O #diálogo de hoje ainda traz alguns rastros de discussões que foram colocadas durante o Encontro de Fotografia e Educação – confira aqui o texto que Val Lima já fez sobre esse tema. Durante sua palestra, João Kulcsar nos colocou diante da fotografia abaixo:
A imagem faz parte de mais uma das campanhas publicitárias polêmicas do fotógrafo Oliviero Toscani para a United Colors os Benetton. Kulcsar, então, perguntou: “quem é o policial e quem é o detido?”. Um clima estranho pairou pela sala e alguém respondeu: “o policial é o homem branco e o detido é o negro, porque quem é preso é sempre levado pelo braço direito”. O clima na sala piorou. Rolou um certo constrangimento e o professor seguiu, dizendo que, na verdade, o que importa são as análises críticas que podemos fazer através da leitura de imagens. Podemos questionar nossos preconceitos e a construção das identidades culturais através desta foto. Lição dada, anotada e seguiu-se a palestra.
Porém, o clima estranho ficou e, ao final, no momento das perguntas, um dos participantes tornou público seu incômodo. “Eu jamais utilizaria aquela imagem do negro algemado para dar aula alguma”, disse o colega. “Acho que a imagem carrega o preconceito com ela mesma e eu não posso e não quero reproduzir isso aos meus filhos”, complementa.
Outros participantes tentaram argumentar com o colega, alegando que a imagem é extremamente irônica, como nos parecem as várias de Toscani. Que, na verdade, o próprio fotógrafo está jogando na nossa cara os nossos preconceitos e nos fazendo questioná-lo. Ué, mas será que ele já não faria isso trocando os papéis do personagens? Por que colocar o negro no papel do preso?
O colega que questionou não se deixou convencer e disse ainda: “conheci o Toscani na Itália. Ele é extremamente racista e preconceituoso. As campanhas dele não têm nada de irônicas”.
Pronto. Chegamos ao ponto que quero discutir. Teria uma imagem vida sozinha, independente de um autor? Ou mais: teria ela várias vidas independentes? Até onde podemos usar uma imagem para comunicar uma coisa que o autor não quis dizer?
A fotografia acima de Joana Pires traz uma frase de Giselle Beiguelman de que gosto muito: “Em suma, polissemia ao invés de monotonia”. Defendo o desenvolvimento de uma percepção crítica das imagens, mas, como eu já argumentei em outro #diálogo por aqui, não é tão simples criar uma gramática visual ou qualquer padrão de alfabetização para a leitura de uma imagem.
Devemos nos formar politicamente, devemos perder nossa ingenuidade ao analisar os contextos e os modos com os quais as imagens ganham vida por aí. Precisamos saber questionar criticamente tudo isso que nos rodeia. Mas também devemos deixar a imagem ser livre para ganhar novos significados.
O mais difícil de tudo isso é que uma imagem pode ser livre “para o bem ou para o mal”. Sabemos o quanto imagens descontextualizadas podem ser recontextualizadas em defesa de causas nada nobres. Sabemos o quanto um fotógrafo pode sofrer ao ver sua imagem sendo usada para fins imprevistos.
Mas, fazer o que? As imagens estão aí. E estão aí para dar vida visual a discursos, para convencer, para reforçar e para rechaçar boas e más ideias, mentiras e verdades, realidades e imaginários. Não podemos jogar nas costas da imagem a culpa das mazelas do mundo – ela é toda nossa. As imagens, bem, elas apenas se servem para o que a fazemos servir.
Para mim, saber que Toscani talvez seja um “racista preconceituoso”, como afirmou o colega, foi estranho. Como pode? Como pode? Tantas imagens legais, questionadoras para tanta gente, e em nada aparentemente conservadoras. Como pode? Mas isso apenas reforça o que já sabíamos: não é ele sozinho que faz a imagem. Na verdade, dependendo do foco da questão, pouco importa o que ele queria com ela. Quem faz a imagem é ele, sim, também (por favor, não deixemos de produzir boas imagens que se servem para os nossos bons discursos), mas quem faz a imagem é, para além dele, o contexto em que ela ganhou vida, e, ainda mais, quem faz a imagem também sou eu. Eu, leitor, faço as imagens que recebo. Nós temos esse poder de fazer e refazê-la.
E, enfim, se posso conduzir alguns estudantes (e filhos e amigos) em prol de uma educação por um mundo menos preconceituoso, porque não usar de uma imagem que pode gerar uma boa discussão, que pode quebrar barreiras, ganhar vida em novas mentes, independentemente das razões pelas quais ela foi produzida? A polêmica, às vezes, ajuda a sacudir ainda mais e fazer pensar os porquês das coisas.
Será que a “verdade” da foto não pode ser, ao menos por alguns instantes ou propósitos, aquilo que eu imaginei para ela, aquilo que eu sonhei, que eu projetei ou vi nela, de alguma forma? Para quê receber as coisas tão pré-formatadas, tão pré-definidas, tão pré-interpretadas? Porque não deixamos as imagens serem livres, livres e polissêmicas, para que nos utilizemos dela para os mais diversos fins e, assim, elas acabem também se utilizando de nós para outros fins alheios também.
Não sejamos bobinhos, não desprezemos as origens das imagens e nem os objetivos delas. Na maioria das vezes esses objetivos originais nos vencem sem que nem os notemos. A imagem sempre vai comunicar alguma coisa. Sejamos críticos. Mas também não nos prendamos ao mundo do decifrar, do descobrir, do pesquisar, apenas. Às vezes, é preciso inventar, criar, reorganizar as imagens e dar asas à polissemia, pelas mesmas boas causas que nos movem, que nos fazem viver e gerar questionamentos e novos sentidos para as coisas. Nos permitamos sermos palco para novas interpretações das fotos dos outros. Burlemos o texto da peça. Lutemos contra a ditadura monotonia!
Sim, não devemos desprezar os objetivos fundadores, as intenções que construíram uma imagem. Mas não nos esqueçamos de que elas – as imagens – existem nesta des/re-contextualização. Para mim, pouco importa saber se Toscani era ou não racista. As imagens dele seguem seus próprios caminhos e a mim me chegam sem essa informação.
Exatamente, Queiroga! É bem isso que eu tou defendendo. Bom saber que há quem pense assim como eu. 😉