de múltiplas realidades que transforma, de algum modo, a vida e o dia-a-dia de quem está por ali envolvido. Fotografar isso é uma forma bem sincera de se fazer presente nessa realidade e de brincar com o que pode ser revisto, revisitado e o mais importante, com o que pode novamente emocionar.
Acredito que a grande beleza de se fotografar o artista no palco venha muito da magia que envolve a arte, a performance, as nuances dos tons presentes na intensidade de cada gesto, de cada olhar que surge em uma canção. Fotografar um pouco desse sentimento que explode em um artista no palco me faz me sentir pertencente à música, talvez isso que me encante e pulse tão fortemente em mim, na fotografia de shows.
Cara Priscilla, sou fotografo aqui do interior do estado e gosto do seu trabalho, sou golega de gamarra e adoro o 7, gosto das publicações inteligentes e observadora que vcs fazem, gosto do seu trabalho seu olhar seu modo de tratar a luz é magnifico, não tenho tanta oportunidade de fotografar shows como vc faz mas faço minhas historia por aqui. Muita luz e Sombra pra vcs do 7
Atenciosamente, Claudio Gomes, Afogados da Ingazeira – PE.
Obrigada pelas palavras Claudio! Fico bastante feliz com esse retorno! 🙂
Priscilla, este post vai ao encontro de muito do que eu penso sobre fotografia, especificamente sobre fotografia de espetáculos. Pra fotografar um e entender a força que o artista coloca nele, é preciso saber ouvir com os olhos. É uma viagem, uma catarse, uma conexão com quem está no palco. É onde me encontro (ou tento me encontrar) também. Parabéns pelo trabalho.